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Senhor Amílcar

O Sr. Amílcar vive no segundo direito do prédio do outro lado da estrada. O apartamento tem duas divisões, uma cozinha minúscula e uma varanda com retrato de paradeiro. Como vive só, tanta pequenez não o afeta. Nunca teve mulher, nem filhos , nem sequer acredita em animais de estimação. Corre sempre as cortinas das janelas quando a noite se aproxima, nunca abre a porta a ninguém exceto ao carteiro quando lhe traz uma carta registada vinda de Braga, de seis em seis meses. Finge sempre que não está em casa, silenciando os movimentos quando ouve a campainha. Em tempos deixou a vizinha do segundo esquerdo toda a tarde no patamar das escadas. Ela esquecera-se da chave, dizia ela à vizinha do terceiro direito quando esta a viu sentada nos degraus, imensamente nervosa à espera da filha. Nem os oitenta anos da vizinha comoveram o Sr. Amílcar, que em bicos de pés, percorria a casa. Nem o autoclismo puxou depois da necessidade, não fosse ela ouvir.

Sr. Amílcar não gosta de pessoas. Nem as pessoas gostam do ar carrancudo de olhos pisados, cravados no chão. Por isso o isolamento é escolha que passa indiferente aos vizinhos. Tem uma rotina diária que o protege e um temperamento frio que o segue sem questões ou remorsos. Nunca questiona os outros, mesmo quando discorda do que ouve e nunca exprime opinião. Também quase nunca lha pedem. Janta todos os dias , exceto ao domingo porque o estabelecimento fecha, no restaurante da Ti Júlia. Lugar tranquilo com clientes certos de anos, poucas mesas e azulejos nas paredes. Ouve os outros, alonga o tempo da refeição, entre o barulho da loiça, a conversa do lado e a televisão. Sempre na mesma mesa, sempre voltado para a porta da rua. Depois do café, fica sentado mais um tempo, parecendo querer estender a hora. É a única altura em que de certo modo, convive com pessoas. Dentro do seu próprio isolamento que não pretende alterar.

Há uns dias quando teve a primeira dor no peito e o ar deixou de circular nos pulmões, Sr. Amílcar assustou-se. Ficou uns tempos sentado no chão do corredor, a faca com que cortava batatas presa à mão como uma bóia. Aquilo deixou-o a pensar depois do susto, do suor frio, das náuseas. Se lhe desse uma coisa assim de novo, mais forte até, ninguém daria por ele. De súbito, avistou o seu cadáver descomposto, um cheiro nauseabundo prolongando-se até à rua.

Por isso Sr. Amílcar tomou providências. Visitou um lar de idosos que não é publicamente considerado por esse nome, mas que ele sabe que serve como depósito de velhice. Não se importou. Era acolhedor, licenciado e arejado. Impôs condições e pediu um quarto só para ele. Pediram-lhe com um aumento de mensalidade a que ele não se opôs. Informou que não pretendia misturar-se com os outros utentes ou sujeitar-se a horários rígidos. Queria jantar todos os dias no restaurante Ti Júlia, ir a sua casa de vez em quando, entrar e sair quando quisesse. Sem problema, disseram-lhe. Sr. Amílcar reservou a sua entrada para depois do Natal, evitando as festas ridículas a que as pessoas se sujeitam nestas alturas.

Sr. Amílcar tem por regra nunca se atrasar, cumprir tudo o que planeia e viver em função do planeado. Por isso a dor do peito alterou-lhe as ideias . Mas nem por isso se perturbou em demasia. Decidira que apenas tinha de ter perto pessoas que lhe permitissem não morrer como um cão em baldio. Porque morrer só era destino que escolhera. Isso não fazia com que gostasse mais delas ou viesse a gostar. O lar era solução. Havia ali pessoas.

Assim, continua a viver no seu pequeno apartamento. A única coisa que alterou e pretende manter até ao Natal, mesmo que faça frio e chova , é deixar a porta da varanda aberta. Sempre poderá arrastar-se até lá pedindo socorro.

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