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Um conto de Natal (primeira parte)

Faltam dois dias para o Natal. O senhor Barros não apareceu nem deu sinal de si. Perguntou-se a vizinhos, amigos e conhecidos, verificou-se nos sítios onde a preocupação se poderia traduzir pela tragédia acontecida, mas nada (…)

 

A um canto da sala está um pinheirinho de Natal vestido com uma série de luzinhas intermitentes de várias cores, bolinhas, estrelas, laços, lágrimas cristalizadas, fitas decorativas, vermelhas, verdes, prateadas, polvilhadas com flocos de algodão a simbolizar a neve. No topo do pinheirinho está um Pai Natal. Abrigado em parte pelos ramos do pinheirinho está um presépio onde se destaca uma pequena cabana construída a partir de uma caixa de papelão, coberta de musgo e algumas pedras para enfeite, e dentro a típica manjedoura com o menino Jesus deitado. Maria, José, e os reis magos, três ovelhas, um carneiro, e dois pastores, são as pequenas peças em barro, estrategicamente colocadas em volta da manjedoura, dentro e fora da pequena cabana.

Na família Barros as decorações de Natal e a construção do presépio eram um símbolo de união, de amizade, amor, confraternização, harmonia e paz, e acima de tudo uma época especial, em família, uma vez que, lá em casa todos participavam na preparação da época natalícia.

A família Barros não era uma família rica, pelo que de rico se possa ter em consideração a situação financeira, muito embora pobre também não fosse. O Trabalho árduo do senhor Barros na intenção de garantir à sua família o sustento diário, o bom entendimento do casal baseado em valores de amor, compreensão e respeito mútuo, ajudavam e muito no dia a dia de uma família que encontrava felicidade no pouco que tinha, que era muito.

O casal tinha cinco filhos. Três rapazes e duas raparigas. Educados à semelhança dos valores e das tradições que foram sempre mantendo ao longo da vida.

A noite de Natal era uma noite especial. Não só pelos presentes que cada um recebia, consoante as posses assim o permitissem, mas pela magia que pairava no ar, envolvendo toda a família, embrulhando-a num manto invisível, de amor, de comunhão, de alegria e de paz.

Depois da consoada típica da noite, contavam-se histórias de Natal, ou conversava-se apenas em animada euforia Natalícia, no aconchego do calor emanado por uma lareira onde as chamas faziam estalar os cavacos que consumiam, numa espécie de embalo com a mistura de vozes e risos felizes, e por volta da meia noite a família dirigia-se para a igreja da aldeia para assistir à missa do galo.

O senhor Barros sempre teve a consciência de que nada dura para sempre, porque entre o saber e ter a consciência do que se sabe, presente no dia a dia, vai uma diferença tão grande como a de saber aproveitar e dar valor aos momentos bons que a vida nos vai oferecendo, sabendo-se também que por cada momento bom que ela nos dá, está por vezes um enorme sacrifício por trás.

Alicerçada nestes valores de quem sabe agradecer o pouco que tem, lutando sempre para ter mais pelo que é possível alcançar, com perseverança, com atitude, com coragem e com princípios de humildade, honestidade e grande sacrifício, a família Barros foi progredindo sempre sem perder ou se desviar de todos estes valores, e o senhor Barros e a sua esposa, Ermelinda Barros, conseguiram concretizar aquele que foi sempre um sonho dos dois, o de manter a família unida, o de passar aos filhos todos os valores dos quais sempre acreditaram, e o de proporcionar a cada um deles, um futuro, uma carreira, onde se pudessem realizar como homens e mulheres, conseguindo uma vida decente, interessante e desafogada financeiramente, mas sem nunca se desviarem do caminho da honestidade, da verdade, acima de tudo da humildade e do respeito por si mesmo e pelos outros.

Por isso, e porque já o admitimos no decorrer desta narrativa, que nada dura para sempre, os filhos do senhor Barros e da D. Ermelinda Barros cresceram, cada um tirou a sua formação universitária, ficaram homens e mulheres, e cada um seguiu o seu caminho, que nem sempre é o que se planeia no principio, por muitas e boas intenções com que se começa a caminhada da vida, e como nem só de boas intenções vive o homem, depois de formados, principalmente os rapazes, a procura de oportunidades que compensassem todo o esforço que os levou a eles e aos pais a tantos sacrifícios e tanta vontade de vencer, levou-os a terem que sair fora do país à procura de outros voos.

E agora, dos homens e mulheres que são, há nesta sala, no mesmo canto de sempre, o pinheirinho de todos os anos, as decorações e o presépio, e um vulto das crianças que foram, da azafama e da alegria em torno desta quadra natalícia, que se vai dissipando em memórias de grande saudade, quando a tristeza e a nostalgia de tempos que se esfumaram com o tempo, consegue ser mais forte do que o aceitar e conformar-se de que na vida tudo passa, tudo tem o seu tempo próprio.

Assim que os miúdos se formaram, cada um na sua área específica, foi pousá-los na palma da mão, dar-lhes um pequeno sopro de confiança e deixá-los voar com as suas próprias asas. E o casal, já a caminho do fim da vida, volta precisamente ao ponto em que tudo começou no início dessa mesma vida, a dois. Sozinhos.

O senhor Barros está agora sentado na sua poltrona, onde desfolha com entusiasmo um livro de José Saramago, e a dona Ermelinda Barros sentada junto à lareira a dar voltas às brasas com o atiçador, solta de vez em quando uns suspiros fortes que fazem com que os olhos do senhor Barros se retirem das letras do livro, disfarçadamente, para de soslaio a manter debaixo de olho.

O senhor Barros sabe bem traduzir aqueles suspiros. O Natal está a chegar e mais uma vez, os rapazes e as raparigas, não vão poder estar presente. Eles no estrangeiro a tratar das suas vidinhas. Começos de vida, de facto. Elas, no mesmo país, mas a muitas centenas de quilómetros da casa dos pais.
Mantêm contacto regular com eles, e as novas tecnologias são em muito uma boa ferramenta para atenuar a saudade. Mas não são a mesma coisa do que a presença, sem a distância, no caso deles, de milhares de quilómetros.

A dona Ermelinda Barros suspira, suspira, e o senhor Barros pensa. Pensa tanto que no dia seguinte quando acorda de manhã já tem uma solução para os suspiros da dona Ermelinda Barros.
Desliza da cama sorrateiramente e ao vestir-se veste-se também com uma nova esperança, um novo ânimo, porque o senhor Barros sabe que, para grandes males, grandes remédios.

Às nove da manhã está na porta dos correios e consigo tem cinco cartas com cinco destinos diferentes. Cada carta tem precisamente o mesmo conteúdo. Ou seja, o que escreveu numa, escreveu nas outras.
O senhor Barros sorriu à dona Celeste dos correios, que retribuindo o sorriso acompanhando-o de um caloroso bom dia, colou os selos nas cartas e depois de lhes atestar com um carimbo em cima, indagou,

“As boas festas para os meninos? Então eles não vêm cá este natal?”

A dona Celeste, tal como todos os outros conterrâneos da aldeia, não era uma coscuvilheira que quer saber tudo acerca dos outros, mas numa aldeia tão pequena onde todo o mundo conhece todo o mundo, perguntas como esta são mais uma manifestação de carinho e delicadeza do que propriamente meter o nariz na vida alheia.

“Sabe como é, têm a vida deles. Nem sempre é possível…”

Mas de facto a vida nos últimos três anos havia arranjado sempre maneira de, por este ou aquele motivo, se interpor no caminho de uma reunificação familiar na época Natalícia, mesmo que de nenhumas dessas vezes, de uma ou de outra parte houvessem más vontades, ou não se fizesse um esforço para que, aquela que foi sempre uma época tão especial e tão importante para todos nela envolvidos, se tornasse possível.

Sem revelar mais do que pretendia, muito sabiamente o senhor Barros deixou que o seu sorriso afável e meigo, sempre tão transbordante de simpatia, distraísse a Dona Celeste e a mantivesse fora de curiosidades que não podiam revelar mais do que fosse necessário ela saber.

Enviadas as cartas, dois dedos mais de conversa e o senhor Barros voltou para casa.

Entretanto, algures a norte de Inglaterra, mais propriamente a bonita cidade de Sheffield, edificada entre sete colinas que parecem proteger e ao mesmo tempo atalaiar os seus habitantes, Miguel Barros regressa a casa depois de mais um dia, cansativo e ao mesmo tempo gratificante, de trabalho.
Miguel Barros está nos inícios da sua carreira como advogado, em terras de sua majestade, e não se tem poupado a esforços no sentido de progredir e ao mesmo tempo assentar alicerces bem fundamentados e sólidos em relação ao seu futuro como advogado.

Ao abrir a porta apanha do hall de entrada um pequeno magote de cartas espalhadas pelo chão.

Reconhece numa delas a letra do pai. Fica curiosíssimo. Serve-se de um Macallen 18, atira com as outras cartas para cima do balcão onde esperarão vez para serem lidas mais tarde, e com o seu Scotch numa mão e a carta na outra vai sentar-se no sofá a ler.

Alguns minutos depois tem em linha telefónica os outros dois irmãos. João Barros, quatro anos mais novo do que Miguel é diretor financeiro de um prestigiado Banco, numa das suas sedes em Sheffield, e Pedro Barros, o mais novo dos irmãos, está a fazer um Phd em físicas na Sheffield University. Também eles haviam recebido uma carta do pai. Também a carta deles tinha o mesmo conteúdo escrito. Um poema, que Miguel leu em voz alta para os irmãos, para que pudessem confirmar o que cada um sabia já.

Com sacrifício, humildade, e persistência,

Na vida fiz tudo o que queria,

E com engenho arte e ciência

Da tristeza fiz alegria.

Do que queria tudo se fez

Como um sonho tornado real,

Mas falta-me uma última vez

Contar-vos mais histórias, na noite de natal.

A vida é cheia de memórias,

Às vezes um pesado fardo,

Mas ainda é das nossas histórias

As melhores memórias que guardo!

Depois de ter recitado o poema escrito pelo pai, aos irmãos que por sua vez seguiam atentamente palavra por palavra confirmando assim o que cada um deles já suspeitava, que as cartas eram iguais em conteúdo, os rapazes manifestaram alguma surpresa, não porque não estivessem habituados ao gosto, dir-se-ia mesmo, paixão, que o pai tinha pela literatura em geral, mas pelo facto de a carta não conter uma outra única palavra que não fossem as que pertenciam ao dito poema. Nem um olá, nem um – como estão, ou qualquer outra coisa. Um poema, não tinha nada de estranho, conhecendo eles o pai e o seu carácter, mas mais nada continha a carta, e isso por si só era um pouco estranho, por não ser usual.

A fervilhar de curiosidade o Miguel despachou os irmãos com uma certa firme delicadeza e prometeu mantê-los ao corrente dos desenvolvimentos do mistério das cartas e do mesmo poema nelas contido e ligou para Portugal, para casa dos pais.

Foi a mãe que o atendeu. Mais um acontecimento não usual. Era sempre o pai a atender, perdiam-se por algum tempo a trocar novidades, depois o auscultador dançava da orelha do pai para a da mãe, voltavam-se a perder não tanto em curiosidades mas mais cuidados e recomendações, sempre o reafirmar das saudades tão difíceis de suportar, e eis que vira Manel, e o auscultador fazia a dança de regresso à orelha do pai.

“Deitou-se cedo? Mas o pai está bem? Tens a certeza que está a tomar a medicação toda e a horas? Sabes como o pai é distraído…”

Sim, o pai tinha-se deitado cedo. Ultimamente andava um pouco estranho, mas não se abria em relação ao que o pudesse preocupar, se algo havia que o preocupasse. De resto está tudo bem. E estas foram as palavras mais ou menos que a Dona Ermelinda Barros conversou com o filho. “Não há razão para alarme. Sabes como é o teu pai…gosta de escrever.” Rematou.

Miguel Barros ficou mais descansado. Não havia razões para alarmes, dissera aos irmãos, para os tranquilizar. Afinal o pai não precisava de uma outra razão para escrever que não fosse simplesmente um momento de inspiração.

Isabel Barros, ou como era mais conhecida, Bélita, deixou a filha na escola básica de Santana de Cambas, uma pequena freguesia de Mértola, Alentejo, e antes de arrancar no carro tirou a carta do bolso e voltou a ler o poema que recebera do pai. Sorriu para si mesma e uma pequena ponta de nostalgia e saudade trouxe-lhe com nitidez à memória, a imagem dos pais.

Bélita saíra de casa, na pequena aldeia de Castro de Avelãs, no concelho de Bragança, assim que contraiu o matrimonio, para a terra do marido. Belita formara-se em pediatria e conhecera o marido na universidade. Ela médica e ele enfermeiro chefe, trabalhavam os dois no hospital de Beja. Sempre que podiam iam passar uma férias merecidas à aldeia dos pais, mas nos últimos anos o trabalho não lhes permitia tirar os dias desejados no Natal para se reunirem com os velhotes.

Bélita pegou no telefone e ligou à irmã.

“Recebi uma carta do pai, e imagina tu que tinha um poema. Apenas um poema.”
Catarina Barros vivia em Lisboa. Catarina era a mais velha de todos os irmãos. Era formada em filosofia e lecionava na universidade Nova de Lisboa.

Catarina respondeu-lhe,

“E o poema começa assim…? Com sacrifício, humildade e persistência…”

E depois as duas irmãs em coro, “Na vida fiz tudo o que queria…”

As irmãs acabaram em animada e divertida conversa, lembrando com alegria e satisfação algumas das façanhas do pai.

Faltam apenas cinco dias para o Natal e o senhor Barros anda estranhíssimo. Não só ensimesmado, mas acima de tudo misterioso. Saiu de casa muito mais vezes do que era habitual, e de cada vez que o fazia, escapulia em pezinhos de lã, voltando apenas uma horas depois. Escusou-se sempre a explicações, tentando de maneira subtil fugir às conversas.

“Que andas tu a tramar, homem?”

Foi a pergunta da Dona Ermelinda Barros, que era de facto mais uma confirmação de que sabia, pelos sinais espalhados por uma atitude não usual, de que o marido planeava alguma.

Mas entre uns sorrisos tímidos e fugidios, umas encolhedelas de ombros e uma perspicaz e arguta maneira de desviar o curso do rio, que do pouco barulho que faz alguma água há de levar com certeza, o senhor Barros lá conseguiu manter o mistério.

A quatro dias do Natal o senhor Barros, que mesmo não se sabendo qual e em que estratagema se assentavam os planos que mantinha muitíssimo bem guardados, a meio da manhã chegou-se perto da esposa, abraçou-a apertando-a suavemente contra o seu peito, depois beijou-lhe a testa e com carinho afagou-lhe os cabelos, e disse,

“Tanto trabalho, tanto sacrifício, criamos uma família, que cria outra família, e cá estamos nós, sozinhos.”

“É a vida homem. Foi assim com os nossos pais, vai ser assim com os nossos filhos um dia”

“Qual era o presente que gostavas neste Natal?”

“Que presente haveremos de querer nós que estamos velhos? Ter toda a família aqui reunida era o melhor presente que poderíamos ter. Mas, uma vez mais não vai ser possível. Temos que nos conformar com isso. A vida nem sempre é como nós queremos. Sabes isso.”

“Nada é impossível mulher. Tudo pode acontecer, quando as pessoas querem mesmo que aconteça.”
Aproveitando o ensejo o senhor Barros informou a esposa,

“Hoje à tarde vou a casa da tua irmã em Bragança. Ligou-me que tinha la umas coisas para eu trazer. Faz questão que as vá buscar.

E nessa mesma tarde o senhor Barros saiu depois do almoço, para ir a casa da irmã da sua esposa, como ele mesmo o afirmara. Mas o estranho da situação é que, nesse mesmo dia, ao fim da tarde, a irmã de Dona Ermelinda Barros apareceu em sua casa, afirmando que recebera um telefonema do senhor Barros a dizer que tinha que vir nessa tarde porque a irmã se encontrava doente.
Mas mais estranho ainda é que nesse dia o senhor Barros não voltou para casa.

Dona Ermelinda Barros ficou preocupada, mas no fundo no fundo uma espécie de tranquilidade que se assentava mesmo abaixo da normal preocupação pelo seu súbito desaparecimento, deu-lhe a força suficiente para não entrar em pânico, mesmo que nessa noite se ajoelhasse na tranquilidade do seu quarto e rezasse para que o marido não estivesse em perigo.

Faltam dois dias para o Natal. O senhor Barros não apareceu nem deu sinal de si. Perguntou-se a vizinhos, amigos e conhecidos, verificou-se nos sítios onde a preocupação se poderia traduzir pela tragedia acontecida, mas nada. O senhor Barros não foi visto nem achado em lugar nenhum. Nem hospital, o que era de certa maneira um alívio.

A Dona Ermelinda não teve outra alternativa. Sentou-se no sofá ao lado do telefone e começou a ligar para os filhos…

(Continua)

 

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