O êxodo de nordestinos brasileiros nas décadas de 60 e 70
Na produção cinematográfica Viramundo, o diretor e roteirista brasileiro Geraldo Sarno (1938-) priorizou a categoria trabalho em torno das oposições estabelecidas entre imigrantes e paulistanos (naturais ou habitantes da cidade de São Paulo, Capital do Estado de São Paulo no Brasil), urbano e rural, progresso e atraso, massas estruturadas e desestruturadas, operários qualificados e não qualificados, desemprego e peleja e vida e morte, para retratar condições sociais profundamente desiguais. Nesta trama de 37 minutos, disponibilizada em 1965, o trem do Norte transporta mais do que indivíduos, mas, sim, seres humanos como necessidades e expectativas das “zonas agrárias do Norte e do Nordeste” para as “formas sociais mais avançadas do Brasil” presentes em São Paulo. Com esses indícios, observa-se a concepção de Sarno circunscrita na ideia de sociedade de classes, de que modo ou a partir de quais atributos as categorias sociais foram construídas e de que forma são apresentadas, como mitos ou verdades, e quais os graus de positividade e negatividade conferidos a estas categorias.
Pari passu, Sarno mobiliza diversas personagens relacionadas à esfera do trabalho, dentre as quais, a que “venceu” em São Paulo e a que retorna para o Nordeste, com o propósito de mostrar a situação do nordestino nesta cidade, revelando, concomitantemente, como as posições destes atores sociais são formadas nas sociedades em tela. Cabe ressaltar que Sarno está pensando o Brasil a partir de uma sociedade em desenvolvimento nos anos 60 do século passado, que se organiza em função da categoria trabalho, sendo a identidade do nordestino fragmentada no momento em que ele ingressa no mercado de trabalho, já que essa ocorrência representa a aquisição de uma consciência, que será emperrada pela religião. Aqui não há uma tolerância religiosa, pois a religião é vista como sinônimo de alienação. Neste contexto, o nordestino deixa de ser nordestino para ser trabalhador, simbolizando a passagem do rural para o urbano.
Diferentemente dessa abordagem marxista fundamentada na relação capital-trabalho, os esforços de produção do filósofo alemão Karl Heinrich Marx (1818-1883), o Marx, sugerem uma tentativa de compreensão da relação entre Estado, sociedade civil e religião. No livro A Questão Judaica (1844), o jovem Marx fomenta a discussão em razão dos escritos do filósofo alemão Bruno Bauer (1809-1882), quando referenda a ideia de cisão entre Estado e sociedade civil, tratando, essencialmente, de duas questões: os planos do homem e do cidadão e as emancipações humana e política. Por outro lado, as contribuições do economista alemão Karl Emil Maximilian Weber (1864-1920), o Max Weber, estão centradas numa investigação apurada sobre judaísmo, confucionismo, taoismo e, principalmente, sobre a relação que resultou na obra A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo (1905).
Treze anos após o documentário dirigido por Sarno, o brasileiro Antônio Gonçalves da Silva (1909-2002), consagrado como poeta Patativa do Assaré, teve publicado em livro o cordel A Triste Partida, escrito nos anos 70 e interpretado mais tarde pelo cantor e compositor brasileiro Luiz Gonzaga do Nascimento (1912-1989), mais conhecido como Gonzagão ou Rei do Baião. Tal como em Viramundo, São Paulo, também é nos versos de Patativa o destino dos retirantes da seca que buscam desesperadamente encontrar melhores condições de vida. No caminho palmilhado pelo retirante, a cidade do Rio de Janeiro significou lugar de passagem e/ou parada de apoio para os nordestinos enredados nestas duas tramas, embora a cidade do Rio tenha recebido uma população significativa de nordestinos, com as mesmas necessidades e esperanças. Todavia, São Paulo foi eleita tanto no documentário de Sarno, quanto nos versos de Patativa como morada permanente dos retirantes, ao mesmo tempo que objetivam regressar à terra natal.
Apesar do pouco estudo, a sensibilidade de raiz fez com que o cearense Patativa cantasse a via sacra nordestina, para além do município de Assaré no Estado do Ceará. Diga-se de passagem, que a maioria dos intelectuais não goza dessa sensibilidade, uma vez que este exercício destoa dos padrões academicistas de entronização de uma razão proprietária de si, anunciada, quotidianamente, pelos arautos da prepotência, arrogância, vaidade e de outros males desse campo. Na contramão desse modus operandi acadêmico e da Linguística Pura e a favor da Linguística Aplicada, justifica-se a escolha de trechos da letra da música A Triste Partida, com a finalidade de salientar alguns jogos de contrastes que perduram nas vidas secas daqueles brasileiros.
A ida para São Paulo não é voluntária, mas forçada pelas condições de miserabilidade vivenciadas pelos nordestinos no dia a dia. Diante da falta de espontaneidade, desejam voltar à terra de origem, caso não sejam acometidos pelo infortúnio na terra que promete felicidade. Neste caminho a ser percorrido, vida e morte se entrelaçam de maneira desigual.
Agora pensando
Ele segue outra tria
Chamando a famia
Começa a dizer
Meu Deus, meu Deus
Eu vendo meu burro
Meu jegue e o cavalo
Nós vamos a São Paulo
Viver ou morrer
Ai, ai, ai, ai
Nós vamos a São Paulo
Que a coisa tá feia
Por terras alheia
Nós vamos vagar
Meu Deus, meu Deus
Se o nosso destino
Não for tão mesquinho
Cá e pro mesmo cantinho
Nós torna a voltar
Ai, ai, ai, ai
A triste partida começa a ser versada e cantada na decisão de viajar, alcançando o seu ápice no dia do êxodo, quando o choque entre contrastes torna-se mais latente nas mentes e nos corpos dos retirantes, que são desterrados com suas raízes em direção ao acaso.
Em um caminhão
Ele joga a famia
Chegou o triste dia
Já vai viajar
Meu Deus, meu Deus
A seca terrível
Que tudo devora
Lhe bota pra fora
Da terra natal
Ai, ai, ai, ai
O carro já corre
No topo da serra
Oiando pra terra
Seu berço, seu lar
Meu Deus, meu Deus
Aquele nortista
Partido de pena
De longe acena
Adeus meu lugar
Ai, ai, ai, ai
A saudade é ampliada conforme os nordestinos se distanciam da sua terra. A chegada em São Paulo é marcada pela timidez proveniente do medo e da pouca familiaridade nos processos interativos e relacionais com uma cidade estritamente racional, movida pela relação capital-trabalho em última instância.
Chegaram em São Paulo
Sem cobre quebrado
E o pobre acanhado
Procura um patrão
Meu Deus, meu Deus
Só vê cara estranha
De estranha gente
Tudo é diferente
Do caro torrão
Ai, ai, ai, ai
Trabaia dois ano,
Três ano e mais ano
E sempre nos prano
De um dia vortar
Meu Deus, meu Deus
Mas nunca ele pode
Só vive devendo
E assim vai sofrendo
É sofrer sem parar
Ai, ai, ai, ai
Passam-se os anos e as promessas de felicidade travestidas sob a insígnia da liberdade mostram que o trabalho mais escraviza do que dignifica e emancipa os homens de si e da sua espécie.
Do mundo afastado
Ali vive preso
Sofrendo desprezo
Devendo ao patrão
Meu Deus, meu Deus
O tempo rolando
Vai dia e vem dia
E aquela famia
Não vorta mais não
Ai, ai, ai, ai
Distante da terra
Tão seca mas boa
Exposta à garoa
A lama e o pau
Meu Deus, meu Deus
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul
Ai, ai, ai, ai
Nota-se a insuficiência da peleja como inibidora do endividamento e da reclusão no moinho satânico, descrito pelo filósofo social austríaco Karl Paul Polanyi (1886-1964) no livro A Grande Transformação- as origens da nossa época (1944), onde chama a atenção para o tipo, o tempo, o ritmo e a intensidade das mudanças, 100 anos após a publicação d’A Questão Judaica. A vitimização nas mais distintas formas de manifestação da violência, dentre as quais, a simbólica, fez com que nordestinos sentissem na mente e no corpo a frustração da adequação aos objetivos com o propósito de alcançar a superação e o reconhecimento. Devido à precarização do illusio, talvez, para muitos nordestinos, a morte seja mais preferível a permanecer nesse mundo.
Charlles da Fonseca Lucas é Professor, Sociólogo e Cientista Político. Autor dos livros Vida e Obra de Norbert Elias nos Planos Filosófico e Humanístico: automodelagem, nacionalidade e formação intelectual e Segurança Pública- Onde está a Polícia que Nós queremos?, ambos publicados pela Juruá Editora, em 2014.