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Porque chora este bebé? (Conclusão)

(Continuação do texto publicado em 25 de junho)

“Renascerás e voltarás a viver as vezes que forem necessárias até que descubras um sentido para a vida.”

Dissera-lhe o Espírito. Ou seja, recomeçaria tudo de novo, sem o conhecimento da experiência anterior.

Quando finalmente se encontrou na presença deste Espírito, instantaneamente percebeu ser Ele muito mais forte e poderoso do que qualquer dos outros com quem havia já cruzado, e talvez por essa razão tivesse uma súbita vontade de lhe perguntar, és tu o Deus, mas não o fez, esperou apenas que este falasse consigo. O Espírito perguntou, viste a tua vida enquanto fazias a passagem, vi, e o que viste.

Que grande parte das coisas que sempre procurei na vida não estiveram se não mesmo debaixo do meu nariz, que estive sempre rodeado delas, e, no entanto, passei grande parte dessa minha vida a procurar onde nada encontrei, a desperdiçar tempo que nunca recuperei.

Que corri sempre atrás de uma vida melhor para mim e para os meus e esqueci-me de facto, de viver.

Que erradamente, quase de maneira inconsciente e em nome dessa suposta vida melhor me fui mantendo afastado da família, e de todos aqueles que mais gostei, do lugar onde nasci e me criei, valorizando os bens materiais como prioridade ao caminho da felicidade ,adiando sempre para mais tarde momentos que vão e não voltam, esquecendo-me que há um tempo para tudo e que a verdadeira felicidade se encontra nos momentos em que o amor precisa da nossa presença,

Que sofri e que fiz sofrer.

Que baixei os braços quando deveria lutar.

Que perdi tempo de mais a tentar achar culpados para os meus infortúnios.

Que em muitas das minhas ações nem sempre tive em conta as suas consequências e o impacto que noutros tiveram.

Que desperdicei tempo de mais em coisas fúteis.

Que perdi tempo de mais a tentar fazer valer os meus valores e os meus ideais, intransigente quase sempre à ideia de que não somos nem donos nem possuidores de ideias definitivas e que a vida e a sua complexidade que nem sempre percebemos na sua totalidade, tem e deve ser partilhada, tem e deve ser discutida e refletida em conjunto.

Que nem sempre fui justo.

Que em muitos momentos da minha vida fui egoísta por pensar que os meus interesses e os interesses dos meus estiveram sempre acima de tudo e de todos.

Feita que estava esta espécie de confissão numa retrospetiva resumida de pontos essenciais da sua vida, o Espírito disse-lhe,

Voltarás de novo à vida. Tenho uma segunda oportunidade. Não, não há segundas oportunidades. Voltarás a nascer, voltarás a viver começando novamente do princípio.

Qual o objetivo. Serás tu a procurá-lo. Renascerás e voltarás a viver as vezes que forem necessárias até que descubras um sentido para a vida. E quando o fizer, quando completar essa tarefa. Então não passarás mais pelo sacrifício de viver e ter de morrer mais do que uma vez. Passarás a última barreira da perfeição e só nessa altura atingirás a eternidade.

Depois de ter feito a passagem, deixando para trás o corpo e a matéria que o constitui, com a mesma forma física que tivera em vida terrena, mas apenas em espírito, António percebeu que a dor não existe e que sem as exigências a que a matéria do corpo obriga, sentimentos bons e maus e todas as variantes de cada um deles, deixaram de fazer sentido, atingindo-se o auge da perfeição e do entendimento a que na vida terrena é simplesmente impossível de atingir. Por isso, e depois de ter experimentado uma serenidade, e uma paz sem igual, percebeu que recomeçar tudo de novo, regressar à vida terrena para voltar a fazer outra jornada, era motivo de enorme tristeza.

“Renascerás e voltarás a viver as vezes que forem necessárias até que descubras um sentido para a vida.”

Dissera-lhe o Espírito. Ou seja, recomeçaria tudo de novo, sem o conhecimento da experiência anterior.
Havia uma certa agitação na sala de partos. A parteira insistia num último puxão, com força, com determinação, para que finalmente o bebé nascesse. Aquela que estava para ser mãe tinha já esgotado todas as forças nos últimos quatro puxões. Desde que o corpo se lhe começara a rasgar por dentro que as dores intensas pareciam quase irreais e aos poucos a exaustão começava a tomar conta dos seus sentidos.

Nessa altura, quando a força humana parece atingir todos os limites das suas capacidades, é quando entra a força da natureza para completar o trabalho iniciado e que não pode ficar a meio. Mesmo assim exigia-se um último esforço por parte da que estava para ser mãe, e esta, ou que percebesse naquele preciso instante que precisaria de algo a que se agarrar, para que no esforço o corpo se aguentasse firme, ou que o fizesse pelo natural instinto quando a aflição aperta, alagada em suor pelos gritos, pela dor, e pelo esforço feito, lançou a mão e agarrou a primeira coisa onde esta pousou.

Agostinho Aurélio, o marido, que se encontrava à cabeceira da cama onde, ora debruçando-se sobre o seu rosto para lhe transmitir força e ânimo, ora de olhos postos na parteira para lhe ler na expressão do rosto o grau de preocupação, de repente paralisou de boca e olhos bem abertos. De seguida foi soltando um grito lento e agudo, contínuo, como se esse grito viesse de fora para dentro.

“Rosa- grunhiu- filha mantém-te calma…”

Mas a Rosa à medida que intensificava a força com que dava o seu último e crucial puxão, cada vez apertava mais a mão, e Agostinho Aurélio, de olhos mais esbugalhados do que um camaleão, quanto mais força também ele fazia para gritar, mais o ar lhe faltava e a dor aguda que lhe percorria desde as entranhas até à garganta, mais lhe esganiçava a voz.

Não durou o tormento, tanto para a Rosa como para Agostinho Aurélio, pouco mais de um minuto, mas pode-se afirmar que num futuro longínquo tanto um como o outro haveriam de incluir nas suas histórias alusivas ao momento, momentos de um eternidade que parecia não ter fim.

Finalmente o bebé nascia, Rosa exausta, feliz e aliviada, abria muito lentamente a mão, e Agostinho Aurélio ia aos poucos, à medida que a mão se abria, também ele sentindo um alívio enquanto que com o lenço que sacara do bolso limpava as gotas de suor que lhe escorriam da testa. Disfarçadamente levou a mão com cuidado e delicadeza ao meio das pernas e ajeitou o que lhe parecia ter sido esmagado.
Aurélio dos Santos Florindo acabara de nascer. Acabava de entrar no mundo e fê-lo de maneira muito silenciosa, como se não acreditasse muito bem no que lhe estava a acontecer.

O pai, Agostinho Aurélio ficou preocupado com o seu silêncio. A parteira pegou no recém-nascido, segurou-o pela ponta dos pés com a cabeça para baixo e deu-lhe um açoute. O miúdo desatou num berreiro despegado.

Agostinho Aurélio suspirou de alívio. Rosa Santos estava feliz e exausta ao mesmo tempo. Precisava de recuperar.

O recém-nascido parecia ter um olhar fixo e distante. Lembrou-se das palavras do Espírito.

“Renascerás e voltarás a viver as vezes que forem necessárias até que descubras um sentido para a vida.”

Na sala de partos quis gritar. Quis dizer a toda a gente que sabia qual o significado da vida. Quis dizer a toda a gente que cada pessoa que nasce, nasce com um propósito para a vida. Mas tudo o que conseguia era apenas chorar.

Durante os seus primeiros meses de vida, de cada vez que se lembrava que teria de voltar a passar pelas incongruências e artimanhas da vida, pelo sofrimento da carne da qual os prazeres parecem mais cedo ou mais tarde ter o seu pago, desatava a chorar porque outra maneira não tinha de se manifestar.

Nas horas em que dormia, por vezes recebia a visita de mensageiros do Espírito principal, mensageiros esses que lhe iam explicando o porquê de ter de passar por tudo de novo. Nas muitas revelações que lhe fizeram, disseram-lhe que muito em breve esqueceria toda a sua experiência para lá da luz, o seu regresso à vida e o seu novo começo, mas também lhe falaram daquilo a que muita gente chama o déjà-vu. Em alguns momentos da sua vida iria sentir isso, e esse déjà-vu não era nada mais nada menos do que uma espécie de ténue lembrança para que estivesse atento à sua vida. Ela não acontece por acaso e nessas alturas, que seriam muito esporádicas, talvez devesse questionar-se a si mesmo sobre a sua vida e o seu propósito nela e no mundo.

Depois veio o dia em que finalmente, depois de muitas tentativas, de muitas insistências por parte dos pais e de quem com ele ia convivendo, em que disse a sua primeira palavra. E foi precisamente nesse dia, no proferir dessa primeira palavra que todo o conhecimento acerca do verdadeiro segredo da vida e do seu propósito se varreu da sua memória.

A vida de António finalizava naquele momento e Florindo iniciava a sua jornada numa nova vida

(…)

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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