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“Os crimes do verão de 1985” de Miguel D’Alte

Título: Os crimes do verão de 1985

Autor: Miguel D’Alte

Editora: Suma de letras 2023

Miguel D’Alte nasceu no Porto, viveu em vários países, atualmente reside no Luxemburgo. 

À semelhança do primeiro romance “O lento esquecimento de ser” editado em 2022, a voz narrativa do Miguel expande-se pelo tempo e pelos espaços, acompanhando a densidade dos personagens e a sua complexidade psicológica.  Para o romance em análise, Miguel D’Alte empresta uma citação do livro “Os anos”, da escritora francesa e prémio novel da literatura em 2022 Annie Ernaux. e que serve de epígrafe.  No dicionário breve de termos literários, pode-se ler que uma epígrafe serve como divisa a anunciar ou a resumir o assunto de que trata o capítulo ou toda a narrativa. E que dimensão humana tem esta epigrafe, caro Miguel! 

Salvar… Salvar qualquer coisa do tempo onde não voltaremos a estar”

E é esta vontade de “salvar essa coisa do passado” nas palavras da Annie Ernaux que Miguel vai estruturar toda a história. Salvar, resgatar, desvendar o que de bom ou de mau exista na vida dos personagens, ainda que, com alguma mágoa no que resta da memória das pessoas e dos acontecimentos.  

Os crimes do verão de 1985 é um romance policial cujas características do ponto de vista literário assentam no acontecimento de um crime; crime que vai sendo desvendado ao longo da narrativa e nela o autor vai dando pistas mais ou menos evidentes, terminando com a revelação, o motivo ou o autor/es do crime.   Miguel D’Alte constrói uma história que se vai alternando entre analepses e prolepses, ou seja, avanços e recuos no tempo. E o caso dos crimes do verão de 1985 vai-se desvendando aos olhos do leitor como quem constrói um ‘puzzle’ em que se vai colocando peças, tirando peças, tentando algumas erradas, outras mais justas até encontrar a unidade do quebra-cabeças. 

O espaço diegético é partilhado entre uma ilha, a ilha do “Poço negro” e Lisboa e numa dimensão temporal de 27 anos. O ano de 1985, aquele, onde aconteceram os crimes e o ano de 2012, quando o mistério é desvendado.  Poço negro é um lugar esquecido do continente “Era uma ilha esquecida pelo mundo e pelo tempo, qual civilização perdida, onde nevava no inverno e fazia um calor abrasador no verão, como se esta não pertencesse aquele lugar. P. 25” Poço negro é no meu entendimento o primeiro indício da tragédia. Perguntamo-nos sobre o significado semântico de “poço negro”;  rapidamente se conclui ser um local onde tudo o que lá cai morre ou é esquecido, é um lugar tenebroso, sem saída, sem luz, que absorve tudo à sua volta. E é neste lugar que uma parte dos personagens deste romance vão ter um fim terrível.

O escritor Miguel D’Alte revela na sua criação literária uma aproximação e um gosto por construir personagens que são muitas vezes marcadas por múltiplas carências e alguma violência. E é sobre estas pessoas que o escritor Miguel D’Alte vai cimentar a sua voz narrativa. Lemos isso no seu primeiro romance “o lento esquecimento de ser”, obra inaugural do escritor.  Obra que dá relevo à vida e ao percurso do personagem Henri Benoit, um escritor face a complexas impermanências da existência; um homem profundamente marcado por uma infância violenta e ao longo da vida experimenta êxitos e fracassos, momentos de algum conforto e visibilidade, mas muitos mais anos de completa adição ao álcool e ao desalento, tornando-se por vontade própria uma pessoa invisível.

No romance em análise “Os crimes do verão de 1985”, assistimos ao desenrolar de personagens que no universo diegético são consideradas de personagens redondas. Isto é; personagens que se revestem de uma complexidade bem vincada do ponto de vista psicológico. “A personagem redonda é, ao mesmo tempo, submetida a uma caracterização elaborada que se submete a uma condição de imprevisibilidade onde a revelação gradual dos seus traumas, vacilações e obsessões constituem os principais fatores da sua configuração. (dicionário de narratologia, Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, p. 315.)

Neste sentido, o escritor dará voz e presença a personagens complexas do ponto de vista psicológico e muitas vezes excluídas na sociedade, mostrando através da sua ação, no universo diegético e no espaço temporal em que se movimentam, o que há de mais sublime e de mais perverso na humanidade. Partindo desta premissa, assistimos à intervenção de vários personagens com características que definem a sua relevância e complexidade na construção da narrativa e na inserção sociocultural do espaço e no tempo.

O personagem principal, Ademar Leal, o protagonista através do qual toda a ação evolui, é um homem em plena crise de identidade. Jornalista desempregado, com uma adição ao álcool e um casamento fracassado. Procura respostas para os seus desacertos. Para a compreensão do que leva um homem ao sucesso e muito rapidamente ao fracasso. A seguir temos Elias Rufino, um investigador enigmático que chega a ilha interpelando, questionando sem se saber ao certo ao que vem. Há; também, a personagem Beatriz, uma jovem adolescente que ama os livros e a leitura, filha de uma mãe alcoólica e que gosta muito de ler. É pela sua voz que o autor vai desenvolver o gosto pelos livros e a paixão pela escrita, assim como introduz, de uma forma subtil, algumas referências literárias, O sonho americano com o Grade Gabstzy, a Lolita de Nobokov, os livros que devoraram o meu pai de Afonso Cruz, entre outros.  O Romeo Cávia, jovem apaixonado por Beatriz, filho do presidente da câmara da ilha, um pai violento. Romeu cresce órfão de mãe, adito de drogas, e será no contesto do crime o principal culpado da morte da Beatriz e das crianças. Há um chefe de polícia, o chefe Pratas que faz tudo o que pode para desvendar o crime, mas é travado por poderes superiores a si.  Um Coronel Russo, amigo e protetor de Beatriz, um homem solitário e estranho que ninguém sabe quem é, e em quem vão recair as primeiras suspeitas de práticas de pedofilia. E há um padre com um problema de deficiência motora, move-se, aparentemente numa cadeira de rodas, longe de pertencer ao rol dos suspeitos. Há também uma família disfuncional, pai e filhos com um histórico de violência e drogas. 

E há um tempo, uma cidade e uma pequena ilha onde como em todas as sociedades, a ambição corrompe, exige, condena os fracos e absolve os homens de influência e poder. 

Resta-me sublinhar o cuidado que o autor teve em terminar o romance com a ideia de que o amor e a aceitação são ainda o caminho mais seguro para a redenção. E como foi referido na epígrafe, “salvar qualquer coisa do tempo onde não voltaremos a estar”, salvar a ideia de um tempo feliz para que a existência não tenha sido em vão, nem que seja apenas a memória de um toque, de um cheiro, de uma emoção, para a vida valer a pena ser vivida apesar do caos, da injustiça e da crueldade.

São Gonçalves

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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