O Minotauro saindo do Labirinto (semi-fábula em jeito de ópera)
Coro (Mote e refrão):
O Minotauro viveu tantos anos
nos claustros de si mesmo
que quando escapou finalmente do labirinto
não sabia em quem confiar,
em quem poderia confiar,
confiar ou morrer?
Pítia 1:
E entre confiar ou morrer
dois gumes da mesma faca
o marruá decidiu sair da caverna
e experimentar a luz do dia.
Mas o dia foi-lhe nefasto e não brando
porque o mundo dos homens é cruel
e o das mulheres ainda mais.
Coro (refrão)
Pítia 2:
De todas as Circes e Histriãs
que penetraram no seu antro
nenhuma o salvou por um fio
ou quis ser salva por ele
como poderia ele então recusar-se
em alimentar-se das carnes dessas bacantes
ele, que foi rejeitado por todas as mulheres
ele, cuja cabeça de monstro
foi alvo de troça e chacota
e a face de besta repugnada
e a disformidade tantas vezes ultrajada?
Mil vezes o centauro preferia morrer
na ponta do gume gelado
da espada de Teseu
do que confiar numa mortal novamente.
Coro (refrão)
Pítia 3:
O Oráculo de Delfos
nunca se engana
excepto quando não o entendem
idis redibis nuncuam morrieris
e as sibilas sussurram em uníssono:
A tua Ariana chegou
(Ariana entra em cena)
numa manhã de inverno
baça e translúcida
como uma irrealidade
quando o Touro pensava
que até Dédalo o esquecera.
Minotauro (assomando a cabeça fora do labirinto):
Ariana, eu sou o Touro de Minos,
o tremendo, o terrível, o temível,
o titânico, o tirânico,
o tetérrimo, o teratológico
Touro de Minos…
(as Pítias recuam assustadas,
Ariana aproxima-se, ele recua)
Eu sou a besta de baixos instintos,
o esfinge gorda, o disforme
que tem fome de alma e de luz
mas só atraca viandas brutas
e devora sem comer
mas tem vontade, uma vontade
irresoluta de liberdade
e apetite de outras costas e baías
mas…
(o Coro imita pateticamente
um choro de lamento)
… não ouso viver
apenas me deixo para aqui existir
no torpor pesado dos dias
na lascívia lúbrica e fugaz
dos não-momentos
dos cobrimentos sem cor
sem cor e sem dor
porque não temo os pares de cornos
por já ter o maior de todos,
porque não temo a dor
por já ter a maior de todas…
(o Coro zomba com lamentos patéticos e imita chifres)
Ariana, eu sou aquele
que ninguém quer
e que não quer ser ninguém
e quer ser toda a gente ao mesmo tempo
mas só posso contentar-me
em ser eu próprio.
(O Coro repete o refrão)
Ariana (aproximando-se mais,
o Touro com meio-corpo fora do labirinto):
Oh, Touro Todo Poderoso
tu não és um monstro, és um deus
e eu a deusa esculpida
da coxa de Zeus para ti
eu sou a Ariana, a deusa,
a mulher, a ninfa, a neusa,
com que não ousaste sonhar
que te vem libertar dos teus ferrolhos
(O Coro murmura um canto alegre)
Oh, filho da fabulosa
nebulosa do Caranguejo
nasceste sob os auspícios
da Lua e de Astreia
como pode na verdade o Adamastor
sonhar-se senhor
se Zeus o condenou a errar
primeiro nos Céus e depois na Terra
mas na verdade Touro, não sabes
que és filho dos deuses mais potentosos
tu és Asterion, mas antes disso eras Orion,
o Grande Caçador, que se perdeu
e um rei cúpido roubou e prendeu,
mas tu não és uma presa
tu és um predador
como pode um predador, um caçador
ficar nessa gaiola, numa jaula
oh Orion Grande Caçador
oh Touro Todo Poderoso
(o Coro aumenta em intensidade)
acredita em ti e em tudo o que és
só sendo tu podes ser tudo e todos
porque só podes ser tudo e todos
para seres verdadeiramente tu
tu não estás perdido, apenas desbussolado
mas se me deixares ser
o teu norte, o teu sul, o teu este e oeste,
salvar-te-ei a ti e a mim ao mesmo tempo.
(O Coro cada vez mais eufórico,
as Pítias aproximam-se do Coro
e repetem o murmúrio alegre).
Tu não és lascivo, és voluptuoso,
tu não és perverso, és luxuriante,
dá-me a mão, vem comigo e juntos
descobriremos mil novos tons de sensualidade
onde apenas se pode mergulhar com a verdade
da alma e do coração e tu és casto
não temas como Dédalo o voo incauto de Ícaro
ou como Teseu a vingança cruel de Fedra
dá-me a mão, ergue-te do chão
e levanta voo comigo, vamos ser
tudo e todos por aí.
(Orion retira a máscara de touro,
dá a mão a Ariana, e levantam voo juntos).
Coro (eufórico, as Pítias integraram o Coro):
O Deus Touro viveu tantos anos
nos claustros de si mesmo
que quando escapou finalmente do labirinto
só podia confiar numa Deusa. (bis)
Coro (com as Pítias): (Moralidade)
A moralidade desta semi-fábula
é que foi preciso uma deusa
raptar o touro para o resgatar,
salvar, salvar-se a si mesma
e finalmente
repor o equilíbrio,
por sobre todo o Mar
e por sobre toda a Terra,
o equilíbrio que Zeus rompeu e violou.
E a feliz Afrodite cumpriu a promessa
deu a Ariana um amor imortal,
porque o Amor escrevendo
sempre certo por linhas tortas,
tardando não falha
e acaba sempre por vencer.
JLC09032019