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Perigo iminente

O senhor Aurélio morreu ontem ao fim da tarde.

Podia ter perecido, ou, pela vida cheia que levou até aos seus 92 anos, poderia ter falecido.

Mas não. Morreu, porque foi assassinado cruel e cobardemente, por quem menos ele esperava. 

O senhor Aurélio morreu porque sobreviveu às atrocidades de uma guerra, que, como diz a canção de Fausto Bordalo Dias, “Ah pois por mais que seja santa, a guerra é a guerra.”

O senhor Aurélio morreu porque sobreviveu a um cancro e venceu uma dependência sobre o álcool.

O senhor Aurélio morreu porque tinha uma imensa vontade de viver, e, mesmo quando foi atacado por uma fera do mato, conseguiu correr a sete pés, e num impulso que nem mesmo ele sabe como aconteceu, saltou mais alto do que humanamente parecia ser possível, empoleirando-se no ramo de uma árvore, para onde subiu até só parar no topo.

O senhor Aurélio morreu porque o mataram à falsa fé, sem que fosse o seu dia de perecer, sem que fosse o seu dia de passar o caminho, para o outro lado.

Ah… se soubessem como era quente aquele seu particular sorriso que irradiava vida, sempre que se lhe desenhava no rosto. 

Ah… se soubessem como choraremos pela dor da ausência desse sorriso, e do privilégio de com ele o termos partilhado. Se soubessem como nos fará falta a sua companhia, aquele seu ar catita e alegre com que abrilhantava o dia de quem consigo convivia…

Como nos fazia rir, nos momentos em que a vicissitude da vida só nos dava para chorar.

“Pois fique sabendo que eu sou capaz de falar em qualquer língua do mundo, só não sou capaz de falar chinês”.

Ai sim, dizíamos meio admirados, meio desconfiados. Então fale lá um pouco de alemão.

E prontamente o senhor Aurélio respondia, Ah, isso para mim é chinês…

Então e em inglês?

Ah, isso para mim também é chinês.

E qualquer outra língua que não fosse o português com sotaque transmontano, era para o senhor Aurélio, chinês. 

Homem, tivesse você aprendido chinês e deveria ser o único ser humano à face da terra que mais línguas saberia falar.

Lembram-se quando disse, na mercearia do senhor António, que tinha feito o caminho de casa até à mercearia, de cotovelos no chão, só para não estragar as solas dos seus sapatos novos, que exibia com grande vaidade e um certo orgulho, pois fora o filho quem lhos ofereceu.

Há de nos fazer falta esse sentido de humor.

Mas o que nos fará mesmo falta será aquele seu sorriso meigo e bondoso. 

O que nos fará mesmo falta será a sua companhia calorosa, a sua bondade, o seu caracter, bom, agradável, alegre, cheio de vida e sabedoria, conhecimento.

O senhor Aurélio sobreviveu à guerra, a um cancro, à dependência do álcool, à difícil tarefa de sobreviver também à sobriedade, ao ataque da fera do mato, aos invernos frios e chuvosos, às ondas de calor abrasador, enfim…o senhor Aurélio sobreviveu a tudo isso em nome da sua infindável vontade de viver. Mas não sobreviveu ao ataque de um cobarde que lhe quis levar uma pequena mala que trazia a tiracolo, que puxou violentamente até conseguir soltá-la, empurrando-o de seguida, danado pela resistência de um velho com mais de nove décadas de vivência em volta dos seus, já frágeis, ossos.

Tivesse perdido a vida na guerra e pereceria ao serviço da sua pátria e da liberdade dos seus netos e bisnetos.

Tivesse perdido a batalha do cancro e teria falecido.

Tivesse sido vencido pelo vício, e esfumar-se-ia a sua vida, como um fim de tarde que se funde com o cinzento que antecede a noite.

Tivesse sido apanhado pela fera, de quem ele fugiu a sete pés, por saber a sua natureza de predador, e a sua morte, não sendo justificada, porque nenhuma o é, seria mais um dos infortúnios da vida.

Mas…quando o cobarde o empurrou, furioso, pela sua resistência ao roubo, caiu, como quem corta o pé da árvore que quando cai, cai desamparada, cai para nunca mais se voltar a erguer.

E ali fica deitado, de costas no chão, enquanto um fio de sangue lhe sai da nuca, formando um pequeno lençol que aos poucos se expande.

Morreu. De olhos abertos, inertes, vazios agora, sem expressão.

Se o olhássemos com muita atenção, no canto do seu olho direito, brilha ainda uma pequena lágrima que ali ficou estagnada.

Talvez o senhor Aurélio, no preciso momento da sua morte, não se tivesse conformado que de todos os animais à face da terra, de todos os perigos naturais e imprevisíveis, o mais acutilante, o que doi mais do que a própria morte, é o que é perpetrado por outro ser da mesma espécie, supostamente a mais inteligente, porque esse perigo iminente se esconde tantas vezes por detrás de um sorriso, de uma falsa boa intensão, de uma simpatia fingida, de um abraço cobarde ou um beijo venenoso. 

O perigo é iminente, pelo simples facto de que, apesar da vaidade, da avareza, do ciúme, da ganância, da luxuria, da maldade, da falsidade e de muitos outros sentimentos que por vezes albergamos nos contérminos do labirinto do nosso cérebro, haveria de nos dar também, para inventar a crueldade. 

António Magalhães   

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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