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A tristeza tem campo de flores

Começar o dia sem receio era coisa tardia no seu pensar. Mal acordava já lhe doía a alma. Ir trabalhar começava a ser um arrastar de passos e até o velho e rotineiro pegar no volante que dantes lhe dava prazer, era um ruir vagaroso de vontade. Contrariada deixava a garagem a reduzida velocidade, mastigando a estrada, adiando a hora, querendo reduzi-la ao tempo da insignificância. Na empresa sentava-se na secretária, abandonando o corpo mole sobre a cadeira, olhando os colegas como aspirantes a figurantes de uma peça de teatro a que queria fugir. Se de vez em quando sorria, o sorriso parecia despegar-se do rosto como gelatina a derreter-se ao calor e se de vez em quando parecia afundar-se no meio dos processos em cima da secretária era porque tinha de fingir que se aplicava. Mas sabia que se atrasava, que o trabalho se acumulava e que teria que fazer horas em casa atafulhada de papeis, sem poder de concentração e sem disciplina. Ali, porém, olhava os papeis em desconsolo. Tomava café, esboçava interesse nas reuniões, fingia-se capaz. Sentia o desleixo no vestir, sentia o desleixo no modo como deixara de tomar conta de si. As quotas do ginásio em pagamento atrasado, as caminhadas deixadas, a má alimentação, o excesso de doces, a alienação ao café.

Olhava-se ao espelho e via-se inchada por fora, rede esburacada por dentro. Todos lhe diziam ser uma fase. O tempo ajuda a ultrapassar afiançavam. Ela sabia que sim mas estava a ser um tempo muito demorado, muito longo e não havia modo de extinguir aquela dor, que parecia elástica, esticando-se ao longo dos dias .

Acabar o dia sem receio da noite era coisa que já desconhecia. Adormecia em cansaço de procurar o sono e durante a noite acordava de olhos aterrados procurando a luz do dia para não ter que se esforçar de novo a buscar o sono.

Depois aquele eterno choro colado ao pensamento. Chatice. Apanhava-a nos sítios mais estranhos a fazer as coisas mais normais, como por gasolina no carro ou comprar pão na padaria da Amélia que a olhava de soslaio e atendia uma cliente à sua frente para lhe dar tempo de se recompor. Chorava no carro, na banheira, na cama, a andar na rua. Chorava com pena de si mesma, com um lamento prolongado de auto piedade miserável que ainda a fazia sentir pior.

Nunca mais vinham as férias, pensava sempre enquanto elas não eram semanas no calendário. Depois elas chegavam e nunca mais era tempo de voltar ao trabalho, porque os dias pareciam uma imensidão e o tédio agigantava o pensamento.

A certa altura pensou que tinha de se tratar. Seria depressão decerto precisava de ansiolíticos ou coisa parecida. Qualquer coisa que a deixasse amorfa e em esquecimento até de si e da sua pena própria. Marcou consulta com o médico de família que a mandou para um psicólogo. Foi a duas sessões. Não conseguia falar. Olhava o homem à sua frente e só pensava em quanto era patética em estar para ali a debulhar pensamentos e sentires para depois lhe dizer que a culpa fora do pai por ter morrido quando ela tinha 8 anos. Ele nunca o disse, obviamente, mas ela sabia que seria isso mais tarde ou mais cedo que iria ser vaticinado. Sem sessões e sem medicamentos sentiu-se um farrapo. Não conseguia desabafar com amigas e muito menos com a mãe e a solidão incrustada na pele era agreste .

Amélia, a dona da padaria sua amiga desde menina, ofereceu-lhe um cachorro. Um felpudo cão com olhar mortiço e ar doce que a deixou em cascata. Mas o animal devia ter tendência para a depressão porque se movia pouco, olhava-a em prece e aconchegava-se nas suas pernas feito pedinte de carinho. Não era o companheiro ideal. Abraçava-o e chorava encostada a ele. Contagiavam-se e pareciam entender-se na cumplicidade de um estar desastroso.

Ela sabia que tinha de mudar. Porque será que nunca se sabe como?

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