De que está à procura ?

Colunistas

Sem tempo

De todas as espécies no planeta, tens o dom único de saber comunicar. Usa-o, para que quando chegue o inevitável dia em que o mensageiro te venha bater à porta, para além de estares preparado, não fiques sem tempo para dizeres tudo o que deverias ter dito.

 

Cármen Mari segura a caneca com as duas mãos, junto dos lábios.

No seu olhar distante e como que perdido, funde-se o vapor do café ainda quente, humedecendo-lhe os olhos. Mas não chora. Nem sequer, naquele olhar de lusco-fusco, humedecido pelo vapor quente do café, haverá qualquer vestígio de lágrimas. Não, essas secou-as há muito tempo, como o leito de um rio que lhe estancassem a sua nascente.

E neste olhar há apenas uma ausência do mundo, como quem desistisse de uma vez por todas de entender a vida, os seus desígnios e as suas manhosices. Uma ausência de quem está não estando.

Cármen Mari recorda naquele olhar vazio, através da vidraça, uma manhã diferente de todas as outras que até esse fatídico dia teve ou jamais terá. Foi como se a sua vida tivesse parado nesse dia. A vida parou, mas o mundo não. Esse continuou indiferente às tristezas ou mesmo as alegrias.

O amor por vezes pode ser comparado a uma flor. Regada, tratada, mantem-se bela e perfumada. Mas também a flor tem a sua época, o seu tempo de florescer. E passado esse tempo, murcha por um período, deixa cair as pétalas que se hão de renovar. Murcha, mas não morre, porque a raiz continua pegada à terra, e chegado o seu tempo voltará a florescer. Mas se a flor não for regada, tratada, acabará por morrer, simplesmente porque a raiz não foi alimentada.

O amor é como a flor, e a flor não morre porque a terra a segura. As raízes são fortes e unem-nas. E por vezes murcha até que volte a ser cuidada, tratada, regada.

Assim é o amor entre duas pessoas que como a terra e a semente criaram raízes e floresceram. E de vez em quando, mesmo que unidas pela raiz que as liga, também murcham.

E depois vem um arrufo que dura mais do que devia. A vida é curta, mas o orgulho por vezes é forte e estupido.
Nem sempre as boas relações começam da melhor forma, mas o tempo e a convivência por vezes ajusta o que era já uma semente destinada à terra que ainda não a houvera recebido.

Daí nasceu o amor, porque foi regado, tratado, cuidado, até que começasse a florescer, até que da terra e da semente se criassem raízes que as unissem.

Mas tal como a flor que se gosta, por vezes há o desleixo de a tratar, regar, cuidar. A vida e os seus afazeres, as suas incongruências, absorve-nos. Ninguém se acha no dever de quebrar esse orgulho, a razão e a falta dela. Ficam coisas por dizer, e fica a vida a passar, como se fossemos eternos, como se nos pudéssemos dar a esse luxo de desperdiçar tempo, calados, amuados, estupidamente orgulhosos.

E vem uma manhã, no decorrer de um desses arrufos, e com ela vem também uma lição que Cármen Mari irá aprender…tarde de mais.

O marido veio cedo para casa. Não era costume.

Apeteceu-lhe perguntar, estás doente? Aconteceu alguma coisa? O que se passa?

A preocupação estava com ela, mas o orgulho também, e depois do arrufo que durava há dois dias, não quis quebrar, não quis ser ela a ceder, e por isso recebeu o beijo que ele lhe deu ao entrar em casa, com uma falsa indiferença, como se estivesse distante e distraída, uma vez mais a corroborar uma razão no argumento que os levara ao amuo.

Enquanto ela ficou ali no sofá a digerir aquele orgulho sem sentido, um truz, truz, ouviu-se vindo da porta da frente.

Levantou-se e foi abrir.

Na limiar da porta um vulto surgiu como que sinistro. Um homem alto, forte, bonacheirão. Tinha um ar grave e quase comprometido.

Disse, numa voz quase rouca e tímida.

“Minha senhora, receio que lhe traga más notícias…”

Depois parou por uns escassos segundos, baixou os olhos ao nível dos sapatos que lhe completavam o uniforme de polícia, e quase num sussurro proferiu.

“O seu marido sofreu esta manhã um grave acidente.”

Parou por uns segundos, subiu o olhar um pouco mais, mas mesmo assim, dada a gravidade da notícia, continuou a não ter coragem de encontrar os seus olhos com os olhos de Cármen Mari.

“Minha senhora, um acidente fatal…”

Cármen Mari deixou escapar um sorriso que apesar de tudo denotava um certo inexplicável nervosismo.

“Desculpe, deve haver um equívoco. O meu marido veio para casa mais cedo, foi tomar banho e está agora a descansar…”
O polícia bonacheirão voltou a descer o olhar ao nível dos sapatos ao mesmo tempo que estendeu um pequeno embrulho a Cármen Mari.

“Calculo o quão difícil é este momento, minha senhora. Aqui estão alguns dos objetos pessoais do senhor seu marido.

Atónita, trémula, quase sem forças nas pernas, Cármen Mari pegou no embrulho. Abriu-o. Dentro continha uma carteira que de imediato reconheceu. Uma aliança que havia simbolizado a união da semente com a terra.

Cármen Mari deixou a porta e o mensageiro das más, estonteantes, incompreensíveis e sem nexo, noticias, e correu ao quarto.

Abriu a porta de rompante. O quarto estava vazio, a cama impecavelmente feita, tal e qual como a havia deixado nessa manhã.

O coração fez, bum, bum, bum, a cabeça pareceu absorver todo o peso do seu corpo, e a insustentável leveza nas suas pernas fizeram com que todo o chão desaparecesse dos seus pés.

Mesmo assim, com um impulso parental à força com que se move a natureza, correu à casa de banho abrindo a porta impetuosa.

Vazia, limpa, arrumada, nem sequer um pequeno sinal de humidade na banheira. Tal e qual como a tinha deixado desde a última vez que dela se serviu.

Rendida, vencida, encostou-se à parede de frente à banheira e, com um turbilhão de pensamentos a afilarem-se uns aos outros, deixou-se escorregar pelos azulejos brancos e frios como nunca, até ficar para ali, estendida no chão, num inconsolável e desesperado choro.

O mensageiro havia entregue a sua mensagem. Nada mais havia ali a fazer. Foi-se embora.

Dois anos se passaram, e se é certo que os raios que iluminam toda a terra continuam a ser expelidos pelo mesmo sol, no mesmo mundo de sempre, também não é menos certo que esses mesmos raios de luz já não aquecem nem iluminam o coração de Cármen Mari como outrora.

Cármen Mari segura a caneca com as duas mãos, junto dos lábios.

No seu olhar distante e como que perdido, funde-se o vapor do café ainda quente, humedecendo-lhe os olhos. Naquele olhar vazio, sem expressão, reside bem lá no fundo uma mágoa que não consegue ultrapassar. Que doi como uma culpa de quem ficou sem tempo de aproveitar o tempo quando o tem.

(Retalhos do Quotidiano páginas 39, 40, 41)

António Magalhães

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA