De que está à procura ?

Colunistas

O caixão vazio

Aproximei-me da estante, varri as prateleiras com um olhar catarático e a obra soltou-se daquela prateleira silenciosa mergulhando docemente nas minhas mãos. Como um chocolate caído de um distribuidor automático sem se lhe ter metido as moedas. Foi há coisa de dias numa breve incursão a um antro de perdição – uma livraria solidária lisboeta que vende a preços módicos uma vastíssima paleta de livros em segunda mão, doados por quem deles se quer desfazer. O produto das vendas reverte a favor de iniciativas culturais. Excelente desculpa para comprar mais livros, como se eu precisasse de tal coisa.

O livro que caiu em mim era uma obra de Armando Batista-Bastos – o BB -, prolixo jornalista e escritor, antifascista, grande consumidor de álcool, cigarros e mulheres, admirado por muitos, detestado por outros tantos, laço a estrafegar-lhe o colarinho, língua sibilina a dar o pontapé de saída das suas grandes entrevistas com a sempiterna pergunta «Onde é que estavas no 25 de abril?». «Elegia para um Caixão Vazio», que título fabuloso, pensei. Intrigante. Tétrico. Que caixão seria aquele? Vazio? De quê? Para encher com quê? Ou com quem? Que morto se escapuliu? Ou antes…quem terá logrado defraudar a própria Morte?

Foi pelo título que o comprei. «Os livros são como as pessoas, se vêm ter contigo por alguma razão é.», murmurei, olhando em volta para me certificar de que ninguém me ouvia, não fossem tomar-me por uma louca. «Vou roubar-te o título, BB. À descarada. Hoje preciso de um caixão. Empresta-me este.». Sentia-me sombria, talvez um qualquer caixão me pudesse ajudar a exorcizar o irremissível desalento que me assombrava há dias.

Aquele mal-estar ganhou forma, cristalizou-se naquela tarde. Tínhamos ido passear. Procurávamos um cenário sublime de cascatas a gorgolejar pelos rochedos, algures na montanha. Embrenhamo-nos num Portugal profundo. Estradas desertas, casas por aqui e por ali, mimosas em flor em princípios de fevereiro, a desafiar a humidade que escorria do céu sem lavar a tristeza. Às portas daquela vila, deparámo-nos com um santuário da Nossa Senhora de Fátima. Plantado ali, quase a despropósito. «Vamos ver?». Parámos o automóvel, saímos e aproximámo-nos. Lá estava a Senhora, uma escultura entristecida empoleirada numa coluna. Em duas das paredes laterais da base, painéis de azulejo a azul e branco, um deles uma interpretação naïve da visão dos três pastorinhos. Da base, partia um lanço de escadas. Em redor do monumento, um terreiro circular empedrado. Frente à Senhora, na direção em que olhava, partia do limite do terreiro um tanque retangular, ou melhor, uma sucessão de tanques em socalco, pouco profundos, com muitas folhas, terra e alguma água acastanhada, como se fosse um vale de lágrimas. Terminava esta fieira de tanques num gigantesco crucifixo semitombado, cravado em dois muros de betão que ambos os braços da cruz atravessavam. Como um caixão roto, com os braços e a cabeça do morto de fora…

«Opressivo, este santuário…Tenebrosa, esta cruz…que negro astral, este lugar….» murmurei para o meu amigo. E pensei que aquela Senhora não podia senão esvair-se em lágrimas, olhos postos num filho não só fora morto mas também emparedado… aqui, neste sítio, não há fé, nem esperança, nem qualquer possibilidade de redenção… como se o betão esmagasse toda a cristandade…

Caminhamos, eu para um lado, o meu amigo para outro. Atraíram-me os muros de pedra seca a separar os olivais esparsos, testemunhas mudas da inteligência e da arte de quem teve de aprender a viver com a pedra. Dizia um amigo jornalista que um dia escreveu sobre estes muros que eles também nos ensinam um par de lições sobre a natureza humana. Explicam tudo o que perdemos nesta mania de betonar para tornar as coisas definitivas. Observo as plantas que crescem nos interstícios e nas fissuras das pedras, aqui e além tingidas pelo verde e o amarelo das saxifragas. Saco o telemóvel do bolso e fotografo. Mais uma história para o Facebook.

Prosseguimos. Avançamos por uma pista pintada de verde destinada a ciclistas e peões. De onde vem ? Para onde vai? «Repara», diz ele, «a tinta está nova… ninguém passa aqui…». «Talvez esteja pintada de fresco…», arrisco hesitante. Mas quem sabe se não terá razão…

Avançamos para São Fiel. Li mais tarde na Internet que, em finais do século XIX, São Fiel fora um dos mais prestigiosos estabelecimentos de ensino portugueses, gerido pela Companhia de Jesus e frequentado por uma plêiade de jovens que se destacaram nas letras e nas ciências. Extinto após a implantação da República, São Fiel foi ainda sanatório militar antes de se transformar em reformatório de má memória para menores ditos «corrigíveis». Saídos os últimos ocupantes daquele lugar para outras instalações, São Fiel acabou por ser engolido por um medonho incêndio no qual também arderam os projetos de reabilitar aquelas instalações para fins turísticos. E ali estava aquela medonha carcaça oca, rodeada de um vasto jardim cheio de laranjeiras carregadas de frutos dourados. «Quem os colherá? Ou apodrecem no chão?» perguntei-me.

Caminhamos por uma rua deserta, ladeamos casas fechadas. Um cão ladra numa varanda. «Ali viverá alguém…», penso. Em frente, uma casa em ruínas, as ferrarias carcomidas de ferrugem, a vegetação a explodir selvagem no jardim abandonado. Passo por uma mulher idosa, cumprimento-a e ela dá-me os bons dias com uma voz fresca de menina surpreendida com a presença dos forasteiros. Um automóvel a resfolegar como um cavalo cansado abranda a sua marcha lenta para a cumprimentar, lá dentro um casal de velhos cabelos encanecidos. Perguntam pelas respetivas famílias.

Mais à frente um largo rodeado de tílias. Outra igreja fechada, os vitrais da fachada a refletir a luz morta do dia, ao lado de um portão fechado a cadeado carcomido a barrar o acesso às laranjas de São Fiel.

Voltamos para o carro e seguimos. No centro da vila o cenário e a atmosfera são distintos. Nota-se um esforço de preservação, veem-se pessoas, alguns comércios, um restaurante cujo nome aponto talvez para uma futura visita e muitos alojamentos locais num esforço evidente de cativar o turismo para as belezas naturais daquela terra rude, salvando-a do abandono e do esquecimento. Seguimos as indicações das cascatas, a paisagem troca-nos porém as voltas. Paramos numa outra vila para um café com cheirinho generosamente servido por um velho afável num estabelecimento deserto. Com o bagaço, bebemos umas gotas de ânimo. Há vida ali, mas não está à vista. Para um automóvel, sai uma mulher, olha-nos com curiosidade, chega outro homem, sentam-se na esplanada, trocam impressões com o dono do café.

«Como seria viver aqui?», pergunto. Bastaria o amor à natureza, uma vida interior intensa, uma qualquer prática espiritual, um hobby absorvente? Ou antes um automóvel e uma boa ligação à internet? Ou tudo isso? «Eu poderia viver aqui», diz o meu amigo «gostaria de viver longe da hipocrisia humana».

Ali, naqueles lugares nas faldas da Gardunha, como em muitas outras paragens do Portugal dito profundo, as tensões do mundo global parecem nem sequer ser pressentidas. O mundo é uma abstração, o país parece eternamente velho e ausente. As notícias da capital ouvem-se em ecrãs suspensos nos cafés às moscas como lengalengas mastigadas por políticos de fantochada. As coisas boas que por estas terras se veem – a paisagem, ora doce, ora agreste, o azeite, o queijo, o vinho, a vontade de integrar e reter pessoas, os esforços de semear cultura, etc., parecem-me ilhas num oceano de desarticulação e subaproveitamento. É como se faltasse um tronco comum, uma espinha dorsal, e uma cabeça – ou seja, um fio narrativo arejado e moderno que articulasse e sustentasse esses esforços numa determinação que transcendesse os horizontes imediatistas do caciquismo local

Volto ao livro de BB. Uma das suas personagens diz a determinada altura «Já notaste que Portugal possui a configuração de um caixão, e de um caixão vazio?». Nunca de tal me tinha apercebido… mas as minhas andanças pelo país levam-me a crer que esta observação é mais pertinente do que eu desejaria. É. Por vezes, como nessa tarde, o país parece-me um caixão de betão vazio e furado, de cujas aberturas saem de vez em quando uns braços e umas pernas que se debatem na tentativa de desbravar caminhos – projetos e iniciativas que tantas vezes soçobram por falta de interesse ou de apoio.

Terras curiosas, estas, país curioso o meu: faz-se muito por e para pessoas que aqui não estão ou que nem sequer existem – parques infantis em aldeias onde não há crianças, palcos cobertos em lugares onde nenhuma festa se organiza, pistas para bicicletas onde ninguém anda de bicicleta, projetos megalómanos que ficam em águas de bacalhau, alojamentos turísticos, restaurantes e bares de que dificilmente a população local poderá usufruir, limitando-se a neles trabalhar auferindo salários a rasar uma sobrevivência a balões de oxigénio por falta de alternativas. Um país de laranjas a apodrecer no chão porque ninguém as apanha. Um país que só se enche de cor no verão, quando é invadido por hordas de turistas ou pelos tão mal amados emigrantes. Um país onde os imigrantes ricos são bajulados e os imigrantes pobres maltratados. Um país de santinhos, heróis bafientos, igrejas fechadas e palácios em ruínas onde o cidadão comum vê as suas necessidades básicas ignoradas por uma classe dirigente à deriva e demasiado pacóvia para ser – verdadeira e genuinamente – corrupta, porque até para isso lhe falta génio. Um país onde a acutilância da intervenção cidadã por demais se esgota em arremessos jocosos publicados nas redes sociais e em corsos carnavalescos desprovidos de quaisquer consequências.

No referido livro, a mesma personagem pronuncia estas palavras terríveis «Éramos todos mais livres nos tempos do fascismo. Sabes porquê? Porque a esperança estava intacta (…).»

Hoje, em Portugal, a esperança não está intacta. O vazio do caixão é a ausência de uma esperança que dê sentido à vida, que anuncie um futuro. Resta-nos, pois o riso. O livro de Baptista-Bastos não tem nada a ver com isto. É só mesmo o título. E o caixão.

Eduarda Macedo

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA