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Rua dos Anjos: documentário que aborda o tabu do trabalho sexual

Maria Roxo cresceu em Moçambique em plena época do colonialismo, estudou medicina (curso que não chegou a concluir) mas a sua vida mudou quando foi obrigada ao serviço militar por ter participado numa manifestação contra o regime colonial. Esse castigo acabaria por ser o início do capítulo negro da sua história.

Já Renata Ferraz é uma atriz e realizadora luso-brasileira que, entre outras coisas, em 2015 desempenhou o papel de prostituta lisboeta no filme “Estive em Lisboa e Lembrei de Você”. Esse trabalho acabou por despertar a sua curiosidade sobre esta área sobretudo pelas ligações entre a profissão de prostituta e a da atriz: um trabalho baseado no “faz de conta” para com uma audiência.

As duas uniram-se em “Rua dos Anjos”, um documentário focado em duas mulheres acostumadas à performance que se auto descobrem numa partilha filmada nos estúdios da Escola Superior de Teatro e Cinema. Utilizando instrumentos do filme etnográfico, os 83 minutos resultam de uma experiência partilhada e tudo gira à volta de um diálogo em que impera a empatia, o respeito e o humor. Ambas filmam e deixam-se filmar, ensinando-se mutuamente. O jogo de imitação e de descoberta estão constantemente presentes e, por essa via, abordam-se tabus. A ideia inicial era que as duas atrizes e realizadoras fizessem parte de todo o processo. Infelizmente, seis meses após o final das filmagens, Maria Roxo faleceu.

O BOM DIA esteve presente no festival Dias Do Cinema Português em Berlim (que decorre até dia 6 de Dezembro), viu o documentário e teve a oportunidade de conversar com Renata Ferraz.

Como descreve a Maria em apenas uma frase?

Replico uma das frases que Maria usava para se descrever a ela própria: “Eu sou luz”.

Como era a sua relação com a Maria? O que aprendeu com ela e que acabou por ser surpreendente/ inesperado?

A força, a alegria e a determinação de Maria, mesmo diante dos acontecimentos de sua vida, ajudam-me a não esmorecer diante das adversidades da minha. A Maria ensinou-me que é possível confiar e sentir afeto genuíno por uma estranha desconhecida, com a coragem e a amorosidade que lhe eram próprias. E por fim, mas não a última aprendizagem (já que elas continuam a surgir em cada nova sessão do filme) poderia evocar uma frase que falo no filme “durante muitos anos, eu quis ser reconhecida pelos homens como sendo um deles”. Diante disso, a Maria ensinou-me a fazer as pazes com o meu lado feminino, a honrar esta parte que também me constitui.

É realizadora do filme mas também atriz e parte ativa na frente das câmeras. O que de melhor e de pior tira dessa experiência?

Em Rua dos Anjos tentei diluir as hierarquias entre as funções que habitualmente estão em lados opostos no cinema: a realização e a atuação. Estas duas funções foram se tornando difusas ao longo do processo de criação do filme. O mesmo acontece com as funções que a Maria exerce e na relação entre nós duas. Poder comprovar que é possível partilhar de forma genuína e potente o gesto criativo com alguém que supostamente seria apenas um objeto de análise de um filme documental é algo que me interessa muito. Mas foi um percurso conflituoso, onde a minha parte de realizadora teve muitas dificuldades em abdicar do controlo da visão cinematográfica, enquanto a minha versão atuante sentiu-se, em muitos momentos, oprimida e explorada pela primeira, como tantas vezes me senti nos meus quase 20 anos de atuação em teatro. O meu privilégio foi poder trabalhar entre mulheres. Juntas, enfrentamos a naturalização dessas práticas. Aceitamos a vertigem deste lugar desconhecido e pudemos vivenciar (mesmo que num tempo e espaço limitados) outras narrativas de vida.

O documentário foi editado sem a presença de Maria. Acha que o produto final seria muito diferente se ela tivesse participado nessa parte?

Certamente seria diferente. Este filme foi feito em diálogo constante entre nós duas. O ponto de partida tinha sido pensado por mim, mas alterou-se substancialmente assim que a Maria disse sim ao projeto. Da mesma forma, a composição visual e temática das cenas também se modificaram ao longo dos dias de filmagens. A montagem certamente teria sido diferente se Maria estivesse ao meu lado durante este processo. Quanto seria diferente? Não sei responder. Eu imagino algumas possibilidades… Mas como sabiamente dizia Maria: “A imaginação pára onde a gente quer. Nunca vai à realidade”. 

As imagens mostram (não só, mas também) um lado da vida de quem é prostituta que, muitas vezes, apenas amigos/família e clientes (ainda que numa perspetiva muito limitada) conhecem. Considera que esse fato precisa mudar? Acredita que o seu documentário ajuda nesse sentido?

Inicialmente pensava em fazer um filme explicitamente ativista, pelo direito das trabalhadoras sexuais. Rua dos Anjos não tem esse caráter porque se modificou diante do encontro com Maria. Em Berlim tive a chance de, pela primeira vez, falar com ativistas que receberam o filme muito bem. Fiquei muito grata e contente. Gostaria muito que este filme servisse como espaço para falarmos sobre o trabalho sexual. Em qualquer país, mas principalmente em Portugal, onde pouco ou quase nada se quer falar a este respeito. Não muito tempo atrás, em 2018, a Câmara Municipal de Lisboa foi acusada por diferentes esferas sociais de promover um movimento tendente à legalização da prostituição, depois de um vereador ter usado a expressado trabalho sexual ao propor uma plataforma de intervenção nesta área. Se conseguirmos falar abertamente sobre o tema em Portugal já seria um passo importante.

Qual tem sido o feedback por parte das audiências que já assistiram ao documentário?

Uma polifonia de sentires. Fiquei muito tocada quando percebi que este filme dialoga com mundos muito distantes uns dos outros. Pessoas de diferentes gerações, género, condição económica e social. Sinto que Maria e eu conseguimos criar um espaço seguro onde as pessoas que assistem dialogam connosco com muito respeito e interesse.

Porque acha que quem ainda não viu “Rua dos Anjos” deve, definitivamente, ver este documentário?

Porque a Maria sabia que a vida dela daria um filme. E porque eu sabia que conseguiria fazer um filme a partir de uma criação partilhada, apesar de muitos homens do cinema me dizerem que este era um filme impossível de ser realizado.

Referiu na apresentação do documentário no Festival de Cinema Português em Berlim que o orçamento para realizá-lo foi muito reduzido. O que tem a dizer sobre a falta de apoios ao cinema? Na sua perspetiva, o documentário poderia ser muito melhor ou diferente se os valores para o produzir fossem outros?

As filmagens foram feitas com 900 euros. O filme foi feito com o trabalho e equipamento de seis pessoas e a cedência de espaço por parte da Escola Superior de Teatro e Cinema e da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Depois que tínhamos o primeiro corte, recebemos apoio do ICA (Instituto de Cinema e Audiovisual) para finalização, que na época era de 18 mil euros. Por um lado, é extremamente importante que se tenha orçamento para as criações, isso nem deveria precisar de ser discutido. Com orçamento tem-se tempo para a reflexão, para o desenvolvimento de técnicas, para não compactuamos com a precariedade do setor artístico. Por outro, sempre me emocionam as formas de resistências como a que ocorreu em Rua dos Anjos. Fazer apesar das adversidades. Tornar o ato de criação um anteparo contra a barbárie do sistema em que vivemos.

Onde é que arranja força e motivação para realizar trabalhos como este com tanta falta de apoio monetário e de pessoas dispostas a participar ou colaborar? 

As criações são feitas com e para as pessoas. Tenho a sorte de ter tido bons encontros. A confiança e o respeito mútuos estão sempre presentes. Não me interessa pensar na pessoa que realiza como sendo a única detentora do gesto criativo. Tenho uma ideia ou alguém tem uma ideia e eu digo: “vamos fazer um filme com isso!”. Normalmente a reação é rir do absurdo do meu convite e passado um tempo ouço: “Então está bem. Vamos fazer”.  Criar uma experiência compartilhada, fazer dialogar mundos que se imaginam distantes uns dos outros. Isso é o que me move. O que move as pessoas? Cada uma tem a sua motivação. Lembro-me que no mesmo dia que conheci a performer, feminista e ativista Samara Azevedo, convidei-a para estar connosco nos dias das filmagens, pois sabia que seria importante ter uma mulher a filmar. Ela respondeu ao convite: “Você é louca, mas eu vou filmar com vocês. Se eu não for, ninguém vai. Só um detalhe: eu nunca liguei uma câmara na vida”. Disse-lhe que isso não seria o menor problema. Resultado: a Samara é responsável por 50% das imagens de Rua dos Anjos, uma das pessoas que ficou ao lado da Maria até o final e, hoje, uma grande amiga e minha consultora político-afetiva. Há cineastas que fazem filmes com pessoas amigas, eu gosto da vertigem de fazer filmes com estranhas desconhecidas.

Que ângulo exploraria se tivesse que fazer de novo um documentário ou filme sobre o mesmo tema?

Certamente seria uma criação partilhada novamente. Poderiam ser feitos cem filmes sobre um mesmo tema. Cada um será diferente do outro, se a premissa for fazer “um filme com” em detrimento de “um filme sobre”. 

Pode revelar-nos um pouco sobre os seus próximos projetos?

Como os filmes que sonho fazer dependem de encontros, quero, dessa vez, ter a chance de encontrar-me com pessoas que cantam (mulheres cis, trans, não binárias). Não necessariamente com cantoras, mas mulheres que encontram no seu canto um lugar de acalanto, de resistência e re-existência. 

Nasceu no Brasil e vive há vários anos em Lisboa. Como tem sido essa experiência? O que a levou a querer viver em Portugal? Foi bem recebida?

Saí do país onde nasci quando o mundo dizia que o “O Brasil era o país do futuro”. Depois de alguns anos acompanhei o golpe e a barbarie de um governo genocida com a dor de estar longe. Enquanto isso, em Portugal, já vivenciei de tudo um pouco. Embora não seja de família abastada, cheguei em Portugal como uma imigrante privilegiada, pois era uma atriz que queria estudar cinema. Para isso, trabalhava em bares e restaurantes numa Lisboa pré processo de gentrificação. Entre artistas e intelectuais ser estrangeira ou trabalhadora precária quase nunca foi um fator limitante. Na época fui rapidamente acolhida por pessoas que hoje formam a minha família de afetos. Mas Portugal também tem um outro lado, o lado da burocracia kafkiana, das instâncias formais e informais de poder que ainda tratam as pessoas vindas de países explorados no tempo do Império com desprezo, de forma discriminatória e abusiva. Quando insisto em dizer que não sou apenas atriz brasileira, que sou também uma realizadora-atriz luso-brasileira, não é porque queira reconhecimento de pertença (na verdade, gosto de não pertencer ao Brasil, a Portugal ou qualquer outro país, gosto de pensar em pertencer a um mundo sem fronteiras). Mas se insisto nessa ideia é porque me interessa juntar e fazer dialogar mundos, explicitar um pouco a dimensão de multidão que há em mim, que há em todas nós.

O documentário já ganhou o Eileen Maitland Award, no Ann Arbor Film Festival e será exibido na Cinemateca (Lisboa) dia 22 de novembro às 19h00. Este ano ainda será possível vê-lo no Queer Porto, no Teatro Rivoli, dia 4 de dezembro, às 16h30. No início do próximo ano há planos de passar em Helsínquia (Finlândia) de um regresso a Berlim (Alemanha).

Fabiana Bravo

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