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Recensão literária: “A luz em nenhum lugar se extingue” de São Gonçalves

São Gonçalves (ao centro) com Isabel Pascoal e Luís Galveias da Livraria Pessoa © Livraria Pessoa

A poetisa, escritora, dinamizadora cultural e colaboradora do BOM DIA, São Gonçalves, fez o lançamento oficial do seu último livro “A luz em nenhum lugar se extingue”, no sábado, 16 de março, na Livraria Italiana, em Luxemburgo-Grund, um evento que contou com a organização da Livraria Pessoa. 

Levado à estampa pela Oxalá Editora, em janeiro, podíamos dizer que a mais recente obra de poesia de São Gonçalves é um livro sobre a luz, mas isso seria um pleonasmo, já que toda a poesia de São Gonçalves é transversalmente atravessada por essa força, essa esperança, essa resistência, essa persistência a que podemos chamar a sua luz.  

Folheamos as primeiras páginas deste livro e deparamo-nos com uma madrugada prestes a romper. Já não é noite, mas ainda não é dia. Pressentimos que vamos assistir ao nascimento da claridade. Primeiro, há sombras, algumas escuras e tenebrosas, do passado, que a poetisa não revela, pois isso é passado e este livro é sobre assumir o presente e olhar para o futuro. Mas a autora deixa adivinhar que para trás ficam dores, a escuridão, a noite. Agora a hora quer-se de luz. 

Nos primeiros poemas do livro pairam assim sombras e assombros. Depois, à medida que avançamos, assomam as primeiras cores: o laranja, o azul-cobalto. No final da obra surge, emerge, o azul-turquesa, que se transforma finalmente em luz branca, luz solar, um novo dia, uma nova vida, um outro futuro.

São Gonçalves escolheu a prosa poética para se entregar neste seu sexto opus ao leitor, numa escrita delicada, limpa, depurada, decantada, com uma aparente simplicidade, mas que foi podada, cinzelada, esculpida, despojada de floreados barrocos e bacocos. 

Na procura da poesia mais sincera, após o desbaste do restolho ficou a verdade que a autora quer transmitir. E a poesia para ser poesia tem que ser verdade, a verdade do poeta. A poesia de São Gonçalves é clara e singela, mas, numa leitura mais atenta, revela uma profundidade muito mais complexa. Uma poesia com imagens e ambientes muito belos, podia aqui citar tantas passagens, mas basta abrir o livro, É afinal uma poesia fiel à imagem da São Gonçalves, a pessoa e a mulher.  

O modo verbal escolhido é o imperativo, ou seja, os verbos estão conjugados como instruções, pedidos, conselhos, convites: “anseias”, “escreverás”, “ouves”, “escutas”, “caminhas”, “embalas”, “és”, “desejas”,  “aspiras”, “peço-te”, “acordas”, “pudesses”, “saberás”… 

O imperativo tem como função impelir ação ao outro e não pode, assim, ser conjugado na 1ª pessoa do singular, o “eu”. 

Aqui, o imperativo é conjugado na segunda pessoa do singular: o tuMas este “tu” é afinal uma forma de a autora sair de si mesma, enfrentar-se ao espelho e tratar as suas sombras por tu. 

Mas esta não é uma poesia contemplativa, mas de ação. A pergunta que fica é: são instruções para si mesma ou para o leitor? Para os dois, digo eu.

Podia dizer que são 63 poemas divididos em três partes de 21 poemas cada, mas essa matemática é fútil. O importante é dizer que a obra se divide em três actos: 

– ao primeiro acto eu chamaria “o questionamento”; 

– ao segundo, “instruções para a esperança”; 

– e ao terceiro, “a dor é passado, crescer é preciso”.

Vamos então por partes.

Na primeira parte, a autora questiona-se sobre a origem do ser, do sofrimento, dos enganos e desvios no caminho, dos erros, dos desamores, são os anseios da poetisa que aspira a encontrar o amor e a transfigurar-se através das palavras, como poetisa, como autora, como mulher. A autora almeja harmonia, serenidade, e quer esquecer a desolação do passado.

E pergunta-se (págs 10-11): depois de vermos luz, ainda podemos aceitar continuar a possuir sombras ou que elas continuam a possuir-nos? Responde logo a seguir: a poesia é o facho de luz que ela levanta para ver o caminho. 

Mais à frente escreve: “é preciso aceitar o naufrágio das ilusões” (pág. 14) e “a vida sem amor é uma vida arrancada às raízes” (pág. 15), falta algo, algo maior a que a poetisa quer pertencer. Há desencanto, os desaires da emigração, os sonhos adiados, as esperanças ceifadas, o mundo à deriva. Parece resignação, mas não é. Porque logo a seguir responde com uma pergunta: É talvez preciso renascer?

A poesia é assim para a autora o bálsamo para o desalento, para o seu próprio e para aquele para onde se arrasta o mundo. 

“Os deuses que fazem?”, pergunta várias vezes a autora. A poetisa é um barco naufragado num mar agitado e é necessário “tecer novas linhas do destino”, navegar um novo mar. Escrever é a única libertação, escrever é encher as velas e zarpar para vencer “o vazio” (pág. 19). 

Na pág. 26, a autora resume: “o inevitável recomeço de quem nunca perde a esperança”. Ou na pág. 29: “Será preciso mais do que uma desilusão para que deixes de acreditar no amor”. 

Os primeiros poemas podemos lê-los assim como ensinamentos, concentrados. Acompanhamos o crescimento da poetisa nessa aprendizagem. A autora leva-nos pela mão, de poema em poema temos indicações e orientações para uma viagem até à alma da autora. É uma invocação também às forças fundamentais que são o amor e a luz, que são afinal as duas faces da mesma moeda. 

Os poemas podem parecer codificados, mas até nem são, são os espelhos possíveis que a alma permite para revelar a essência da poetisa. Há um jogo de sombras e de luzes, mas as palavras são transparentes… apenas para quem achar a chave dos poemas. Uma chave que encontramos ao mergulharmos cada vez mais no livro, porque vamos descobrindo o código para descodificar os poemas.

Na segunda parte, acaba o questionamento, começa a ação. Das mãos sai a luz, as “mãos-acção”, as mãos que fazem, as mãos que escrevem. E escrevem poesia.  

Na pág. 37: “Procuras nos livros que lês o destino que sentes ser teu”. É na escuta interna, que as palavras se transmutam em poemas, é a autora a descobrir a sua luz interior. Os dias podem até ser vazios, sem amor, mas a poetisa sabe que há uma primavera por chegar.

Pág. 45: “Vives os dias em apneia”, “não é só a ausência de amor que dói, mas a ideia de uma vida desperdiçada”. “A poesia é o único lugar de abrigo”, portanto é preciso escrever, soltar a dor, desatar os nós. A solidão pesa mas é preciso assumir as dores como fazendo parte da vida, é com as dores que crescemos. O reconforto vem dos livros e da escrita, confessa. Pág. 50: “Só iluminando a dor, se saberá reinventar a vida”.

Na terceira parte, os poemas mudam de tom e começam a falar de redenção, da luz própria, de varrer medos e anseios. 

“Deixa que a poesia te absolva”, escreve a autora na pág. 59. De repente, sente-se a urgência de escrever, de viver, de “sorver beijos” e de “salpicar os dias com afectos”, de acordar da letargia, despir-se das sombras, vestir-se de luz, “rasgar o ventre da desventura”, nunca renunciar à vida, reinventar-se em cada manhã, porque cada novo poema vai revelando aos poucos a claridade do novo amanhecer.

Ao que assistimos, finalmente, nesta obra é a uma aurora luminosa, mais, ao empoderamento da autora, ao tomar as rédeas da sua vida, ao assumir-se como poeta e mulher. É todo um diálogo introspetivo entre as suas trevas e a sua luz, como já dissemos. Como no claro-escuro de uma pintura renascentista. E quem diz renascentista, diz renascença. E no fim vence a luz que inunda todo o quadro. A poetisa renasce, é uma lutadora, levanta-se cravada de mágoas, mas recusa ser vítima. E a ambição agora já não é apenas erguer-se, mas voar. 

Imaginámos, de início, a autora como uma flor frágil, mas ela cresce aos nossos olhos até se tornar árvore forte, vigorosa e frondosa, que dá frutos bons, frutos cada vez melhores, livros cada vez melhores. 

São Gonçalves é – se me permitem a comparação – como o embondeiro (baobá), que cresce com as raízes de fora, como a autora, que achou chão fértil fora do país, na emigração, e aqui cresceu e floresceu.

Na obra que temos nas mãos, a autora conclui que é preciso reinventar-se todos os dias e construir a felicidade. A autora procurava um lugar de pertença e encontrou-o: a sua casa da felicidade é a poesia. 

Este livro é assim a busca de identidade da autora e da sua essência como poetisa e como mulher, à procura da sua própria luz, a sua luz original, a faúlha primordial, aquela que vem do fundo do ser, aquela luz que a poetisa procurava para ver quem é na verdade. Um livro com a sua alma exposta a céu aberto. É preciso tripas e coragem para escrever assim a nossa verdade, a luz, mas também as sombras da nossa alma, e deixar que isso tudo seja lido e descoberto pelos leitores. Com algum pudor, é certo. As palavras deixam transparecer as mágoas, as lágrimas e sente-se uma fragilidade. No entanto, não há nunca sinais de rendição. Bem pelo contrário, há uma vontade maior de romper o colete de forças, assistimos à escuridão a ser enxotada para ceder a algo novo, a algo de sublime, a um novo mundo feito de luz e verdade.

O mais curioso nesta viagem introspetiva semi-consciente é que Conceição, que é o nome de batismo da autora, vem do latim conceiptio, que tem vários significados: “sentir”, “entender”, “compreender”, mas também “dar à luz”, “esclarecer”, “clarificar”. Ou seja, o nome da autora já encerra em si toda a sua obra, esta viagem à procura de si mesma, da sua essência, para finalmente acender, ou melhor, reacender, reconhecer e assumir por inteiro a sua luz interior, que essa, “em nenhum lugar se extingue”. 

José Luís Correia

16032024

Biografia de São Gonçalves

São Gonçalves nasceu (a 1 de Janeiro de 1968) em Frossos, aldeia nas margens do Vouga, pertencente ao concelho de Albergaria-a-velha, distrito de Aveiro. 

Vive há mais de 30 anos no Luxemburgo. 

É licenciada em Humanidades-Estudos Portugueses, com uma pós-graduação em Relações Interculturais.

Em 2014 lançou com a artista plástica peruana Myriam Kruger o projecto “Terra de Poetas”, que foi um encontro literário regular de poetas no Luxemburgo.

Participou ao longo dos últimos anos em várias antologias poéticas em Portugal e no estrangeiro. 

Participou na coletânea de contos “Correr mundo. Doze mulheres, doze histórias de emigração (Oxalá Editora, 2020).” 

Foi co-coordenadora e coautora da coletânea “Esch – lugar de memórias (Oxalá Editora, 2022 e de Esch2022-Capital Europeia da Cultura) uma iniciativa da Livraria Pessoa. Colabora com a Livraria Pessoa e tem sido uma incansável divulgadora da literatura e de autores portugueses, além de promover eventos literários. Colaborou já com várias publica4ões literárias e mais regularmente com o jornal Bomdia.lu e com a Livraria Pessoa. Dinamiza ainda um clube de leitura ”Sexta de livros”.

Foi coordenadora da IV Antologia de Poetas Lusófonos na Diáspora (Oxalá, 2022), assim como da Coletânea de Contos “Contos e histórias daqui e d’além” (Oxalá Editora, 2023). A editora voltou a convidá-la para coordenar o quinto volume da antologia de poetas da diáspora a sair no final de 2024.

Ganhou recentemente uma bolsa da parte do Instituto Camões para organizar e dinamizar a biblioteca do centro cultural Camões na cidade do Luxemburgo.

Bibliografia de São Gonçalves

São Gonçalves publicou seis livros, um livro de prosa e reflexão, e cinco de poesia. Destes cinco, três são a solo e dois em parceria com a pintora portuguesa Edite Melo:

– Longos São os Caminhos, 2010 (Ed. Edium), prosa, sob o nome Conceição Gonçalves;

– Como um rio / Comme un fleuve, 2012 (bilingue), (Pastelaria Studios Editora), poesia;

– A alma da cor, com Edite Melo (Edições Vieira da Silva, 2013), poesia e pintura;

– O silencioso canto das aves migratórias (Edita-me, 2016), poesia

– Artes em diálogo, com Edite Melo (edição de autor, trilíngue, 2019), poesia e pintura;

– A luz em nenhum lugar se extingue (Oxalá Editora, 2024), poesia.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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