“Prison break” é uma série de televisão americana que no Brasil foi batizada como “Em busca da verdade”. Em Portugal, como não podia deixar de ser, ipsis verbis, “Fuga da Prisão”. Premonitório, meu caro Watson…
Temos acordado em Portugal todas as manhãs estremunhados, após uma noite de sono reparador, e mesmo antes de conseguir tomar um cafézinho, ao dar uma vista de olhos no feed de notícias que nos chegou durante a noite, sentimos o equivalente a sucessivas e violentas bofetadas nos dois lados da cara. Nem sabemos para que lado nos devemos de virar para escapar às lambadas !
Como é que os portugueses não hão-de ser o povo mais deprimido e “burnout-eado” da União Europeia, se vivem hoje em Portugal num regime atroz, um misto de surrealismo Daliniano e existencialismo Kafkiano, um mundo que pura e simplesmente não pode (ou não devia) existir, mas com o qual somos confrontados todos os dias ?
Tudo o que meta Estado (administração pública, gestão no setor empresarial do Estado, segurança pública, serviços básicos devidos pelo Estado aos contribuintes, como saúde, transportes e educação, gestão política dos dossiers que tocam a vida dos cidadãos), está podre, arrasado, inoperante. Uma exceção: a coleta de impostos, a AT, tão eficiente que cai no extremo oposto, atira o barro à parede para cobrar mesmo o que não é devido, dando fortunas a ganhar aos advogados fiscalistas. Num país em que o Estado é esmagador e omnipresente na vida dos cidadãos, em que milhões de eleitores dependem direta ou indiretamente do Estado, é o descalabro total.
Somos os cidadãos da União Europeia mais descrentes nas instituições públicas, e os que mais acreditam (mais de 90 0/0) que vivemos no país mais corrupto da Europa. Meio século de democracia deu nisto em Portugal. Começam a ser demasiadas as vozes que clamam pela suspensão temporária desta “democracia” (ditadura partidária sem correspondência expressa na vontade popular, a não ser a expressa por uma minoria crescente -abstenções superiores a 50 0/0- nas eleições em que os eleitores só se manifestam a cada 4 anos), para poder raspá-la da pegajosa e abjeta sujeira que traz hoje agarrada, e reintroduzi-la limpinha e reluzente no circuito da vida nacional.
Muito, mas mesmo muito perigoso este tipo de pensamento, que nasceu há uns anos de uma declaração da Dra. Manuela Ferreira Leite. Foi um processo similar ao que levou um Chavez ao poder na Venezuela, para nunca mais o conseguirem tirar, nem a ele, nem sobretudo ao miserável do sucessor. Veja-se no atual Governo, recebido por tantos com uma enorme esperança de mudança, como o poder corrompe. Declarações feitas há menos de um ano por Montenegro a criticar o PS, enquanto líder da oposição, são hoje identicamente aplicáveis à sua prática governativa ! E por isso o PSD não descola do PS. “Farinha do mesmo saco”, dizem-me todos a quem peço para explicar o (inexplicável) fenómeno das sondagens da Intercampus, que dão uma ligeira vantagem ao PS num empate técnico com a AD.
No ambiente de mediocridade, alarvidade arrogante (Madeira), e irresponsabilidade em que vivemos, sucedem-se as declarações públicas de figuras de topo da nossa cena política a tratar de explicar o grotesco das várias situações que vão desfilando à frente dos nossos olhos, como o caso enigmático, meu caro Watson, das câmaras de gravação do Ministério da Administração Interna que “funcionam”, mostram imagens em tempo real, mas não gravam (!), ou a prisão de “alta segurança” em que se destroem as torres de vigia velhas, antes de haver verba para construir as novas, em que se instala um sistema de eletrificação do perímetro que, ao funcionar, manda a luz em toda a prisão abaixo, e em que os criminosos mais perigosos do mundo têm acesso à internet e a telemóveis topo de gama para desenhar, programar e executar calmamente a sua fuga ! Vapt, vupt, quando a polícia e a PJ foram informadas, 3 horas depois (!), os homens provavelmente já estavam a beber uma caña geladinha com um bocata de pata negra algures bem no interior de Espanha !
Não há um único responsável que assuma com hombridade o ónus da desídia, um único incompetente posto no olho da rua, um único vendilhão do templo corrupto posto atrás das grades. Como diz o nosso cada vez mais errático Presidente, caldos de galinha e paninhos quentes para não criar “alarme social”. Os maiores criminosos internacionais fogem ? Tudo bem. Falar do tema ? Nem pensar, coitadinhos dos portugueses que vão ficar alarmados…
Eu contei isto a um amigo meu estrangeiro e ele, além de me gozar como um perdido, disse-me que nós atingimos o fundo da fossa, e que no país dele (europeu, não é o Brasil, onde as anedotas de portugueses são mato) somos alvo de chacota permanente.
Fernando Pessoa é uma figura imortal e consensual em Portugal (e internacionalmente). Não conheço quem o critique ou diminua, quem não o respeite. Mesmo no PC, no Livre, e no BE. Até hoje. Vão certamente passar a ser detratores, depois de lerem as linhas que seguem.
Poucas pessoas conhecem de Pessoa a faceta de correspondente comercial, a sua profissão. Foi nesse registo que Pessoa escreveu, em vários momentos de 1926 (!), na Revista de Comércio e Contabilidade, uma série de artigos absolutamente geniais, produto de um intelecto superior, que a Editorial Nova Ática publicou em 2006, e republicou em 2009, num pequeno opúsculo com o título: Fernando Pessoa : “A Essência do Comércio”.
O artigo com o título “Régie, Monopólio, Liberdade” foi publicado no número 2 da revista mencionada anteriormente, em Fevereiro de 1926. O artigo versava sobre a questão de como deveria ser o regime dos tabacos em Portugal, sob a alçada de quem deveria ficar a sua administração. Se do Estado (Régie), de um monopólio privado, ou sob um sistema de concorrência livre. Fernando Pessoa diz que numa situação desta ordem e natureza deve-se sempre ter em consideração três interesses: Estado, Comércio e Indústria, e Consumidores.
Recomendo vivamente a leitura deste pequeníssimo livrinho (esgotado, mas passível de obter em marketplace de usados). Não vou obviamente aqui transcrever a totalidade deste artigo. Mas há umas passagens deliciosas que tenho que citar.
“Considerada em si mesma, a administração do Estado é o pior de todos os sistemas imagináveis…” De todas as coisas ‘organizadas’, em qualquer parte ou época, a mais mal organizada de todas.”
Pessoa explica ao longo de várias páginas credivelmente as razões filosóficas subjacentes a esta sua afirmação, para concluir:
“É pois evidente que quanto mais o Estado intervém na vida espontânea da sociedade, mais risco há, se não positivamente mais certeza, de a estar prejudicando; mais risco há, senão mais certeza, de estar entrando em conflito com leis naturais, com leis fundamentais da vida, que como ninguém as conhece, ninguém tem a certeza de não estar violando.” “Os riscos, e pois os prejuízos da administração do Estado, estão evidentemente na razão direta da extensão com que essa administração intervém na vida social espontânea.” “…Esses riscos baixam à medida que a administração do Estado se aproxima da estrita atividade fiscal e tributária, que só ao Estado compete, porque só ao Estado pode competir. Mas não é a esta atividade própria e restrita que nos referimos quando examinamos a questão de administração de Estado: referimo-nos a essa administração em geral e, particularmente, à administração pelo Estado de comércios ou indústrias que podem não ser administradas por ele. Pelas razões já vistas, é evidente que, na proporção em que esses comércios ou indústrias forem importantes, e implicarem com a vida da sociedade ou na nação, nessa mesma proporção será prejudicial a administração deles pelo Estado.”
Escrito há quase um século, mal sabia Pessoa que no século XXI as suas palavras seriam premonitórias. Mais de 22 mil milhões de euros em apoios públicos à banca desde 2008, tanto para bancos falidos e desaparecidos, como para outros que já honraram os seus compromissos (CGD devolveu a “massa” na íntegra), mais de 3 mil e duzentos milhões para a TAP só durante esta porta giratória de vai e vem entre privado e nacionalizado, uns 500 milhões para a Efacec, umas largas dezenas para a Dielmar, e sabe-se lá quantos mais para a INAPA ou outras empresas das quais não sabemos sequer da missa metade. Ou seja, Fernando Pessoa sabia do que falava.
No mesmo artigo Fernando Pessoa avança ainda com uma tese que será polémica num país que tem hoje 700.000 funcionários públicos, mas que eu não me coíbo de citar. Sou orgulhoso filho de um, e tenho vários na família e no círculo íntimo de amigos. Cada regra tem as suas exceções, pelo que cada funcionário público que leia esta opinião de Fernando Pessoa decida se a carapuça lhe serve ou não :
“Viciosa, assim, em sua própria essência, a administração do Estado, sofre ainda a viciação proveniente de ser exercida por e através do tipo de indivíduo que em geral forma o funcionário público. Salvo para as carreiras militares, em que há abertas especiais para a ambição e a energia, nenhum homem de verdadeira energia entra para o serviço fixo do Estado. Não entra porque não há ali caminho para a energia, muito menos para a ambição.”
Aquilo no entanto que mais me entristece e preocupa em Portugal é que, sempre que discuto este ou qualquer outro tema com amigos de qualquer setor de atividade profissional, nível de educação e formação escolar, a discussão termina com um triste encolher de ombros e a frase “É o que temos”…, e esquecemos todos o tema até no mínimo à manhã seguinte, quando o feed do telemóvel nos traz mais porcaria da grossa para nos indignarmos.
Aceitam-se sugestões para sair da prisão. Só podem vir de fora, razão pela qual pedi ao meu estimado amigo Raul Reis que me acolhesse nas “páginas” do seu magnífico bomdia.eu. Bem hajam pelas sugestões (pacíficas e democráticas…) que enviarem.
José António de Sousa