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Ricardo Ramos Filho: o impulso da escrita

Ricardo Ramos Filho nasceu no Rio de Janeiro, em 1954, mas aos quatro anos mudou-se com a família para São Paulo, de onde nunca mais saiu. Filho de Ricardo Ramos e neto de Graciliano Ramos, desde menino viveu intensamente o universo dos livros. Ao seu livro de estréia, Computador sentimental, seguiram-se Sonho entre amigos, O pequenino grão de areia, A nave de Noé, Sobre o telhado das árvores, Vovô é um cometa, O gato que cantava de galo, João Bolão, Se eu me chamasse Raimundo e O livro dentro da concha. Mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), é professor em cursos e oficinas sobre escrita literária.

Que autores e livros mais o marcaram desde a infância?

Comecei, é claro, com Monteiro Lobato. Reinações de Narizinho foi o primeiro livro que li. O contato com o grande escritor durou boa parte de minha infância. Não faziam com ele as injustiças que fazem hoje. Acusações construídas a partir de páginas tiradas do contexto da época, bastante diferente do mundo em que vivemos agora. A minha formação foi bem ampla. A coleção do Tarzan, de Edgar Rice Bourroughs, chegou numa caixa, parecia um brinquedo. Muito divertido aquele homem meio macaco. Júlio Verne me fez olhar para o futuro, o contato inicial com um prenúncio de ficção científica. Cuore, de Edmondo de Amicis, foi o primeiro livro que me fez chorar, um choque, noção, ainda que intuitiva, de que tinha na minha frente um texto importante. E muitos outros autores: Mark Twain; Jack London; Viriato Corrêa; Daniel Defoe; Francisco Marins e Alexandre Dumas. O romance A Ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson, foi uma de minhas paixões. Uma autora pouco conhecida no Brasil, Laura Ingalls Wilder. Aos poucos, sem que percebesse, fui migrando para obras adultas. Apareceram livros que mostravam o nosso idioma muito bem tratado, escritores nacionais do melhor gabarito: Machado de Assis, José de Alencar, José Lins do Rego, Jorge Amado, Raquel de Queirós, Mário e Oswald de Andrade. Um dia, fiquei sabendo que existia Ernest Hemingway: O velho e o mar; Adeus às armas; Por quem os sinos dobram; Ilhas na corrente e Paris é uma festa. Tinha começado o ciclo americano. Conheci, então, Scott Fitzgerald e William Faulkner. E vieram os russos como Turgueniev e Dostoievski. Guerra e paz, de Tolstoi, é até hoje um livro importante para mim. Mais tarde, os ingleses como Dickens, Jane Austen, Conan Dyle e Virgina Woolf. Ler os franceses também foi delicioso. Os Thibauld, de Roger Martin du Gard, foi um excelente início, completado, anos depois, por Zola, Flaubert, Balzac, Stendhal e Proust. E passei por todos os gêneros. Difícil escolher o livro preferido. Talvez, A montanha mágica, de Thomas Mann.

Em que sentido o fato de ser filho de Ricardo Ramos e neto de Graciliano Ramos foi importante para que se tornasse escritor? Houve algum estímulo familiar?

Sim, até certo ponto. Mas nada que esteja agarrado aos meus genes. Não acredito assim tanto na força da genética. Creio que viver em uma casa rodeado por livros, ouvir conversas a respeito deles, presenciar meu pai escrevendo e lendo depois, em voz alta, o que havia produzido, conviver com os escritores amigos dele, tudo isto preparou bem o terreno. Naturalmente, sem que houvesse um plano para fazer de mim mais um escritor na família, até porque seria falta de imaginação, acabei vencido pela vontade de escrever também. Um dia, sem que percebesse, depois de muito resistir ao impulso, estava escrevendo minhas próprias histórias. No começo tinha medo das comparações, achava que seria massacrado. Depois, com a idade e o amadurecimento, consegui cuidar da minha própria vida.

Embora tenha nascido no ano seguinte ao da morte de Graciliano Ramos, como foi tomar conhecimento de que era neto de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos? Com que idade teve contato com as obras de seu avô e de seu pai?

Difícil lembrar. A gente é apresentado aos membros da família sem sentir. O avô que conheci, pelos relatos familiares, era de carne e osso. Tinha características de pai, quando o meu falava nele, de sogro, quando as referências eram feitas por minha mãe, de marido, aos olhos de minha avó. Os outros é que viam o mito. No final, ficou um pouco de tudo. Hoje, convivo com os dois. Ele é, para mim, o avô e o escritor famoso. É claro que sempre aparece certo orgulho, até por eu concordar que raros conseguiram uma obra como a dele. Só fui, porém, conhecer seu trabalho depois de adulto. Meu pai quis que o lêssemos quando estivéssemos prontos. Entenda-se isso por ter adquirido o hábito da leitura, ser capaz de entender, gostar e poder identificar a qualidade do texto. Ele achava, com razão, que o velho Graça não era um autor para crianças, nem fácil o suficiente para despertar o interesse de não iniciados.

Quando se convenceu de que desejava ser escritor, apesar de ter ido para o universo das ciências exatas e sempre trabalhado em corporações financeiras?

Só depois de sessões de terapia. O mundo técnico é muito frio, nele pouco se lê. Não espere conversar com os profissionais de informática sobre literatura. Eu sentia falta do ambiente onde fui criado, apesar de ter fugido para uma realidade diferente, apartada do universo das letras. Um dia, escrevi um texto e deixei na gaveta. Um livrinho juvenil, fragmentos de minha adolescência. Curiosamente, comecei escrevendo memórias. Felizmente criei coragem para mostrar para minha mãe. Seria muito mais difícil pedir o aval do meu pai. Ela leu e gostou, mas se achou incapaz de julgar. Pediu ajuda a uma escritora amiga, a Vivina de Assis Viana, autora de excelentes livros infantis e juvenis. Ela deu o aval, foi minha madrinha literária. Publiquei, então, em 1992, o Computador sentimental. O velho não chegou a ver o livro publicado. Morreu um pouco antes. Foi a única obra minha que leu. De certa forma, o nome do livro era uma brincadeira com a minha situação, já que nada em suas páginas remetia à realidade dos computadores. O título, muito devido à saudade com que as lembranças foram registradas, era para ser lido assim: Com puta dor sentimental. De lá para cá, tenho conseguido publicar cada vez mais. Não sei se cheguei a me convencer que queria ser escritor.

Por que a dedicação exclusiva à literatura infanto-juvenil? Algum projeto voltado para a chamada literatura adulta?

Mais uma vez não houve um plano. Nunca imaginei que escreveria para jovens e crianças. Naturalmente penso as histórias para eles, é assim que as elaboro. Talvez, porque no fundo escrevemos para nós mesmos. As marcas deixadas pela literatura infanto-juvenil em minha formação foram muito fortes. O leitor que há em mim é muito influenciado pelo prazer que senti com as leituras que fazia quando criança e jovem. Embora tenha sempre gostado de ler, jamais recuperei a paixão e a sofreguidão que tinha no passado. É para o menino que ainda há em mim que escrevo. Embora já tenha escrito para adultos, não o faço com a mesma facilidade e prazer. Meus projetos são todos, e são muitos, na área em que venho atuando.

O que entende como um bom texto, seja para o jovem leitor, seja para o leitor maduro?

Primeiro o autor tem de tratar bem o idioma, o texto deve ser bem escrito. Uma das coisas que aprendi convivendo com escritores bons, é que a palavra deve ser obsessivamente trabalhada. Nada adiantará, porém, se não tivermos uma boa história.

De onde sai a matéria-prima de seus livros? Considera-se um bom observador do cotidiano?

Principalmente da observação do cotidiano, a sua pergunta praticamente responde a questão. As histórias estão por aí, é necessário observá-las, senti-las e escrevê-las. Eu sou meio escoteiro, estou sempre alerta.

Acha acertado afirmar que vivemos hoje uma crise de falta de leitores no país?

De fato, somos um país que lê pouco, mas o fenômeno não é de hoje, a crise sempre existiu. O nosso problema maior, sem dúvida, é termos uma educação deficiente em todos os níveis. A conseqüência é evidente, quase não se lê por aqui, e os poucos que se arriscam a encarar um livro, acabam escolhendo mal, muito por deficiência de orientação adequada. Só poderemos pular para um patamar diferente, investindo em escolas e em professores.

Acredita que o público jovem dê retorno mais imediato ao escritor?

Acredito que as editoras trabalham mais este público, até por ser mais fácil de ser atingido. Através do contato com as escolas e professores, conseguem desenvolver um plano de vendas. É comum os autores fazerem parte da estratégia. Às vezes, dentro do pacote de convencimento, está a oferta de uma visitinha do escritor à instituição de ensino para conversar com os alunos.

Escreve sempre pensando no que o leitor vai achar de seus enredos ou deixa a escrita fluir, sem maiores interferências ou preocupações com os rumos da narrativa?

Os meus critérios não são muito fixos, depende da história. Já escrevi sem pensar muito nos leitores, em outros momentos fiquei mais preso. De maneira geral, todavia, existe sempre alguma preocupação. Embora basicamente a gente escreva por uma necessidade interior, não dá para perder a perspectiva de que aquilo um dia irá ser lido.

Do conjunto de sua obra até hoje publicada, o que destaca como mais relevante?

Acho que não dá para responder sem cair no chavão. Livros são como filhos, neles nós estamos. Sentimentos, momentos de vida, alegrias e tristezas, dificuldades, tudo ali nos representa, em diversos períodos da vida. Como escolher a melhor parte da gente? Para mim, pelo menos, é muito difícil. Tenho uma leve noção de que meu texto infantil flui melhor que o juvenil. Comecei escrevendo juvenis e depois fui reduzindo a idade do público alvo. Não sei se minha literatura infantil é melhor que a juvenil, mas hoje em dia fico mais à vontade escrevendo infantis.

Que projetos estão em pauta para o futuro?

Eu trabalho muito. Quando escrevo um livro já tenho dois ou três amadurecendo, engatilhados. Estou escrevendo com muito cuidado e em um ritmo diferente. O escritor brasileiro acaba tendo quer fazer muitas coisas para sobreviver e vive das brechas de tempo encontradas. Tenho escrito também para adultos e cada vez mais penso em me arriscar em um romance. Publiquei, recentemente, contos em antologias e assino crônica semanal, na sessão Palavra de Contista, da Escritablog. O escritor Jorge Amado declarou, certa vez, que para se conseguir viver de literatura no Brasil, é necessário publicar mais de trinta livros. Estou atrás dessa marca, até porque gostaria muito de conseguir viver apenas do que escrevo.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, professor e jornalista.Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

 

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