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Onde se fala dos humanos, do capital, do Covid e do Kill Bill

O valor da vida

Comecei a escrever este texto indignado e bêbado da miséria a que fui assistindo nas últimas semanas nos canais de televisão americanos que mostram a indigência e a extrema pobreza em que caíram milhões de americanos nas ruas dos Estados Unidos, isto porque ficaram sem emprego de um dia para o outro devido à pandemia da Covid-19, e ficaram assim sem subsídio de desemprego ou com um tão magro que mal dá para alimentar a família.

Comecei por pensar como o ser humano é um bicho contraditório. Uma dessas contradições, que confesso não entendo, é haver esses americanos que se acham paladinos da vida, e por extensão, do bem contra o mal –

sendo que o mal, obviamente, vem sempre dos outros, já que os outros, como se sabe desde Sartre, são o inferno! –,

e são esses os mesmos que são contra o aborto, que apedrejam as clínicas onde se praticam as interrupções voluntárias de gravidez e manifestam com cartazes violentos em prol do interesse superior da vida.

São, também eles, os mesmos ferozes opositores contra o sistema de saúde e de segurança social universais. E são, já agora, também os mesmos que estão contra o rendimento básico universal!  

Na Europa e noutras partes do mundo também há gente da mesma espécie, os que defendem o atual sistema económico como sendo o único possível e acreditam no “cada um por si”, porque consideram legitimamente que quem está mal na vida ou é porque merece, porque não é suficientemente inteligente, talentoso ou isto ou aquilo –

porque, como já sabemos, cada um avalia as capacidades dos outros pelo prisma das suas próprias aptidões, num exercício claramente errado na qual a objetividade não é tida nem achada –

ou porque é preguiçoso, ou seja, porque não faz pela vida, porque não se esforça, porque não é um ganhador, porque tem falta de vontade, etc.

Ora, tanto uma premissa como outra estão erradas e são injustificadas, porque nunca, como hoje, houve um número tão grande de trabalhadores pobres. Ou seja, há cada vez mais pessoas que, apesar de trabalharem, por vezes mais, muito mais, do que oito horas diárias e 40 horas semanais, por vezes mesmo ganhando muito abaixo do salário mínimo vigente no país onde residem (quando esse país tem salário mínimo, porque são ainda muitos os países que ainda não têm salário mínimo nem veem o interesse de ter!), e que mesmo tendo um ordenado ao fim da semana ou ao fim do mês, vivem com imensas dificuldades, e o que ganham não chega para se alimentarem, para pagarem um alojamento salubre ou digno, porque não chega sequer para o básico.

Isso é ser pobre! Indiferentemente se a pessoa ganha 2 euros por dia ou 200. É o contexto económico em que se insere (ou o inseriram) que faz dele ser rico ou pobre.

O que não entendo nisto tudo? Não entendo isto de certos americanos e europeus defenderem de forma tão violenta o direito de uma criança nascer se depois é para deixar morrer ou viver na miséria, em nome do “cada um por si”. A vida tem mais valor no útero? Depois de nascerem a vida do ser humano deixa de ter valor? Quando vejo as gigantescas filas para os centros de distribuição de comida em varias cidades dos EUA, pergunto-me também como é possível morrer-se à fome no país mais rico do mundo?

Distribuição da riqueza

Os meus amigos americanos explicam-me que em nome da liberdade individual os EUA optaram por um Estado pouco intervencionista (se formos por aí vamos ver que só não intervêm no que não querem, mas pronto, admitamos!). Explicam-me que a gorjeta nos cafés e restaurantes é obrigatória nos EUA, porque os salários são muito baixos. Eu retruco-lhes se não é ao contrário: se a gorjeta não fosse obrigatória, os patrões eram obrigados a pagar melhor, ou não? Explicam-me também que os americanos ricos dão milhões para as obras de caridade e que isso vai salvando a vida a muita gente. Pois, mas o problema é esse: queremos salvar muita gente ou queremos dar condições de vida digna à maior parte da população possível apra que não precisemos de as salvar in extremis? Para mim o problema da caridade é que em si também um negócio, além de ser a almofada onde se deita a consciência bulímica dessa gente

(bulímica porque se nutre, alimenta, enfarda com bons sentimentos que depois vomita no fim do dia, porque serviram apenas de oportunismo social ou moral, e são por isso, por definição, todos superficiais e descartáveis, como uma segunda pele que se muda e despe ao chegar a casa),

dessa gente, dizia, que é contra a distribuição da riqueza. Ui, que palavrão, hein, distribuição da riqueza! Daqui a pouco estão a dizer que sou comunista. Outro palavrão, não é? Cruzes credo, benzam-se já, limpem os dedos deste texto e desinfetem-nos com álcool em gel!

Muito poucos são os que terão coragem de pegar no palavrão e dizer-vos que o comunismo é uma das melhores ideias dos últimos séculos só que foi total e completamente desvirtuada pelo Homem. Como quase tudo, quase sempre, nunca sai bem à primeira, é preciso pegar no rascunho e fazer melhor. Exemplo disso são a SDN, a CEE, a ONU, a UE, entre outros exemplos… mas isso pode ser tema de um outro texto. A verdade é que quem implantou o comunismo como regime de Estado, ideologia que preconizava colocar o Estado ao serviço do cidadão, traiu da forma vil e leviana esse ideal, ao fazer exatamente o contrário, escravizou e agrilhoou o cidadão, reduzindo-o a uma peça substituível e desumanizada da roda dentada ao serviço da máquina estatal. Tudo pelo Estado?

Ora a questão nunca foi (nem nunca deve ser!) perenizar o Estado, seja ele de direita ou de esquerda, mas melhorar as suas condições de vida do ser humano, fazer avançar e evoluir a Humanidade! Ou não?

As desigualdades sociais

Regressemos então a esses que não querem entender que a causa das desigualdades sociais no mundo de hoje, aumentadas em tempo de pandemia global, não é só a distribuição desigual da riqueza, mas muito antes disso, a montante, a distribuição injusta do trabalho, e ainda mais a nascente, a distribuição desigual das oportunidades.

Nenhum destes filtros-patamares sociais favorece (ou desfavorece) o ser humano da mesma maneira, porque são baseados em critérios injustos e desiguais. E é precisamente ali que nasce a estratificação da sociedade.

É a família, o local, a região e o país onde nasces que determinam o teu futuro, o teu acesso aos cuidados imediatos nas primeiras horas de vida, e depois disso, o acesso a um lar, com ou sem paredes ou tecto, com ou sem água e saneamento básico, com ou sem comida suficiente, com ou sem aquecimento, se nasces numa família protetora, sem violência verbal ou física, que não seja disfuncional, se tens acesso ao conforto, ao carinho, ao amor, à empatia, à aprendizagem, à educação, a experiências de vida para construíres a tua pessoa social, se terás acesso à escolaridade básica, secundária, a um ensino adaptada a ti e não à massa (quem é a massa, afinal?), o acesso a livros e à cultura, a possibilidade de aprender línguas, aprendizados escolares a paraescolares, acesso a tecnologias, ao ensino superior, e a partir daí a um nível de vida que herdas (sim, herdas!) consoante esse teu percurso de vida e não consoante o facto de seres ou não um ser humano.

E é exatamente esse o critério que devia entrar em linha de conta no lugar que ocupas na sociedade: se és ou não um ser humano? Então se és um ser humano deves ser tratado com um ser humano, certo? Sempre! Do nascimento até à morte. Ou não?

O facto de seres um ser humano que nasceu no país A ou B, no bairro C ou D, rapaz ou rapariga ou outro género, muda o facto de seres humano? Então porque é assim que certas pessoas classificam, estratificam, dividem, separam, distribuem, tratam os seres humanos?

O bom e o mau aluno

As desigualdades sociais nascem da estratificação da sociedade, da divisão entre os “bons” e os “maus”. Por vezes, até se diz “bom aluno, mau aluno”, mas é apenas para impregnar subliminarmente a malvadez da polarização “os heróis” de um lado e “os vilões” do outro.

Os primeiros vão desde o simples bom elemento anónimo, bem domesticado pelo sistema, que produz sem refilar nem questionar, a roda dentada bem oleada, até aos self-made men (nunca devem o sucesso só a si próprios se repararem bem!), que se destacam com success storys que o marketing propagandeia apenas para perpetuar ainda mais o sistema coo o único viável. Os segundos são chamados de parasitas e destacam-se como sendo casos sociais, são problemas para o sistema, e são exemplos de deriva dos quais todos nós nos devemos afastar e muito menos seguir.

E assim se divide os humanos. Divide-se para melhor reinar. E quem quer reinar? O capitalismo, cuja maior vitória foi fazer-se passar por insubstituível pois propala que não há melhor maneira de viver. Não há?

O atual sistema é o único viável?

Não há melhor forma de viver do que num mundo que produz demasiado para as suas necessidades, que para produzir a essa velocidade, e aliás, a um ritmo que tem de ser cada vez maior (o sacrossanto ‘crescimento económico’!) passa por cima de tudo, polui tudo, destrói tudo e todos, explora crianças, mulheres, homens, numa roda viva que não pode parar, que produz produtos de quem ninguém precisa, que cria necessidades e luxos desnecessários, que fabrica ao infinito excedentes que são destruídos em vez de distribuídos por quem precisa, recorrendo a recursos finitos, mas isso que interessa?

A sério que não encontramos melhor do que isto? Mesmo?

Quando é que substituímos o sistema capitalista que serve apenas para se auto-nutrir, engordar e perpetuar a si mesmo? Porque haveríamos de defender um sistema que se alimenta de nós e dos nossos filhos? Quando recolocamos o ser humano no centro das atenções? Quando é que abandonamos os ratings financeiros e deixamos de viver num sistema económico para começarmos a viver num sistema social, humano? Afinal o que nos define, a economia ou o que somos? E nós somos o quê? Humanos, ou não? Então porque continuamos a dizer sistema económico? Devemos dizer sistema social ou sistema humano.

Quando é que inventamos e implementamos um sistema social baseado no altruísmo e não no egoísmo, no usufruto e na partilha e não na posse, no coletivo e não no individualismo, na ciência e no conhecimento e não nos dogmas, na solidariedade e não no “cada um por si”? É hora!

Coronavírus, Kill Bill e o capitalismo

Estava este texto praticamente terminado quando tive que acrescentar estas linhas em jeito de adenda. Porque li estupefacto as invectivas injuriosas do ministro brasileiro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, contra o  esloveno Slavój Zizek, que é apenas um dos filósofos contemporâneos mais reputados da atualidade. Só porque o eminente pensador escreve na sua mais recente obra “Pandemic! COVID-19 Shakes the World” (editada este mês) que o coronavírus já fez em poucas semanas mais estragos ao capitalismo que qualquer movimento político até hoje. O que é verdade, sabemos todos nós, se olharmos para as economias todas do mundo paradas como nunca pudemos imaginar.

Zizek não hesita em comparar o coronavírus à heroína do filme “Kill Bill”, de Quentin Tarantino, como se o corona e a sua espada viral estivessem a dar um golpe fatal no capitalismo. O que pôs o chanceler brasileiro em fúria, acusando Zizek de promover o “comuna-vírus” e alegando que a pandemia é um plano conspiracionista para reimplantar o comunismo a nível global.

Quem é Ernesto Araújo? Sabe-se lá! Alguém saberá o que é um bolsonarista daqui a 20 anos? E quem é Slavój Zizek? Apenas um dos pensadores contemporâneos de maior destaque, dono de uma sapiência incrível, de um jeito muito seu de apresentar as suas ideias, que domina com mestria a cultura pop e o conhecimento erudito, que tem escrito estudos e obras que têm ajudado a compreender profundamente a nossa época em pleno delírio pós-modernista. Se não o conhecem, convido-vos a lerem a sua vasta obra, grande parte dela, felizmente, traduzida e bem para português.

 

JLC19-23042020

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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