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O fato

Passava todos os dias em frente à loja, diminuindo os passos enquanto as montras se desnudavam, espreitando de relance o que exibiam, antes de entrar no edifício onde trabalhava, há tantos anos fazendo sempre o mesmo.

Gostava do que se mostrava por detrás daqueles vidros enormes, onde misturavam fatos com malas e sapatos, com um bom gosto que a cativava. Tudo caro, contudo.

Na volta do emprego, quando os passos já vinham atenuados pelo cansaço e a pressa já não era muita, parava em frente aos vidros distanciando-se o suficiente para poder alcançar toda a exposição e num olhar abrangente captar tudo e dar voo à imaginação.

Naquele dia perdeu-se. Aquele fato morreu-lhe na vista, tatuou-se na sua mente com a precisão de um carimbo. Mediu-o, vestiu-o em sonho, exibiu-o em pensamento.

Permaneceu uns instantes alongando a ideia de o comprar. O preço não era nada bom para o seu orçamento e agora muito menos depois que o João a deixara por uma catraia magra de sorriso que lembrava férias em mares turquesa. Sentiu um aperto. Cada vez que se lembrava dele era aquilo. Uma dor que lhe minava o estar onde quer que estivesse. Mas o fato era demasiado belo e tentador para a deixar cair em neura.

Tinha que o ter. Talvez se deixasse de almoçar fora durante uns dias…Não saísse durante dois fins-de-semana e obviamente não comprasse o novo ferro de engomar e a torradeira, pois os velhos aparelhos tinham avariado, assim de repente, em simultâneo. Fechou os olhos.

Tinha de ter aquele fato. Passar por eles que andavam a exibir pelas ruas e perante amigos comuns, festinhas lascivas e felicidade nua e mostrar que estava em grande. Sim! Aquele fato, os sapatos de salto alto que a prima lhe tinha emprestado. Tinha uma cor gira, lembrava ameixas maduras. Emagrecia decerto e tapava-lhe aquela banha que se alojava na cintura, aquela gordura satânica que se acomodava na sua carne. Fora por isso que João a trocara pela outra.

E durante dias ela juntou dinheiro. Seu almoço era fruta que trazia de casa. Passava pela loja avistando o fato com a gulodice de o ter a retrair-lhe os gastos. Até lhe parecia que estava mais magra. Seria? O medo de deixar de ver o fato, anunciava-se a cada dia. Uma semana, duas semanas e ele ali no mesmo manequim, avistando acomodado a crise que varria a futilidade.

Quando notou que já tinha o necessário para tal luxo e porque não extravagância, naquela terça-feira, foi ligeira para o emprego. Passou pela loja e o seu coração saltou. O fato já não estava em exposição.

Sentiu a vista toldar-se, gotas de suor resvalarem pela nuca. Não podia ser! Claro que devia haver outro lá dentro. Respirou fundo, esqueceu as horas de que tinha de picar o ponto e entrou no estabelecimento, segurando a mala contra o peito num enervamento cuja percepção ainda a deixava mais perturbada. A empregada sorria-lhe, perguntou-lhe o que desejava, num sorriso alargado de rapariga magra e bonita. Pediu-lhe o fato a medo .A rapariga lamentou ,mas já só tinha dois números muito pequenos. E encolheu ligeiramente os ombros num convite ao entendimento. Ela fingiu não perceber. Pediu o número mais alto, sentindo que estava a fazer uma figura patética. A empregada, solícita maneou-se entre os cabides, expositores e manequins e trouxe-lhe o fato que parecia enfeitiçar-lhe o olhar.

No provador, tentou acalmar-se. Pendurou-o como se fosse uma relíquia. Despiu-se. Primeiro a saia. Se lhe servisse o casaco podia até andar aberto. Vestiu-a, tentou apertar o fecho, encolheu a barriga… As lágrimas não vinham nada a propósito, que disparate! Iriam manchar-lhe o rosto, marcar mágoa..

Devagar despiu a saia, sentou-se no pequeno banco encostado ao espelho e olhou para o chão onde salpicavam linhas, cabelos e vestígios de outras peles. Agora já não conseguia parar. O choro parecia tufão que lhe partira paredes. A empregada do outro lado, batia-lhe à porta. E ela não conseguia parar. Vestiu-se sobre o fato, pés e lágrimas pisando o desejo.

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