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Rodrigo Mercadante e o teatro libertador da Cia do Tijolo

Mineiro de Belo Horizonte, filho de cantores líricos, Rodrigo Mercadante estreou profissionalmente aos seis anos, integrando o coro da ópera Carmen, de Bizet. Ainda na infância, estudou piano e ao se mudar para São Paulo, no início dos anos 1990, tornou-se ator. De lá para cá, integrou o elenco do Teatro Ventoforte, sob a direção Ilo Krugli, e do Centro de Pesquisa Teatral, do Sesc São Paulo, dirigido por Antunes Filho. Atualmente, é um dos mais destacados nomes da premiada Cia do Tijolo, que inspirada em Paulo Freire, tem levado para todo país seu teatro libertador, criativo e de rara sensibilidade, pelo qual, em 2009, recebeu o Prêmio Shell pelo espetáculo Concerto de Ispinho e Fulô, baseado na obra de Patativa do Assaré.

Quando a descoberta do teatro?

Sou filho de artistas, de dois cantores líricos. Meu pai e minha mãe se conheceram no palco, nos festivais de inverno, em Ouro Preto. Subi pela primeira vez ao palco aos seis anos, numa montagem de Carmen, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, Fazia parte do coro infantil. Participei desse coro até os 13 anos, assim como de diversas óperas naquele período. Dentre elas, A Flauta Mágica, Judas Macabeus e Orfeu.

E os anos de formação, em Minas?

Todas as minhas memórias mais antigas me ligam à música. Tenho a impressão de que aprendi a ler as primeiras notas musicais antes das letras. Em Minas, estudei piano e teoria musical. Já o teatro surgiu mais tarde, em São Paulo.

Como surgiu a Cia do Tijolo e por que foi batizada com este nome?

Surgiu por causa de nosso contato com Paulo Freire. Quando realizamos o primeiro trabalho do grupo, o show musical Cante Lá que Eu Canto Cá, nos defrontamos com um desafio: como dar conta de um poeta do tamanho do Brasil, sem sermos biográficos demais? Que recorte fazer nesse tema tão grande? Aí, a partir de uma conversa com o diretor de teatro Ilo Krugli e com a educadora Rita Rozeno, surgiu o nome de Paulo Freire. Aprender a ler a vida para depois ler as palavras. Patativa era a própria encarnação dessa máxima de Paulo Freire. Um homem que frequentou a escola por seis meses mas, mesmo assim, aprendeu a ler “nos livros da natureza”, como ele mesmo dizia. São muitos os mitos em torno da figura de Patativa, esse poeta-agricultor. Dizem que ele conhecia Os Lusíadas de memória. Pode ser que seja um mito, mas que retrata a voracidade com que ele se ligava à cultura e aos livros é um fato. Para lidar com Patativa fomos ler A pedagogia do oprimido e A pedagogia da autonomia, do Paulo Freire. Assistimos a muitos vídeos com o grande educador e conversamos com Madalena Freire, sua filha. Porém, voltemos ao “tijolo”. Paulo Freire, ao tratar da educação de adultos, mais especificamente de trabalhadores da construção civil, utiliza a palavra tijolo como palavra geradora, primeira palavra prenhe de sentido para aqueles alunos, a partir da qual se iniciaria o processo de alfabetização. Portanto, Cia. do Tijolo é uma homenagem a Paulo Freire.

O que mais dizer de Patativa do Assaré, a grande inspiração do grupo?

Patativa, conforme disse há pouco, ilustra a trajetória almejada por Paulo Freire. Um homem que se torna sujeito autônomo, consciente de seu lugar na história, dos mecanismos de opressão, através de um contato carnal com a cultura. Patativa é o oposto de um analfabeto funcional. A cultura, para ele, é libertação, sentido e emancipação para si e para seus iguais. É um humanista exemplar que crê e realiza arte como forma de construção coletiva das condições de libertação. A poesia tem que se dirigir para o outro. É para a comunidade. Poesia recíproca. Não um exercício auto-referente de estilo.Em Patativa, há estilo, há beleza, mas há o outro para o qual eu me dirijo.

E de Garcia Lorca, outro autor central na trajetória da companhia?

Lorca parece tão distante de Patativa, não é? Mas descobrimos que não. Suas posições políticas, sua ligação com a terra, sua relação com as metáforas, com figuras de linguagem brotadas das entranhas de seu povo, tudo isso se aplica aos dois. Um dos mais conhecidos livros de Lorca, Romancero Gitano, conta histórias da Andaluzia em poemas rimados de sete sílabas. Guardadas as devidas proporções, é como no cordel. É verdade que Lorca, um erudito, estava perto das vanguardas européias, dos surrealistas e ultraístas, mas seu compromisso com a linguagem de seu povo, com suas expressões, suas canções de ninar, seus doces, liga sua obra à de Patativa, o bardo do Cariri. É como se houvesse uma ética comum. Ética escrita com letra maiúscula. Lorca fez teatro, música, pintou, foi conferencista. Assassinado aos 38 anos por ser socialista, homossexual e poeta. Seu corpo permanece desaparecido até hoje.Patativa teve mais sorte.

Como tem sido excursionar pelo interior do Brasil? O teatro ainda permanece distante da maioria dos brasileiros?

Já rodamos bastante por aí. Poucos são os estados pelos quais não passamos. Ainda há uma grande dificuldade no acesso ao teatro. No entanto, a relação de troca artística, fora do eixo Rio-S.Paulo, é sempre muito mais intensa e menos mediada pelas convenções sociais dominantes. A conversa com os intelectuais, pensadores e artistas flui com mais facilidade. Há tantas figuras extraordinárias espalhadas Brasil afora. O público, em geral, é mais aberto à troca. Não há nada mais lindo do que chegar a uma praça e fazer um espetáculo para homens, mulheres, velhos, crianças, cachorros, bêbados (sempre há um bêbado). Não há experiência mais comovente do que fazer espetáculo para uma mãe que amamenta seu filho. Isso, aqui em São Paulo, é mais raro. Nosso público é educado demais. Mas não me queixo de São Paulo, cidade em que há mais de 500 estréias por ano. Na periferia surgem cada vez mais núcleos de artistas, poetas, grupos teatrais, etc. No entanto, o Norte e o Nordeste nos proporcionam uma forma de sociabilidade que nos enriquecem de metáforas, sonoridade, poetas, imagens, histórias. Tentamos deixar para as pessoas nossas próprias experiências também. É como nos bons encontros de amor: quando acontece a magia, cada um sai como mais vontade de viver.

Optar por fazer teatro que não tenha apelo meramente comercial é um desafio muito grande?

Sim, por vários motivos. Uns, relacionados a questões de gestão interna dos coletivos de arte. Outros, a questões externas de sobrevivência material, reconhecimento e respeito. Um grupo de teatro que resiste está sempre negociando com as formas dominantes de produção, com as construções ideológicas que definem os paradigmas de sucesso ou fracasso. É um reinventar-se cotidiano, às vezes doloroso, mas, na maioria do tempo, libertador.

Qual a razão de homenagear Dom Helder Câmara em o Avesso do Claustro, trabalho mais recente da Cia do Tijolo?

Dom Helder foi uma figura fascinante. Um dos brasileiros mais importantes do século XX. O primeiro a denunciar no exterior as torturas do regime militar. Há, nessas figuras extraordinárias que nos inspiram, uma espécie de princípio ético fundamental, um impulso crítico que sempre aponta uma promessa qualquer de felicidade, de redenção. É possível olhá-los, estudar sua obra e trajetória e perceber isso. Patativa, Paulo Freire, Dom Helder, Frei Betto, Leonardo Boff, Chico Buarque, Mariana Pineda, Darcy Ribeiro, Pablo Neruda, Mario Benedetti, Eduardo Galeano e tantos outros. Um jeito crítico-esperançoso de pensar o amor, a injustiça, o homem, o cidadão, o país, a política, a vida. Esses princípios nos fazem querer unir a eles a nossa voz e o nosso canto.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada na Universidade de São Paulo(USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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