Dizem que o presidente americano Franklin Rosevelt, quando questionado sobre o porquê do apoio americano à ditadura sanguinária de Anastásio Somoza na Nicarágua, respondeu que “o Somoza poder ser um filho da puta, mas é o nosso filho da puta”. A citação parece ser apócrifa, mas se non è vero, è ben trovato. Nos tempos que antecederam imediatamente a Segunda Guerra mundial, o EUA não se podiam dar ao luxo de ter escrúpulos morais sobre os seus aliados. E o mesmo vai para o período da Guerra Fria, em que ser anti-comunista era quanto bastava para os EUA desviarem o olhar de abusos e atrocidades.
Mutatis mutandis, o mesmo se pode dizer da TAP. Para além de uma mão-cheia gente cega pela ideologia, mais ninguém consegue ver qualquer justificação para o governo português estar metido numa transportadora aérea. Pode ser que no PS, com ou sem D, ainda haja a crença que num futuro longínquo a TAP vai devolver os muitos milhões que os governos lá foram despejando. Enquanto esse dia não chega, a TAP vai servindo com arma de arremesso na arena política.
O ano passado, a Iniciativa Liberal (nota: sou membro da IL) liderou uma cruzada contra o governo de António Costa, cavalgando a comissão de inquérito ao pagamento de uma indemnização a Alexandra Reis. E o que parecia ser apenas mais um caso de boys e girls que gravitam pelos cargos públicos às custas do Zé Povinho,rapidamente se transformou num filme de Hollywood. Tivemos drama, tivemos serviços secretos, tivemos relatórios de ‘investigação’ encomendados e tivemos o desprazer de ver ao vivo e a cores a incompetência dos nossos eleitos.
E, como não podia deixar de ser, António Costa aproveitou-se da situação para seu próprio benefício. Após a demissão de Pedro Nuno Santos, coloca no cargo de ministro João Galamba, um notório espalha-brasas. A oposição agradeceu o brinde, e Costa foi mantendo mais um fogo aceso que lhe deu muito jeito para, em Novembro de 2023, usar como desculpa para sair do governo e poder vir para Bruxelas. Desconheço em que transportadora aérea.
Agora, é a vez do PS se servir da TAP para atacar o actual governo. A propósito de um relatório da Inspecção-Geral de Finanças sobre a venda da TAP em 2015, apontou a mira a Miguel Pinto Luz e Maria Luís Albuquerque. O primeiro é ministro das Infraestructuras mas na época foi o secretário de Estado que assinou a venda a David Neeleman. E a segunda foi ministra das Finanças de Passos Coelho, passado que nunca renegou ao contrário de outros, e recentemente foi proposta por Portugal para o colégio de comissários europeus. Os méritos ou deméritos de ambos são irrelevantes, o que importa é a relação deles com a TAP. E as tramoias que o senhor Neeleman pode ou não ter feito. Curiosamente,
como disse o Primeiro-Ministro, o relatório não acrescenta nada ao que já se sabia. Mas isso é irrelevante porque aparece no relatório uma suspeita de trafulhice feita nos tempos finais do governo de Passos Coelhos, que é quanto basta para o PS rasgar as vestes em defesa do interesse público.
Mas nisto, o PS não está sozinho. Toda a oposição se uniu em torno deste relatório para, cada um à sua maneira, zurzir no governo. PCP e Bloco com a cassete do costume, já era tempo de modernizarem e passarem para um CD. O Chega está com inveja de serem os outros a tomarem o protagonismo num assunto em que já disse tudo e o seu contrário. E a IL vem pedir, mais uma vez, a privatização da companhia.
A TAP está para a política portuguesa como as ditaduras sul-americanas estiveram para Rosevelt: muito pouco recomendáveis, mas úteis para os nossos interesses. A diferença está que a TAP, ao contrário do Somoza e outros que tais, serve ambos os lados da bancada política. Direita ou esquerda, governo ou oposição todos têm na TAP uma pedra para lançar contra o adversário. Já o transporte de passageiros, a racionalidade económica do negócio ou as quantidades de dinheiro lá despejadas a fundo perdido, isso é perfeitamente secundário, senão mesmo irrelevante. Penso que foi o Belmiro de Azevedo que cunhou o termo, perdócio: um negócio em que só se perde dinheiro. A TAP, e boa parte das aventuras empresariais dos nossos governos, são perdócios cuja utilidade é servir como arma na arena política. Boa parte do nosso atraso em relação ao resto da Europa explica-se facilmente pela energia e tempo que o nossos eleitos dedicam a estas telenovelas.
Nelson Gonçalves