Na primeira manhã de uma visita ao Porto, cidade que conheço mal, dei-me conta de que a bateria do meu telemóvel se ia esvaziando inexoravelmente apesar de o aparelho estar ligado à corrente. Ainda pensei que as tomadas pudessem estar desativadas por um qualquer interruptor. Experimentei várias, em múltiplas divisões da casa, enquanto acionava interruptores ao acaso. Não, as tomadas funcionavam perfeitamente e o telemóvel teimava em perder energia. Devia ser então um problema do cabo. Inspecionei-o demorada e cuidadosamente e não vislumbrei nenhum rasgão na cobertura plástica. A falha devia ser interna, A verdade é que eu não tenho cuidado nenhum com os cabos. Torço-os, enrolo-os, enfio-os à trouxe-mouxe na mala ou na mochila. Destruo cabos como destruo teclados à força de os brutalizar sob os dedos. As minhas anfitriãs já tinham saído de casa há muito e, por isso, nem sequer lhes podia perguntar se, por acaso, teriam um cabo de boa saúde que me pudesse salvar.
Com a pouca bateria que me restava, telefonei ao meu filho. Tínhamos combinado encontrar-nos, mas não tinha ficado claro onde. São assim as combinações com a malta nova, incompletas. Os telemóveis permitem decidir tudo sur le coup, à última da hora. A pernoitar em casa de amigas num bairro novo periférico, perguntei a mim própria como iria encontrar o centro da cidade e o alojamento local do meu filho sem recorrer ao precioso Waze. Era óbvio que não tinha bateria suficiente para o utilizar. Desliguei o aparelho. Queria guardar os últimos sopros de vida do bicho para a eventualidade de precisar de fazer mais algum telefonema.
Chamo o elevador. Sinto-me desconfortável. Ir para a rua sem telemóvel é quase como sair de casa despida, desorientada e sem noção do tempo. Puta de dependência… e vou pensando se pego no carro ou se dou corda aos sapatos. Aventura, de qualquer forma. No vestíbulo do prédio, um eletricista paquistanês inspeciona o quadro elétrico. Pergunto-lhe se sabe onde é a paragem de autocarro mais próxima – eu sabia que havia uma ali nas redondezas e um autocarro conveniente. Educadamente, e num excelente português, respondeu-me que não, que não sabia.
- E a pé? – perguntei – é longe até ao centro?
- É um pouco longe – sorriu afável e condescendente, com um aceno de cabeça indostânico.
Agradeci e saí. A rua estava deserta. Vejo uma viatura a estacionar ao lado da minha. Dela saiu uma mulher jovem com um cãozito ao colo.
- Sabe dizer-me onde é a paragem do autocarro? Sei que há uma perto.
A moça, pálida e desenxabida, mirou-me com olhos de carneiro mal morto e respondeu, no tom suave que se usa para falar com as crianças pequenas ou com os tolos:
- Não, não sei… – e olhou-me, desolada, encolhendo ligeiramente os ombros.
Fiquei com dúvidas sobre se a moça saberia o que é um autocarro e se alguma vez na vida teria tomado algum.
Suspirei. Abri o porta-bagagens, tirei de lá o chapéu de chuva e um par de botas, que troquei pelos ténis cor-de-rosa que tinha nos pés. Chuviscava uma chuvinha molha-tolos que, provavelmente, iria regar o dia inteiro. Suspirei novamente e entrei no carro, disposta a enfrentar a angústia da desorientação, o tráfego intenso de uma urbe desconhecida e os impropérios proferidos contra os condutores forasteiros.
Arranco. Faço no sentido inverso algumas das ruas que tinha percorrido na noite anterior até chegar a casa das minhas anfitriãs. De súbito, vejo uma roda de homens junto a um estaleiro. Parte usa capacete e um, provavelmente o responsável de alguma coisa, tem um telemóvel ao ouvido. Os outros, expectantes, parecem aguardar o desfecho da conversa. Abrando, paro, abro a janela do lugar do morto.
- Bom dia! Sabe indicar-me o caminho para o centro da cidade? – pergunto.
Um deles aproxima-se e saúda-me em português do Brasil. Volta-se para os demais e repete-lhes a minha pergunta. Os homens entreolham-se e sorriem enleados. Não sabem. Nenhum deles é dali.
- A senhora não tem a aplicação? O Waze? – pergunta-me como se estivesse a falar com a Wilma dos Flinstones.
- Tenho, sim, não tenho é telemóvel a funcionar…
Suspira e diz-me:
- Olhe, a senhora siga por aquela estrada, continue em frente, há de ir dar à VCI que depois distribui o trânsito…
E, para me incutir confiança, acrescenta um «Boa sorte!» encorajador.
E sigo, apesar de nem sequer ter percebido convenientemente as instruções que me tinham sido dadas. Pouco depois, deparo com uma estação de metro milagrosa. E sim, o metro decerto me conduzirá a algum sítio. Abandono o carro e lá vou eu. Volto a emergir à luz do dia no meio de uma praça com um grande jardim, supostamente próxima da rua que eu procurava. Distraída como sou, esqueci-me mais uma vez de que não tinha Waze nem Google Maps nem coisa que o valesse. Ou seja, não olhara para os mapas disponíveis no subterrâneo. E lá vou passeando vagarosamente todas as esquinas, de nariz no ar, a olhar para as tabuletas com os nomes de ruas.
Eis se não quando sou interpelada por um transeunte, um homem seco, em mangas de camisa e cabeça descoberta. Um homem a quem eu, do alto da minha juventude, chamaria «um velhote».
- Que rua procura a menina? – perguntou com simplicidade.
Aquela palavra «menina» encheu-me de ternura.
- A Rua da Alegria – respondi.
– É fácil – disse, apontando a rua que estava mesmo à frente dos meus olhos – vai por esta rua abaixo até lá ao fundo aos semáforos. A Rua da Alegria é essa transversal.
- Muito obrigada – disse-lhe eu – obrigada por ter notado que eu precisava de ajuda!
- Via-a a olhar para o ar com ar de quem procura alguma coisa – desculpou-se o homem sorrindo.
Ora aqui está algo que nenhum telemóvel pode fazer: observar o que se passa à volta, ler corretamente um comportamento e oferecer ajuda mesmo antes de esta ser pedida. Este homem só pode fazer isto porque, precisamente, não tinha nenhum telemóvel na mão enquanto caminhava, ao contrário da maioria das pessoas com que me cruzo, na rua ou nos transportes públicos, aqui onde estou agora ou em qualquer outro lugar.
Conclusão: decidi passar a ir regularmente para a rua sem telemóvel. Para ver o que acontece.
Eduarda Macedo