De que está à procura ?

Portugal

A chuva

Encostou-se à enxada sentindo o suor escorrer graviticamente pelas costas. Caía uma chuva miudinha e ele já nem sabia se as roupas estavam molhadas da sua água ou da água dos céus. Tentou perfurar o olhar na neblina que invadia os campos pousando na terra com a sedução de leveza. Pareceu-lhe avistar um vulto perto do muro de pedra .Apurou o olhar e atirou o boné para trás .Era um homem, sem dúvida. Caminhava apressado junto ao carreiro, talvez fugindo da chuva, talvez, pois ía de cabeça descoberta. Porém , algo naquela forma de inclinar o corpo aguçou a curiosidade de José, que deixando cair a enxada, começou a andar na direcção do indivíduo. Este, de repente estancou e olhou para o lugar onde as pisadas de José fabricavam lama. Os dois homens enfrentaram-se em segundos e o sangue de José espessou no corpo. A água que o molhava gelou-o. O mais jovem repentinamente soltou-se do bruto olhar de José e saltando o muro embrenhou-se no milheiral da pequena quinta da Ti Júlia.

José sentiu uma dor abranger-lhe a vida, colando-lhe as pernas à terra, impedindo-o de pensar. Uma moínha crescia-lhe no peito. Ele sabia que aquilo podia acontecer. Há muito que esperava que acontecesse.  Sabia que tinha que cumprir a promessa que fizera à filha enquanto a enterravam. Todos lhe diziam que seria impossível, que ao fim de 20 anos ele não teria coragem de voltar à aldeia. Mas voltara sim. A mãe dele estava a morrer. E não devia ser por piedade que ele viera.O dinheiro que a velha meio louca espalhara pelos buracos do casebre onde vivia, era apelo suficiente. Ah era ele sem dúvida .O assassino, o violador! Aquela estranha forma de andar , de inclinar os ombros, aquele verme! Nem com a barba que lhe tapava a cicatriz no maxilar ele conseguiria disfarçar. Durante os anos que ele esteve preso, José esperara. A mulher acreditara que a promessa do marido escorreria liquidificada ao longo dos anos, gastos pela sede de vingança que esmoreceria. E enquanto foi viva, quis crer que tal não aconteceria, que o marido não iria desgraçar a vida mais do que já estava.

José caminhou rápido até casa. Como por hábito sacudiu as botas enlameadas à entrada, atravessou a cozinha, foi directo ao quarto e de cócoras retirou debaixo da cama a arma com que ia caçar lebres e coelhos com os amigos. Carregou-a. Passou-lhe a mão com gentileza. Mais balas no bolso. Abriu a porta do quarto da filha, lentamente, sentindo os olhos a afogar-se. Retirou uma fotografia da moldura.  Abriu os botões da camisa e colocou-a entre a carne e o tecido, sentindo o papel irritar a pele. Saiu de casa agigantando os passos até à aldeia.

Viram-no passar. Da taberna onde se encostavam os ossos gastos pelas montanhas e se bebia pela indiferença, Alberto avistou-o e assustou-se. O amigo passava danado, seguido pelo diabo, corpo lançado em raiva, a caçadeira prolongando-lhe a danação. Chamou-o da porta, mas José nem se voltou. Viu-o contornar a esquina da casa do presidente da junta e desviar-se pelo caminho pouco utilizado das terras da velha maluca. Que raio,ia José fazer para ali? Alberto franziu o sobrolho magicando e de repente , com a clareza da adivinhação, a sua tez empalideceu e um arrepio de medo toldou-lhe por momentos o discernimento.

José junto da casa da mãe do homem que ia matar, teve uma pequena hesitação.. Apesar de tonta, não queria que ela visse o filho a ser morto. Rodeou a casa, tentando não fazer barulho. Ouviu um ruído na dependência das alfaias. Aproximou-se. A chuva caía com mais intensidade, mas José já não a sentia. Espreitou pela pequena janela e viu-o tentando abrir com um machado um pequeno baú. José encheu o peito de ar, voltou para a porta e abrindo-a a pontapé, espessou-se na entrada, arma empunhada. O homem mais jovem voltou-se e ficaram olhando-se, suando, o medo corroendo, a coragem sobejando no rosto de José. Em tempos imaginara mil e uma formas de o matar causando-lhe dor, como ele causara à filha. Pensara em disparar primeiro para a rótula do joelho, depois para os genitais, depois para o estômago onde a dor se encalhava e o tempo de morte era tardio. Imaginava-se sentado ao seu lado enquanto o via morrer em gritos, o sangue abrindo caminho em freios de libertação. Naqueles segundos em que José gozou quase em êxtase o medo nos olhos do outro, Alberto chamou-o numa angústia, correndo na sua direcção. José voltou ligeiramente a cabeça perante o chamamento que não esperava. E nos segundos seguintes, sentiu o frio do corte, o esguicho do seu sangue cintilar na camisa, rasgada pelo machado atirado contra o seu peito. Resvalou até ao chão, a surpresa no olhar, a chuva caindo pelo buraco do telhado gasto, molhando-lhe o rosto. Atordoado ainda lhe ocorreu que a sua menina sorria-lhe num pedaço de papel trucidado, empapado pela chuva, sangue e lágrimas escorridas de um coração aleijado.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA