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Os sapatos

Recolheu os sapatos de verão, tirou todos os que serviam para o outono guardados desde o inicio do verão. Abriu uma caixa e uns sapatos castanhos de fivela dourada, tacão baixo, ficaram a bailar nos olhos durante algum tempo. A verdade é que não os tinha ainda usado. A verdade é que nem gostava de sapatos de tacão baixo. Colocou-os na mão, sentindo um peso no peito que parecia estranho tanto tempo depois.

Os sapatos tinham sido uma prenda a si, para ele. Ou melhor, uma nota de puro afecto. A ideia de que podia apaixonar-se por um homem mais baixo ou pouco mais alto do que nunca lhe ocorrera, tão certa estava de tal desvio de vida. Mas quando o conheceu , a empatia foi tanta que nem dera muita importância à questão da altura. Até porque estava de saltos altos e a diferença nem sequer era assim tão pertinente. Depois  quando tomaram café pela primeira vez, numa tarde prolongada para além do entardecer, ela sentiu que tinha de considerar que estava a ficar presa ao sorriso dele e a tudo o que as suas mãos falavam quando sorriam também. De cada  vez que o telemóvel tocava o coração pulava feito destino de acolhimento. Ao terceiro encontro, ela rendeu-se. Não havia nada de plástico entre ambos, tudo parecia fluir tão normalmente como dois enamorados. No fundo, toda a paixão a dois tem normas que são usuais. Ela gostava de ser beijada e o beijo não ligava a metros. Na cama não havia alturas de corpo, nem larguras. Mas ele ficava sempre um pouco mais baixo quando passeavam juntos. Não notou nele qualquer desconforto. Nunca sequer ele se referiu a isso. Tudo parecia tão certo, tão plenamente íntegro.

Um dia ela levou botas de tacão baixo e sentiu que estava mais próxima. Que os rostos se encaixavam como correctas formas de puzzle. Estava apaixonada. Gostava de estar apaixonada. Porém, com o tempo, os encontros encurtavam e as horas que ele lhe dedicava, também. Havia sempre a desculpa do trabalho.

Um dia, talvez por a sentir magoada com a ausência, ele combinou um sábado, com direito a duas refeições, um passeio e tudo o que podia estar incluído na ementa de dois namorados. E ela exultou. Comprou uma saia nova, um lingerie de renda acetinada e uns sapatos castanhos de tacão baixo com fivela dourada.

Mas ele adiou o sábado. Adiou os dias, as horas e as conversas. Foi tudo morrendo devagarinho, numa dor crispante de rejeição que ela geriu como pode.  Nunca usou os sapatos. Ficaram na caixa. Só a dor de vez em quando ainda tem tacão alto e muito uso.

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