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Para “Toda a Espécie”: pandemia como fenómeno mental

[Apolo] Desceu dos cumes do Olimpo, de coração irado,

trazendo aos ombros o arco e a aljava toda fechada;

à medida que ele avançava, as flechas retiniam

no ombro do deus enfurecido. E ele seguia, semelhante à noite.

Sentou-se longe das naus, e lançou uma flecha;

do arco de prata saiu um silvo terrível.

Atacou primeiro as mulas e os cães velozes,

depois atirou aos próprios homens com o seu dardo pontiagudo;

e as piras dos cadáveres ardiam sem cessar.

Durante nove dias, os dardos divinos correram o exército.

Homero, Ilíada, Canto I, vv. 44-53

(tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, Helade, 5ª ed. Coimbra, 1990.)

 

Nos últimos dias, com o decretar de quarentenas e de medidas de condicionamento à vida nos espaços públicos, vimos pela primeira vez alguns espaços emblemáticos sem qualquer pessoa: Praça de S. Pedro, Catedral de S. Marcos, etc, etc, etc…. espaços que apenas concebemos com muita gente, são-nos hoje apresentados nus de pessoas.

Se até há poucas semanas o bulício de tanta gente se mostrava quase ensurdecedor, impossibilitando uma boa fruição desses espaços, hoje somos brutalmente “ofendidos” na forma como concebemos o espaço público através da anulação da inevitabilidade do Ser Humano estar lá – afinal, o espaço existe sem mim, sem o meu semelhante. O horror vacui, a natural repulsa que a natureza tem ao vazio, parece ofender um olhar habituado a ter o pulular de gentes como sinónimo de vida.

O conceito de pandemia é o mais democrático que podemos imaginar. “Todo o Povo” (παν + δήμος) é, literalmente, todo o universo de possibilidades em que nenhum grupo ou ninguém poderá afirmar estar de fora. Mais uma vez, uma epidemia tem também o horror ao vazio.

Tal como nas bíblicas Pragas do Egipto, a sexta, “sarna, que arrebentava em úlceras nos homens e no gado” (Êxodo 9:10,11), a pandemia relatada por Homero no canto I da Ilíada, tem de ser fruto de uma ira divina. É tal a subversão da ordem natural que apenas essa é a justificação plausível.

Na Ilíada, o deus Apolo é mesmo retratado de forma quase cobarde a atacar com as flechas. A guerra tinha uma ética. A morte com honra implicava a luta corpo a corpo, o olhar nos olhos. Apolo “sentou-se longe das naus, e lançou uma flecha”, cobardemente. É o que é uma pandemia; causando o caos e uma ordem fora da ordem natural.

Estas duas descrições de pandemias, que são das mais antigas que temos, ambas da primeira metade do I milénio a.C., mostram a arbitrariedade e a forma cobarde na escolha daqueles que afeta. Não é uma pandemia porque afeta todos, mas porque pode afetar todos, sem distinção. Todo um povo está a sua mercê.

Mais perto de nós, a Peste Negra, que só seria erradicada da Europa no século XIX, criaria uma verdadeira mitologia traumática que ficaria marcada nos imaginários, trauma retomado e avivado com as epidemias e pandemias dos séculos XIX e XX, especialmente com a chamada Gripe Espanhola (1918).

Hoje, o vislumbre por paisagens normalmente pejadas de humano, mostra-nos o deserto da higiene social para controlar a proliferação do contágio. Açambarcamos, pedimos o fecho das escolas, como que desejamos medidas draconianas que vão além do que a Constituição obriga, como no caso da quarentena forçada ou obrigatória.

Vemos, mesmo, as religiões a pedirem aos seus crentes que se abstenham de partes importantes da vida religiosa: só em Portugal, Católicos mudam hábitos da comunhão e deixam de fazer o “Abraço da Paz”; Protestantes recomendam a “Ceia do Senhor” com luvas; Muçulmanos anulam a oração em congregação à sexta-feira.

Parece que tudo nos conduz para um medo fortíssimo, cimentado em milhares de anos de pandemias, em que o texto bíblico e Homero são apenas dos exemplos documentados. Trauma consolidado nas estruturas de pensamento, entramos em modo pânico.

As reações são o resultado do momento e dos factos em jogo, mas são também os medos testados no ADN de uma estrutura evolutiva que é uma espécie. Sim, a forma como reagimos a uma pandemia tem ecos na “memória” da espécie e na forma como estes fenómenos são um perigo acima da vida de cada um de nós.

Uma Pandemia não é uma doença para “Todo o Povo”, mas para “Toda uma Espécie”.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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