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Para que o sofrimento não seja em vão

Estava até um dia soalheiro.

De vez em quando corria uma suave brisa que nos entrava pelos vidros abertos, do carro, mesmo que sabendo que a brisa de vez em quando corresse, eu a não sentisse.

Sou o passageiro que vai sentado no banco que me é designado. No lugar do condutor, a minha mulher.

Entre o nosso silêncio entrepõe-se um suave e ao mesmo tempo sereno barulhinho do motor do carro; quase envergonhado de se fazer ouvir mais do que os pensamentos que cada um de nós leva de si mesmo, à medida que descemos a encosta. Não consegue – o barulhinho suave e sereno fica atrás de todos os outros barulhos silenciosos, próprios da jornada em causa.

O carro é comprido e não tem assentos, outros que não sejam os da frente. Ao invés disso tem uma mala compridíssima onde transportamos um caixão. O meu caixão.

À medida que descemos a encosta, silenciosos, como que hipnotizados pela orquestra de pequenos e suaves barulhos; os pensamentos que cada um traz e não revela, a brisa que não sinto, a encosta agreste que ladeia a estrada e entra no barulho suave e sereno, como paisagem integrante da jornada, o barulhinho silencioso do motor do carro (envergonhadíssimo), vou conformado com o meu destino.

Chegou a minha hora.

É assim a natureza da vida. Do fim dela.

Não há outro remédio. Conformarmo-nos e aceitarmos, porque de outra maneira não pode ser, é aceitar o que não compreendemos.

Chegamos ao fundo da encosta.

Há um enorme descampado e dezenas de carros similares ao nosso. Cada um transporta um caixão.

Esposas que trazem os maridos, maridos que trazem as esposas. Não há uma ordem…um critério de escolha em relação a quem fica e quem faz o caminho de volta. Quem chega, sempre aos pares, um fica o outro regressa.

Ao fundo do descampado há uma espécie de pedreira.

Tenho que levar o meu caixão para lá. Depois, meto-me dentro dele e será esse o meu fim.

Outros que já lá estão parecem aceitar o seu destino com uma estranha tranquilidade. Há uma serenidade neles em aceitar a natureza do destino final, que eu pensei ter, mas não tenho.

Chegada a hora o pânico apodera-se de mim. Sem saber como, tão depressa acabei de chegar, como tão depressa estou já ao fundo da pedreira, dentro do caixão. O pânico aumenta como a trovoada que se ouvia ao longe e acabou por chegar mais depressa do que a própria tempestade.

Chegou a hora, mas eu não estou preparado.

Enquanto descíamos a encosta tinha toda a serenidade de quem sabe e aceita que chegada a hora não há como lhe fugir. Mas quando essa inevitável hora chegou, a serenidade e aceitação transformou-se num grito de desespero, de medo.

Estou dentro do caixão, mas recuso-me a deitar. – digo – ainda não é a minha hora. Não estou preparado…

A minha mulher que tinha ficado junto do carro, a uma distância considerável, respondeu com toda a naturalidade, – Tem que ser. É assim que as coisas se passam. – Não havia maldade, nem no seu olhar, nem no tom das suas palavras.

Apesar da distância, ouço-a nitidamente, como se ela tivesse chegado a sua cara bem perto de mim, só para me responder. Depois…voltou à distância de onde havia ficado desde que chegamos, e eu, sem saber como, de repente me vi lá longe, ao fundo da pedreira, com o meu caixão, com o meu destino final.

Voltei a olhá-la nos olhos. Uma vez mais a distância que nos separava se fez curta, só para aquele olhar.

– Não quero ir.

– Tem que ser. Chegou a hora.

E nesse curtíssimo diálogo as nossas bocas não se abriram, os lábios não se mexeram. Foram os nossos olhos que falaram.

– Tem que ser. Não há nada que possamos fazer. Somos impotentes ao destino que a vida nos reserva no fechar da cortina que é, que foi, o espetáculo da vida.

Todos me olham com um ar de incompreensão. Que se passa com ele? Devem ter perguntado a si mesmos. É a lei da vida. A morte. Porque se recusa a aceitar.

Sinto uma espécie de embaraço pelo olhar recriminador que todos me lançam. Que vergonha…

Não é a minha vergonha. Não sou eu que me recrimino a mim mesmo por não aceitar tão fatal destino. São aqueles olhares inquisidores…

O pânico começa a ganhar proporções mais assustadoras do que o próprio cenário macabro onde estou inserido.

Cresce tanto, é tanto o desespero, o medo…que…de repente acordo.

Foi um sonho.

Foi apenas um sonho.

Ao meu lado a minha mulher dorme serena.

Depois, fico deitado, de mãos entrelaçadas onde repousa a nuca, de cabeça enterrada na almofada.

Uma luz que brilha no escuro, e nasce de um canto do teto do quarto, pinga sobre os pés da cama como que filtrada por um crivo. É dela que vejo a carcaça do meu Espírito. O corpo. Por uns breves instantes tudo se torna claro. Eu não sou aquele corpo ali deitado. Sou muito mais do que isso.

No mesmo instante surge-me um pensamento.

“Se por vezes a vida nos é tão miserável…porque temos tanto medo de morrer?”

Da luz que pinga do teto, como que filtrada por um crivo, tenho um rápido momento de clarividência. Estou neste corpo para uma breve passagem neste mundo, porque o verdadeiro eu – Espírito – precisa dessa aprendizagem; alegrias e tristezas. Conquistas e derrotas. Prazer e sofrimento. Para continuar o supremo caminho da eternidade, aceitei essa condição muito antes de voltar ao mundo onde o meu Espírito precisa dessa concha para se submeter à aprendizagem que me garante a continuidade. Aceitei o sofrimento, como condição para que viesse a este mundo aprender, muito antes de o sentir na pele. Onde ele mais doi. Soube-o apenas nesse brevíssimo momento de clarividência, de revelação. Depressa o irei esquecer. Faz parte da mesma condição…

Já não sei se continuo a sonhar, ou se tudo isto é como uma benesse de esperança para os que mais sofrem.

Por muito doloroso que seja o sofrimento, o Espírito irá libertar-se dele, e dele leva a sua recompensa pelo que aprendeu. Para que o sofrimento não seja em vão.

Continuo com as mãos entrelaçadas onde repousa a nuca. Aos poucos, o feixe de luz que desce de um canto do teto e incide aos pés da cama, como que filtrado por um crivo, vai-se tornando cada vez mais embaciado. Depois torna-se intermitente; estende-se como uma cortina, onde por detrás dela me separa uma outra realidade. Depois desaparece.

Fecho os olhos, aperto as pálpebras com força, e as lágrimas rebentam, escorrendo livremente pela minha cara para se fundirem com a almofada.

Se calhar…agora sim, vou dormir.

António Magalhães

(Dedicado à minha mãe e aos seus 86 anos de poucas alegrias e muito sofrimento. Dedicado ao meu irmão José Joaquim e aos seus 60 anos de incompreensível sofrimento.)

 

 

 

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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