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O julgamento Heard-Depp

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Não segui o julgamento Heard-Depp. Falta de tempo, falta de vontade e de estômago. Um julgamento público que tem como substância principal violências domésticas, apesar de ser sobre difamação, parece-me violência por cima da violência, para as vítimas na sala e para as espetadoras. Mas foi impossível escapar a excertos, memes, títulos de artigos, debates, bate-papos nas redes sociais. No geral, tudo muito feio e decadente e sobretudo altamente misógino, salvam-se alguns debates de fundo, que talvez sejam realmente possíveis agora depois do circo.

Fiquei estupefacta com os argumentos dos mais jovens, todos “team Depp”, baseados em “quase nada”, nenhum tinha visto o julgamento na íntegra, mas viram os memes, os vídeos, ouviram os youtubers. “Ok ele também não é flor que se cheire”, “ok ele é violento” (mostraram-me o vídeo de Depp na cozinha a partir tudo), mas ela é maluca, mentirosa, snifou coca no tribunal, defecou na cama, etc… Resumo: os dois são drogados e violentos, mas nele perdoa-se, nela não. Por vezes, os argumentos não vão além de “ela é má atriz”, “ele é engraçado, fez piadas no tribunal”. Quando pergunto, mas o julgamento era sobre se a Heard tinha difamado o Depp, ao escrever que tinha sido vítima de violência doméstica. A questão não era se ela também foi agressora, ou se ela foi pior. Então, têm a certeza de que a Heard nunca foi vítima de violência doméstica? “Ai isso não sabemos.”, “deve ter sido, mas…”, etc…

Sabem o que é violência doméstica, mas focalizam-se na “porrada”, minimizando a violência psicológica, os ciúmes excessivos, os insultos, a humilhação, o rebaixamento do corpo, das capacidades intelectuais, do trabalho, etc., as ameaças, partir ou atirar objetos mesmo que estes não toquem na vítima, ameaçar fazer mal a si próprio, etc.

Existem cada vez mais campanhas de sensibilização sobre as diferentes formas de violência doméstica, mas a informação leva tempo a ser interiorizada.

O MeToo não morreu, como anda tanta gente a rezar para que aconteça, nomeadamente a facho-macharia representada por energúmenos tão recomendáveis como Kyle Rittenhouse, Donald Trump Jr. ou Bolsonaro, que felicitaram o resultado do julgamento. O MeToo é um movimento e não um momento, como diz Tarana Burke. Apesar dos obstáculos, apesar do backlash violento que beneficia das fundações profundas de séculos de patriarcado, o movimento vai continuar, porque não é um simples julgamento que vai apagar os números avassaladores no mundo de violência contra as mulheres, o número de feminicídios, o número de violações perpetuados por homens que até em tempo de guerra, sabe-se lá como, arranjam pica para terem ereções e violentarem mulheres e crianças.

Se a única coisa que têm para apresentar como resposta é o caso Heard-Depp, devem pensar que somos muito estúpidas e fracas para não continuar a luta, e ainda de forma mais forte se for necessário. Já o disse e volto a dizer, no dia em que decidirmos falar todas cai tudo. O MeToo é um movimento, mas as denúncias mostram a pontinha do massivo icebergue. E por isso, pelo caráter massivo, histórico, cultural, estrutural não há comparação possível com a violência feita contra os homens. Devemos lutar contra, claro. Devemos ser sensíveis, claro. Mas não se deve misturar tudo. Ser feminista não se deve confundir com uma espécie de “humanismo” cego a este sistema de dominação patriarcal. “Porque é que também não há o dia dos direitos do homem?”, dizem estes humanistas. Porque não há aqui qualquer tipo de simetria.

Depois deste processo por difamação, é verdade, muitas mulheres vão ter ainda mais medo de falar, até porque muitas das denúncias no contexto do MeToo eram anónimas, nem tinham como intuito denunciar o agressor, mas denunciar um padrão, denunciar as práticas, testemunhar de como é viver na violência e sobretudo prevenir as mais novas. Dizer-vos que desde a primeira violência têm de partir, que não devem aceitar os insultos, a humilhação, o controlo sobre os vossos corpos, as vossas mentes, as vossas atividades, o vosso trabalho. Não estão sozinhas. Isto é tudo muito difícil? É. Mas vamos juntas. Ninguém larga a mão!

Luísa Semedo

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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