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Portugalidade, 1.1: Os mitos de origem e a etnicidade

Os autores que até hoje têm tratado da formação da nacionalidade interessaram-se quase exclusivamente pelos antecedentes da fundação de Portugal como unidade política. Buscaram desde a Pré-História os indícios das diferenças que separam Portugal da Espanha. 

José Mattoso, O essencial sobre a formação da nacionalidade, Lisboa, INCM, 1986, p. 3

1. Viriato, os Lusitanos e Tubal, ou a vontade independentista

Em todas as unidades territoriais é forte a necessidade de afirmação de coesão. Facilmente a representamos como sinónimo de longevidade, de legitimidade dos poderes vigentes, da existência de instituições sólidas e duradouras, ferramenta contra a contestação e alimento para a catalisação de sentimentos comunitários. A coesão é quase sinónimo da possibilidade de existir uma identidade comum que se sobreponha aos regionalismos sempre criadores de antagonismos e rivalidades.

Nada melhor para afirmar uma suposta coesão que dizer que ela já existia muito antes do sistema político e religioso vigente, remontando-a a um in illo tempore, a um momento simbolicamente genesíaco, a uma Era anterior aos laivos de civilização, por isso pura, cheia de valores e prenhe de potencial.

Quando a cultura popular ganha foros de legitimidade através da cultura, o mitológico é a ferramenta que nos retira da mole onde estão todos os outros e nos torna únicos, esquecendo que esse uso mitológico é igual entre portugueses e franceses, para apenas referir estes. Ora, se é verdade que se trata de discurso mitológico, sem base factual credível, essa metodologia de criar identidade não é única nem nos transforma em nada de especial. Apenas usámos a metodologia que tantos outros reinos e casas reinantes usaram: ir ao passado, bíblico ou romano, buscar a sua filiação, mostrando-se anterior a esse marco civilizacional que é Roma.

Todos vamos buscar materiais ao que historicamente nos nobilita. Temos o mito da romanização e, como todos os europeus ou “ocidentais”, queremos ser descendentes do classicismo; mas temos também o mito da etnicidade que nos mostra que já éramos identidade antes dessa “globalização” latina, antes dessa primeira “União Europeia”. Os nacionalismos europeus sempre adoraram estes materiais pré-romanos.

Desde que os Lusíadas de Camões se afirmaram como canto pátrio paradigmático, especialmente no romântico e nacionalista século XIX, que admitimos a referência à tribo pré-romana como sinónimo de português. Resistindo aos grandes impérios, fossem as invasões francesas ou o ultimatum britânico, imitávamos e respondíamos de forma quase inata, reatualizando essa luta inicial dos Lusitanos contra os invasores romanos: somos pequenos, mas resistimos heroicamente contra os esmagadores impérios. Afirmava Camões, no Canto I d’Os Lusíadas, tendo-o lido todos os estudantes portugueses do nível secundário nos últimos dois séculos, criando uma verdadeira grelha mental nacional, “a fama antiga alcançada na inimiga guerra romana”.

Ao nosso registo mitológico corresponde, de aparente pleno direito, ao que Goscinny grafou para a célebre aldeia dos Gauleses: “Uma aldeia povoada por irredutíveis portugueses ainda resiste ao invasor”. Ambos, Portugal e França, gostam de usar como sinónimo de nacionalidade a referência aos resistentes à esmagadora invasão romana: tantas vezes, no universo popular do futebol, ouvimos falar da Equipa Gaulesa ou da Seleção Lusa.

De forma quase inesperada, remeter a base da identidade para os Lusitanos é um discurso que valoriza o pagão, o pré-romano e o pré-cristão. Os nacionalismos do século XX, quantos foram buscar a essência da “raça” a essa dimensão tribal anterior à uniformização que Roma e o Cristianismo implementaram. De facto, Roma e o Cristianismo, apesar de nunca negados, foram sempre para alguns nacionalismos como que incómodos, uma vez que esmagaram, com a sua Pax Romana, as etnicidades e os regionalismos, uniformizando todo o Mediterrâneo aos mesmos aspetos culturais. Roma não era o modelo dos nacionalismos, a não ser se se encarnasse uma dimensão imperial de domínio na Europa. Ora, se a Alemanha e a Itália dos anos 20 e 30 do século XX vestiram esta função, Portugal não tinha como. Só Viriato nos salvava de uma orfandade milenar que se repetia na época dos fascismos europeus.

Contudo, e em rigor, “o termo Lusitânia e o étnico que está na sua origem constituem criações da língua latina”, como nos recorda Amílcar Guerra. Por isso, “as primeiras referências a esta entidade não são anteriores aos inícios do século II a. C., compreendendo-se, desta forma, a ausência de qualquer informação sobre elas nos mais antigos textos referentes à Hispânia”. Sim, os Lusitanos são uma construção necessária por parte de quem invade e, para tal, tinha de reconhecer o território, de dar nome aos povos e aos lugares, mas não deixa de se tratar de uma visão do outro, não uma descrição do próprio, ficando por saber como os supostos lusitanos se tratavam a si próprios em termos de identidade.

No campo das questões de poder, é para este quadro histórico e correspondente conteúdo mitológico que remetemos uma das frases que mais gostamos de apresentar, num misto de valentia que se afirma contra todos, e um certo e aparente gosto pela anarquia, uma endémica má relação com as instituições e os poderes instituídos. Atribuída, ora a Júlio César, ora a Sérvio Sulpício Galba, Cônsul e Pretor na Hispânia, a frase claramente apócrifa “nos confins da Ibéria há um povo que não se governa, nem se deixa governar”, passou a ser um refrão independentista que nos marca com um fado de inevitável afastamento às sociedades europeias “organizadas” e, assim, desenvolvidas. De facto, esta afirmação não só nos remete para uma forte resistência aos invasores, como nos coloca numa constante má relação com as elites dirigentes, talhando-nos uma veia para a autonomia e legitimando até, a maledicência face aos dirigentes. Recentemente, aquando da crise financeira que resultou no apoio da União Europeia e no “controle” efetuado pela Troika, esta frase foi loucamente usada na blogosfera e em inúmeros artigos de opinião, como tratou a fundo Isabel de Barros Dias em artigo científico de 2015.

Neste ponto, temos de olhar para o que a História nos fornece. José Mattoso há muito que nos alertou para funcionalidade estrutural da abordagem nacional ao passado: “buscaram desde a Pré-História os indícios das diferenças que separam Portugal da Espanha”. Numa nova abordagem, depois do trabalho de Carlos Fabião e de Amílcar Guerra, publicado em 1992, é impossível atribuir uma continuidade geográfica entre a Lusitânia e Portugal, seja a Lusitânia onde supostamente viveram os Lusitanos, ou a província romana homónima. De resto, a investigação arqueológica e, fundamentalmente, epigráfica, mostra-nos que no território que é hoje Portugal, várias tribos / povos de dimensão significativa vivam: Gróvios, Calaicos, Cónios e Celticos, por exemplo. Recorda-nos José Mattoso que “o elemento dominante em termos de distribuição de povos é a existência de comunidades unidas por laços extremamente ténues, frágeis e instáveis, e a não existência de qualquer vínculo profundo que englobasse todo o território que depois se veio a chamar Portugal. Ou seja, em termos políticos, os vínculos trazidos pelos Romanos devem-se considerar exteriores às comunidades”.

Em relação ao território dessa tribo, as fontes coevas são escassas e não apontam uma localização consensual, se bem que podemos afirmar que é impossível criar uma ligação, quer entre esse território e a província romana, quer com o território português (de autores antigos, falamos de Diodoro, Apiano e Tito Lívio, descartando-se Avieno cuja suposta referência à Lusitânia não é hoje aceite pelos investigadores). Em relação à província romana, não há qualquer relação geográfica direta entre esta e o território português, sendo de notar, com ironia, que a capital desse território de que gostamos de nos dizer descendentes, não por acaso, está no que hoje é Espanha, e não em Portugal.

Aliás, muitas cidades e regiões espanholas, como Zamora, onde Viriato tem uma estátua, se reclamam descendentes dos Lusitanos, sendo mais provável que este suposto caudilho fosse do Sul da península, tendo lutado em campanhas na zona de Sevilha, que dos montes Hermínios, mito criado por Braz Mascarenhas já na segunda metade do século XVII, colocando o herói antigo nas terras que ele próprio defendia. É num contexto de forte sentimento independentista e antiespanhol, que Mascarenhas, governador da praça-forte de Alfaiates, perto da Guarda, na época de D. João IV, redige a primeira grande epopeia de glorificação dos lusitanos e de Viriato, o poema Viriato Trágico. Poema Heroico, editada postumamente em 1699, e popularizada posteriormente por João de Barros.

De resto, a grande linha condutora das narrativas sobre Viriato e os Lusitanos reside na visão providencialista da história. Caso de extremo interesse é o de Bernardo de Brito e sua a Monarquia Lusitana. A esse respeito, é sempre importante regressar à leitura de José Eduardo Franco, especialmente ao seu livro O Mito de Portugal:

“De qualquer modo, é em Bernardo de Brito, paradigma por excelência da corrente historiográfica apologético autonomista (emergente no quadro da chamada ‘literatura autonomista’ sob o governo dos Filipes), que é apresentada uma visão mítica acabada da história de Portugal. Em Oliveira, em Duarte Nunes de Leão ou em Pedro Mariz encontramos uma historiografia afirmada, polemicamente, em forma de confronto, refutação – e até, em certa medida, em jeito de vindicação – em relação às perspetivas historiográficas diversas das suas. Brito não perde tempo em apresentar ou em desconstruir as opiniões contrárias, mas desenvolve, de forma prolixa, as suas especulações nacionalizantes acerca da visão de Portugal antigo, começando por Adão. Ergue uma verdadeira história maravilhosa de Portugal.”

A Monarquia Lusitana é, aliás, uma longuíssima narrativa efabulada que em tudo conduz a uma hipervalorização dos Lusitanos como corolário de toda a caminhada pré-romana, usando-se, para isso, não apenas as personagens bíblicas, mas mesmo as da mitologia greco-romana, transformando-os, numa hermenêutica assaz interessante, em personagens históricos de natureza semelhante à atribuída aos bíblicos, equiparando monoteísmo e politeísmo numa funcionalidade comum de valorização dos antecedentes de Portugal. José Sílvio Moreira Fernandes, num extenso e muito bem documentado artigo, sistematiza, a propósito do uso da figura de Hércules, posto agora a passar as Colunas de Hércules e a ser ator no território pré-nacional, por Bernardo de Brito:

“parece-nos importante realçar que fica a convicção de que Bernardo de Brito laborou na ideia de não só atribuir notoriedade ao passado de Portugal, pela ligação à antiga Lusitânia, como também de expressar o seu profundo apreço pela sua pátria, tendo adaptado as fábulas mitológicas e, particularmente, a de Hércules, como forma de representação de valores que julgava, por certo, existirem na sua época. […] A reescrita do mito de Hércules contém elementos autonomistas, visto que ele se encontra estruturado de forma a ser consistentemente associado ao sentido evolutivo da história que marca o fundamento e o progresso das nações.”

Mas a vontade de ser “filho de algo” recua mais ainda. Se o trabalho centrado na Lusitânia e na época romana é por demais complexo e recheado de mitos vários, o olhar para épocas ainda mais recuadas mantém e aumenta essa natureza efabulada de olhar para a História. Dentro da sua já referida inexatidão, até André de Resende, no De Antiquitatibus Lusitaniae, é claro ao afirmar a impossibilidade dessa tarefa:

Não me será fácil dizer a quem terá estado sujeita a Lusitânia antes dos Cartagineses e dos Romanos (…) Tudo isto é excessivamente obscuro e na verdade as fábulas aborrecem.

Tubal, neto de Noé, o quinto filho de Jafet (Génesis 10, 2), é apontado na Monarchia Lusitana (1597), redigida pelo cronista Frei Bernardo de Brito, como o povoador deste extremo oriental depois do dilúvio, o “primeyro Pay & author da gente Portuguesa” (fl. 10v.), o fundador de Setúbal. Se a argumentação que tomava Viriato, lusitano, como fator independentista, aqui, com Tubal, a visão remetia Portugal e Espanha para um passado conjunto, por isso a obra era dedicada a Filipe I, defendendo a monarquia unificada dos dois reinos.

Esta visão estará no imaginário nacional com alguma solidez. Túbal e Luso fundam, segundo Fernão de Oliveira “A antiga nobreza e saber da nossa gente e terra de Espanha, cuja sempre melhor parte foi Portugal”. O segundo, descendente de Tubal, seria quem daria o nome à Lusitânia. Duarte Nunes de Leão, na Descrição do Reino de Portugal (1610), explana esta tese:

“Luso, cõpanheiro de Bacho, a que por outro nome chamão Lysia de que também a dita prouincia se dizia Lysitania. Dahi a muitos centos de anos veo a Lusitania chamarse Portugal por esta causa. Na ribeira do rio Douro ha um lugar antiquissimo que o Emperador Antonino em seu itinerario chama cale, & agora se chama Gaia. O qual por seu lugar firmado em alto, & que tinha trabalhosa seruentia para os moradores que erão os mais delles pescadores, començarão a povoalo na parte baxa perto á ribeira do rio. E assi foi crescendo, & se chamou Porto de Cale, & despois Porto Cale, & per tempo Portugal mudando o C. em G.”

No século XX, números autores retomaram esta tese num sentido, não apenas nacionalista, literal na forma de seguir estes textos, mas de valorização dinástica e de legitimação monárquica. Tal como no caso de Mascarenhas ou de Bernardo de Brito, também nos séculos XIX e XX, muitos livros se escreveram com base em poucas linhas de texto latino sobre este caudilho ou líder militar lusitano, e poucas mais sobre os lusitanos. Interpretação e procura de sentido foi sempre o motor da escrita em torno das origens. Portanto, de natureza mitológica, nada depreciável, antes pelo contrário, mas pouco exata e nada historiográfica.

Paulo Mendes Pinto

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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