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Sharik: homenagem póstuma a um amigo de quatro patas

Um escritor, (que não é o meu caso) por muito bom que seja, em certos momentos do personagem que cria, ou de quem está a falar, nem sempre consegue descrever com exatidão certos sentimentos que por serem tão profundos, tão intensos, não há palavras, escritas ou faladas, que os possam descrever. É assim quase como o médico, que por muito bom e competente que seja, nunca poderá avaliar com precisão a intensidade da dor física que o seu paciente está a sentir quando dela se queixa.

Os sentimentos de que falo são assim, não podem ser avaliados ou descritos porque vou falar do Sharik, o meu cão.

O meu tormento, resultado dos meus infortúnios com esta espécie, começou bem cedo na minha vida, e foi com uma cadelinha chamada Laica.

Eu tinha pouco mais do que sete anos de idade, e das poucas e ténues memórias que guardo desse tempo, do que me lembro é de uma cadelinha branca.

Não consigo visualizar o focinho da Laica, mas o que eu consigo, o que tenho bem presente na memória, é que eu adorava esta cadelinha. E um dia, por razões que eu nunca compreendi, mesmo que me tivessem sido explicadas um cem número de vezes, a Laica foi parar a outros donos (…)

E quando a Laica foi levada de casa, foi como se me tivessem arrancado um pedaço do coração à medida que ela, também contrariada, se ia afastando enquanto que o novo dono, indiferente ao meu sofrimento, e ao dela que quase tinha que ser arrastada para o acompanhar, a ia puxando. Fiquei inconsolável durante dias, chorando, às vezes quase em desespero, com umas saudades de morrer que eu tinha da Laica (…)

As saudades eram tantas que guiado por uma vontade enorme de ir ao encontro da Laica, vontade essa que como a dor física, não se mede nem se avalia, cheio de coragem enfrentei os meus medos e fugi de casa para ir ao encontro dela.

E com essa determinação, a perguntar aqui e ali pelo novo dono da Laica, acabei por dar com a casa. Aproximei-me e ao cimo de umas escadas de pedra exteriores que davam acesso ao primeiro andar da casa, como que sentindo a minha presença, a Laica saiu de uma porta, estacou no pequeno patamar que ficava ao cimo das escadas, olhou na minha direção, inclinou ligeiramente a cabeça, arrebitou as orelhas e começou a abanar o rabo em leque.

Quando a vi foi como se tivesse tido uma explosão de sentimentos a rebentarem todos ao mesmo tempo dentro do meu peito frágil de criança. Com a cara lavada em lágrimas e com a voz quase entalada, a soluçar, chamei-a ao mesmo tempo que desatei a correr na sua direção.

Encontramo-nos a meio das escadas de pedra e eu abracei-a, beijei-a, enrosquei-me nela, ri e chorei ao mesmo tempo, enquanto que ela, como louca, retribuía os afetos com tanta ou mais loucura do que eu, e nesse momento eu percebi que também ela não entendia a crueldade de nos terem separado. Disseram-me que não era por mal, e hoje eu compreendo isso porque durante a nossa curta passagem pela vida fartamo-nos de nos magoar uns aos outros e quase sempre que não é por mal.

Mas de certa maneira, o reencontro, mesmo que curto, e a aventura, passado o momento mais crucial, acabou por funcionar como uma balde de água fria numa fogueira e eu voltei a ser uma criança normal que tinha sofrido o seu primeiro grande desgosto na vida.

Cerca de três anos mais tarde, passava na RTP1 uma série Polaca que tinha por título “Os Quatro Blindados e o Seu Cão. Eu adorava ver essa série que retratava as aventuras de quatro soldados Polacos que lutavam ao lado dos Soviéticos contra as tropas nazis da segunda guerra mundial. Mas o verdadeiro herói desta série era o cão que tinha o nome de Sharik.

Por essa altura apareceu lá por casa um pequeno cão que eu logo batizei com o nome de Sharik. Nessa época, falamos de mais de quarenta anos passados, os cães comiam ossos, e eu não me lembro, pelo menos disso nunca tive conhecimento, de algum cão ter morrido por ter roído mal um osso. Há quem morra engasgado e, no entanto, ninguém deixa de comer. O meu Sharik adorava um bom osso, e eu como o adorava a ele, guardava sempre um osso com muita carne envolta nesse osso só para ter o prazer de o ver roer, porque de facto ele parecia apreciar o petisco com a maior das satisfações.

Nessa época os cães também tinham casotas, que eram os sítios onde eles dormiam e onde passavam também muitas vezes uma boa parte do seu tempo acorrentados, para que não viessem a criar fama de vadios, por se andarem a passear livremente pelas ruas ao deus dará e sem dono. Apesar de tudo, porque tínhamos um quintal bastante grande o meu Sharik passava a maior parte do dia à solta pelo quintal, e à noite era então acorrentado à sua casota, na qual eu tive o cuidado de colocar roupas velhas para lhe fazer um ninho onde ele poderia dormir toda a noite com o maior conforto.

Mas um dia o Sharik escapuliu-se da vedação do quintal e aventurou-se pelas ruas de uma vila que ele não conhecia e foi encontrar o seu destino fatal no guarda lamas de um carro que muito possivelmente, tal como o Sharik, hoje já não existe (…)

A partir daí decidi que não queria mais caninos em minha casa.

E um dia, já em terras de sua majestade, a minha cúmplice de mais de trinta anos, “my soul mate”, chega a casa com um cachorrinho preto e algumas manchas em castanho. E diz-me, “Olha…o teu Sharik…!” (…)

E connosco ficou até atingir a sua idade da velhice canina. Pelo caminho da sua jornada foram-se colecionando memórias, umas boas outras nem por isso, mas a jornada da outra espécie animal, a humana, não é de todo diferente porque também ela é composta de momentos bons, outros nem por isso.

Como homenagem ao amor por este Sharik, construi-lhe, pelas minhas próprias mãos, uma casota. E para aqueles que pensavam que eu não tinha jeito nenhum para estas habilidades, depois da casota feita não só senti orgulho da mesma, como também soube desde logo que a dei por terminada, que a mesma só tinha sido possível, e só tinha ficado bem feita, porque tudo o que é feito com paixão e com amor não tem como sair errado.

Nas noites chuvosas e geladas o Sharik dormia na cozinha, num ninho quentinho e confortável, e nas noites de calor ou mesmo só amenas, dormia na sua casa(ota) podendo circular pelo quintal à vontade porque é grande e vedado.

A vizinha, a que olhava por ele quando íamos a Portugal de férias, a Sheil, chamava-lhe Zarik porque nunca conseguiu pronunciar o nome Sharik.

Mas um dia da sua velhice canina apareceu um tumor maligno e quando os medicamentos que o veterinário receitou para atenuar as dores, porque nada mais do que isso era possível fazer, deixaram de funcionar, o mesmo veterinário tentou explicar que apesar de muito difícil seria um ato de grande amor e compaixão se o pusesse a dormir eternamente.

No dia em que o Sharik levou uma injeção que o pôs a dormir eternamente eu estava a trabalhar algures nos arredores de Londres.

De Sheffield recebi uma mensagem na hora em que o veterinário veio dar a sua extrema unção. Refugiei-me na casa de banho da companhia nesse momento, para que as lágrimas pudessem escorrer livremente.

O veterinário veio cá a casa para praticar o tal ato de amor e compaixão em nosso nome, para que o Sharik pudesse ser sepultado no quintal onde se passeou tantas vezes, muitas delas a ladrar a quem passava do outro lado dos portões.

O compadre Costa veio tratar dos serviços fúnebres. Abriu-lhe a cova e colocou-o, embrulhado na sua mortalha, lá dentro.

Na sexta feira à noite quando cheguei o Sharik já não esperava por mim. Estacionei o carro no quintal, fechei o portão e ao abrir a porta da cozinha, mesmo sabendo que ele não estava lá nem sequer olhei para a sua casota. Faltou-me a coragem.

Em casa havia uma atmosfera de inconsolável tristeza, mas quase que nem falamos uns com os outros.

No sábado de manhã, depois de uma noite longa e muito mal dormida deslizei da cama, desci as escadas e vim para a sala. Fiz um café e fui ver a campa do Sharik. Fiquei lá de olhar perdido, em silêncio, vazio de emoções. Depois peguei em duas pequenas tabuas, um parafuso e uma chave de fendas e regressei à sala.

No meu moderno gira-discos com aspeto antigo pus a música dos Pink Floyd, Wish You Were Here, fechei a porta da sala para que todos em casa continuassem a dormir, pus uma fotografia do Sharik ao meu lado e comecei a construir uma cruz.

Por muito piegas que possa soar, eu não me conseguia conter com as lágrimas. Sentia um sufoco, uma tristeza que não pode ser descrita por não haver palavras que possam ser fiéis ao que eu sentia naquele momento. À medida que ia fazendo a cruz, à medida que as lágrimas me riscavam a cara, na minha mente repetia-se esta mesma frase batida…I’m sorry, l’m so sorry.

Foi uma manhã muito emocional para mim. Acabar com a vida de alguém que tanto amamos é o quê afinal? É um ato de amor e compaixão ou cobardia? Nessa manhã tive as minhas sérias dúvidas, e nessa mistura de sentimentos, apesar de tudo confusos, senti-me pequeno, insignificante e acima de tudo frágil que nem uma criança, incapaz de parar as lágrimas e o sufoco, que apesar de tudo tentei com um esforço quase sobrenatural, abafar, para que ninguém na casa visse ou testemunhasse o meu lado fraco…ou forte. Apesar de tudo, certos sentimentos são nobres.

Nesse sábado, que apesar de tudo havia amanhecido radioso, como se o nascer de um novo dia tão fulgente contrastasse com o aperto que eu sentia no peito e a tristeza que não só me enfraquecia as pernas e os braços, as minhas forças sofreram um abalo sísmico, e quando fui à campa do Sharik, na ponta do quintal, para lá lhe colocar a cruz com o seu nome e a foto, ajoelhei-me na terra e nessa manhã de sábado voltei a chorar como uma criança.

Nunca estive tão perto, como nessa manhã, de entender verdadeiramente o que significa ser-se muito importante neste mundo, mais do que todos os outros. É que aqueles de quem gostamos vão-se embora, nós também, e o mundo nem pestaneja. O sol voltará a nascer, o vento, umas vezes mais furioso, outras mais calmo, continuará a fazer-se passear entre os ramos das árvores e as folhas estremecerão à sua passagem, enquanto que o mundo, indiferente a quem partiu, faz entender aos mais atentos de que, afinal a importância, não tem importância nenhuma. Nisso, pelo menos para o mundo, que é quem cá fica, somos todos iguais.

No entanto, consola-me apenas acreditar que o Sharik não morreu porque aqueles de quem gostamos não morrem, apenas se vão embora. Só espero que alguém goste tanto de mim como eu gostei do Sharik para que eu também nunca morra, apenas me vá embora, e nessa perspetiva, quem sabe, vá para o mesmo sítio para onde foram os que já partiram e de quem eu gostava tanto.

Pedi aos meus filhos e à minha outra metade que me dessem uma frase, um parágrafo, ou apenas uma palavra acerca do Sharik. Transcrevo tal e qual como eles escreveram, sem traduzir, porque às vezes na tradução perde-se um pouco do verdadeiro sentido do que se pretendeu dizer.

“I remember coming home from school and petting Sharik’s head.”

José Pedro Magalhães

 “I remember feeding him a bone with loads of meat on it, and while he was eating outside I tried to take the bone off him and he got angry and tried to bite my hand, I remember  going into the living room and sitting on the sofa with you and mum and Sharik came into the living room and starting to lick my hand and my face as if he was trying to say sorry”.

Manuel João Magalhães

“Sharik was my first dog. We grew up together for over 14 years and had some amazing times. I will always remember him.”

Fernando Miguel Magalhães

“Meu saudoso Sharik. Aqueles olhos pretos a olharem para mim, minutos antes de o veterinário o pôr a dormir para sempre. Foi companheiro por 14 anos e partiu deixando muitas saudades. Sharik tinha um cancro e nada havia a fazer. Continua connosco no meio das flores do meu jardim”.

Maria Magalhães

 

(Retalhos do quotidiano – páginas 24 a 27)

ANTÓNIO MAGALHÃES

 

 

 

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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