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Não aterres já

© Eduarda Macedo

Diz um ditado que a mulher planeia e o diabo ri-se. E foi o aconteceu. Tudo começou quando contactei a Luxair para antecipar o meu voo de regresso ao Luxemburgo. Respondeu-me do centro de apoio ao cliente uma voz lenta e deprimida que, após muitas verificações e largos minutos de espera, me anuncia ter havido uma alteração da tarifa e que, por conseguinte, a troca dos voos me iria custar… um balúrdio!!

  • Como assim?? – perguntei estupefacta – Para que serve então um bilhete flexível? Não é para se poder alterar o voo sem custos adicionais??

Ao fim de uma hora, com a pobre senhora do centro de apoio à beira das lágrimas e a desfazer-se em desculpas por não conseguir que o computador lhe obedecesse, lá se conseguiu resolver o que quer fosse que não a deixava alterar o meu voo – talvez a minha obstinação em não querer pagar nem mais um chavo. Agradeci-lhe empática e efusivamente – que difícil é lutar contra um computador!! – e até consegui fazê-la rir.

Na nova data prevista, e sem ter conseguido fazer o check-in em linha (o que não é raro acontecer), lá fui de armas e bagagens para o aeroporto. No trajeto, recebo a informação de que o voo estava atrasado. «Please proceed to check-in counter and gate according to your initial departure time». Até aí tudo normal. Mas não estou na lista dos passageiros. Já não é normal. Mostro a correspondência de confirmação do voo. Gera-se a confusão, com três pessoas a tentar perceber o que se passa.

  • A sua reserva está cancelada – dizem-me.
  • Mas cancelada como, porquê e por quem?? – pergunto atónita.
  • Não sabemos. Vai ter de falar com a companhia para marcar outro voo, aqui nada podemos fazer – acrescentam contristados.

Assim fiz. Não soube a razão do cancelamento – de pouco serviria – mas puseram-me rapidamente num voo da Swissair para Genebra, de onde eu sairia rumo ao Luxemburgo duas horas e picos depois. «Lá vou eu para mais uma passeata pelos céus europeus» – pensei, recordando uma aventura recente, um voo Berlim/Luxemburgo via Frankfurt e Munique. Chegaria pelas nove da noite. Menos mal. Porém, no check-in da Swissair, sou imediatamente informada de que o voo está atrasado cerca de uma hora. «Um bocadinho apertado…» – e vou antecipando – «talvez em Genebra as portas não sejam muito distantes uma da outra … e é provável que não haja tempo para a transferência da bagagem…». Passo o controlo de segurança e vou sentar-me no pequeno salão de chá da Versalhes onde cumpro o meu ritual pré-partida: um abatanado e um bolo de arroz. Leio, escrevo, deslizo os dedos pelas histórias do Facebook. Espero. Embarcamos.

O voo da Swissair tem de aguardar mais quinze minutos na pista para poder descolar. Há muito tráfego nos céus de Lisboa, diz-nos o comandante desculpando-se por mais este atraso. O tempo em rota está bom, não se prevê turbulência, a temperatura à chegada é de 12 graus. Os assistentes de bordo distribuem garrafinhas de água. Guardo a minha. O voo decorre insípido. A meu lado, dormem. Um bebé chora copiosamente. Nada a assinalar. Antes da aterragem, oferecem-nos um chocolatinho suíço. Aterramos. Os ecrãs sobre os assentos informam sobre os voos de ligação. Fico a saber que o voo LG 8368 com destino ao Luxemburgo sai da porta 11.

De pé no corredor, ouve-se novamente a voz do comandante: o corredor de chegada foi alterado à última da hora, pelo que os autocarros e o pessoal que acompanha os passageiros no desembarque ainda não estão a postos. Vamos ter de aguardar. Pedimos desculpa pelo incómodo.

«Autocarros… quer isto dizer que não saímos por uma manga…são mais dez minutos pelo menos até chegarmos ao edifício…», penso. Concentro-me nas informações sobre os voos de ligação. «Zurique, Porta B44, dirija-se imediatamente à porta de embarque». «LG 8368 Luxembourg, Porta B11, dirija-se imediatamente à porta de embarque». À minha frente, os passageiros começam a avançar e olho para o ecrã pela última vez: «LG 8368 Luxembourg, contacte o balcão das transferências». Por outras palavras, tinha perdido a ligação.

No aeroporto, sigo as instruções dadas no ecrã e percorro corredores e subo e desço escadas procurando em vão o balcão das transferências. Os painéis vão-me levando para áreas cada vez mais desertas

  • Ó minha senhora – diz-me uma funcionária que saía do espaço de recolhimento interreligioso – o balcão das transferências está fechado a esta hora. Se perdeu a sua ligação tem de ir às informações. Está a ver ali ao fundo o relógio verde da Omega? Por detrás dele, desce as escadas rolantes e as informações são à sua direita.

Assim fiz, irritada comigo própria. «Obediente de mais – pensei eu – seguiste mais uma vez as instruções dadas por um monitor estúpido?? Porque não te lembraste do que aprendeste em situações semelhantes, hã??»

Afogado num mar de néones coloridos, o provisório balcão das informações passava de tal forma despercebido que tive de perguntar mais uma vez onde ficava. Estava à minha frente. Senti-me perfeitamente idiota.

No balcão, brilhava uma folha A4 plastificada que dizia «Volto daqui a 5 minutos». Espero. Do tabique do fundo abre-se uma porta e surge um indivíduo alto, fardado e bem parecido que me pergunta em que pode ser útil.

  • Perdi o meu voo de ligação – respondi – e recebi instruções para me dirigir ao balcão das transferências que está fechado. Não sei o que fazer.
  • Por que perdeu a sua ligação? – perguntou.
  • Porque o seu avião aterrou demasiado tarde… – respondo irritada.
  • O avião não é meu, não trabalho para a Swiss…- respondeu olimpicamente, como se não trabalhar para a Swiss fosse motivo de grande satisfação pessoal – O que a senhora tem de fazer é ir buscar a sua mala o mais rapidamente possível, antes que vá parar à bagagem não reclamada. Depois, tem de ir aos serviços da Swiss para tratar do seu novo voo.

Era o que eu já devia ter feito. Agradeço e aí vou eu. No tapete 5, a bagagem proveniente de Lisboa já tinha sido entregue. Rodeado por um magote de gente, o tapete estava agora a vomitar bagagem vinda de Madrid. «Espero que este tapete não pratique nenhuma forma de apartheid ibérico… – suspirei – e que a minha mala ainda ali esteja disfarçada de espanhola…». Mas não, já lá não estava. Nem rasto. Maldita eficiência suíça… Atrevo-me a dirigir-me a um polícia que, com um sorriso armado até aos dentes, me indica o balcão da bagagem perdida com a maior afabilidade,

  • Madame de Macedo? Estava à sua espera… diz-me, nos perdidos e achados uma funcionária genuinamente calorosa, com o cabelo impecavelmente apanhado, farda vermelha, lenço ao pescoço e um sorriso de Julia Roberts.

Estou definitivamente conquistada pelo charme suíço! Explica-me tudo o que tenho de fazer para recuperar a mala, remarcar o meu voo e obter o voucher para o hotel, incluindo transporte, jantar e pequeno almoço.

E lá vou eu. Saio, subo escadas, palmilho alas desertas e encontro os serviços da Swissport. Mais uma vez, encontro simpatia a brilhar numa cara redonda de lua, emoldurada por uma trança escura. Ainda pergunto se seria possível viajar de comboio – estou desgostosa com a infame pegada ecológica destas andanças. A complicação é tal que abandono a ideia. Regressarei ao Luxemburgo de avião – via Frankfurt.

No hotel, atravesso o átrio frente às salas de conferência para descer ao bar lounge. Tem um pé direito que mais parece o de um salão de baile. No bar, a luz é filtrada, muitos homens, poucas mulheres, louça, restos de comida e copos meio cheios sobre as mesas desocupadas. Sento-me ao balcão, uma espécie de ilhéu oval onde um empregado se azafama a preparar cocktails. Ao meu lado, alguém deixou um hambúrguer a meio. O ilhéu tem uma abertura por onde entram e saem outros empregados pressurosos. «Todos fazem tudo, quais verdadeiros especialistas do multitasking… mas são poucos e não dão conta do recado…». O atendimento demora. Finalmente uma das empregadas dirige-se a mim e cumprimenta-me. Entrego-lhe o voucher.

  • Ah, tem um voucher – e começa a debitar frases sabidas de cor – os 55 francos do seu voucher dão direito a… – olha melhor para o papelinho e exclama horrorizada – O quê??!! Só lhe deram 20 francos?? Que companhia lhe fez isto??
  • Sabe, não viajo em executiva… logo, sou uma daquelas passageiras insignificantes com quem a Swiss pode poupar dinheiro…
  • Ao que se chegou!! – disse a mulher suspirando – Por vinte francos posso propor-lhe massas, penne por exemplo, com o molho que quiser, pesto, bolonhesa, arrabiata, etc.
  • Arrabiata estou eu – respondi-lhe a rir – traga-me a carta, por favor. E um copo de vinho branco. Suíço. Ao seu gosto.
  • Está bem, vou-lhe trazer o meu preferido… é muito bom! – retorquiu, animada, dando-me a carta. Depois descontaremos os 20 francos da sua conta.

Folheio a carta e constato, com satisfação, que o voucher chega para pagar o vinho.

Na madrugada seguinte, hesito à entrada da ensonada sala do pequeno almoço. É obviamente de um daqueles buffets pantagruélicos… A oferta é de tal modo vasta que me pergunto sempre como vou sobreviver à sobre-estimulação cognitiva e à tirania da liberdade de escolha. Quanto mais opções, mais é preciso pensar, mais difícil é decidir e mais lentas são as reações. A mente humana parece só estar preparada para lidar com um número limitado de opções… É o que diz a psicologia .

Entro, procuro aquilo que já sei que quero. Mas paro a uns escassos metros de um balcão onde um jovem empregado de traços orientais fritava dois ovos numa pequena frigideira de profissional. Para mim um ovo estrelado é zás, trás, pás. Mas o rapaz estava completamente absorvido na tarefa, como se o futuro do universo dependesse da integridade daquelas gemas. Uma das mãos empunhava uma pequena espátula, enquanto a outra segurava a pega da frigideira com firmeza delicada. Com a espátula, acariciou os ovos de mansinho. Com a outra mão deu um toque subtil na frigideira. À sua frente, a pessoa que solicitara aquele acepipe, um cinquentão alto com um bigode farfalhudo, olhava embevecido para a frigideira e para as mãos do rapaz. Fiquei impressionada. Nunca tinha visto um homem apaixonado por um ovo estrelado…

Enjoada com tanta fartura e com o cheiro do feijão com molho de tomate, sento-me numa mesa alta com um iogurte e dois cafés, um para beber e outro para levar. Estava preocupada em apanhar a carrinha para o aeroporto a tempo e horas. Partilho a carrinha com meia dúzia de pessoas ensonadas e taciturnas, dois europeus engravatados, uma jovem asiática e um casal indiano. Ninguém responde ao meu bom dia.

Com o check-in feito de véspera, dirijo-me ao balcão do drop off da bagagem, que dispõe de meios humanos e de um drop off rápido, mecânico. Decido arriscar. Apresento o meu cartão de embarque ao feixe laser. A máquina saúda-me com um amistoso «Bem-vinda Madame De Macedo!» e vomita a etiqueta da bagagem. Levanto a película protetora, consigo a proeza de não ficar com a etiqueta colada aos dedos, faço-a atravessar a pega da mala e colo-a corretamente. Sinto-me inteligente. Despacho a mala sem dificuldades, fazendo votos para que não fique encalhada no aeroporto de escala.

Ao passar o controlo, porém, a minha mochila é desviada para as mãos de um jovem que, enquanto enfia umas luvas de plástico azul, me pergunta amavelmente, se pode abrir a mochila. «Raios, esta gente é mesmo afável e bem educada! Não é só um, são todos…» – penso para comigo). Abre a mochila, tira dois livros, um caderno de palavras cruzadas, o estojo, o cabo do computador e mais tralha ainda e no fundo, lá bem no fundo, encontra a garrafinha de água que me tinham dado no voo do dia anterior.

  • Desculpe, esqueci-me por completo… – disse eu.
  • Pois…ou a deixa ou terá de a beber… – disse o rapaz.
  • É a vossa água. Não constitui perigo algum – respondi.

O rapaz riu-se. Sim, tinha reconhecido as garrafas distribuídas nos voos da Swissair.

  • Lá terei de a beber… – digo eu. E desenrosco a tampa da garrafa.
  • A sua carteira é muito…original… – diz subitamente o rapaz, olhando para a carteira pousada ao lado da mochila e inclinando-se para a ver melhor – É couro, não é?
  • É couro, sim – respondo.
  • Original, mas um bocadinho arrepiante …disse, jocoso, enquanto tocava com a polpa dos dedos uma das cabecinhas moldadas na badana da carteira. – Onde a comprou? Numa casa mortuária especializada em bebés? – pergunta, rebentando às gargalhadas.
  • É artesanato português…
  • A senhora é portuguesa??- perguntou o rapaz entusiasmado – De onde?
  • Sim, sou portuguesa, de Lisboa – respondi a beber mais um gole.
  • Os meus avós, pais da minha mãe, eram portugueses da Beira Baixa… Fui lá algumas vezes quando eu era garoto e depois deixámos de lá ir. Quezílias de família. Tudo por causa de uns ovnis que, diziam, tinham visto aterrar na serra… enfim, gente doida! – e prosseguiu – Bem… se eu oferecesse uma carteira como esta à minha mulher, ela era capaz de pedir o divórcio…
  • …o que seria decerto um grande erro… – respondi, quase a engasgar-me com os últimos goles de água e o esforço de conter o riso.
  • Sim, seria – respondeu galhofeiro, enquanto fazia desaparecer a minha garrafinha vazia num grande contentor. Bon voyage, Madame!

Percorro o caminho até à porta de embarque, uma de várias situadas numa espécie de meia-lua nos confins do aeroporto. Tomo mais um café e compro outra garrafa de água. Depois de uma voz tranquilizante informar que o embarque para o Luxemburgo está prestes a começar, a hospedeira na porta pede toda a atenção dos passageiros para um anúncio importante: procuram, entre os passageiros daquele voo, voluntários que aceitassem descolar no voo seguinte para Frankfurt. Uma hora e meia depois e uma módica compensação de 125 euros. Havia obviamente mais passageiros do que lugares no avião… Os 125 euros permitir-me-iam compensar largamente o jantar da véspera, mas não obrigada, não queria correr o risco de perder mais uma ligação. Não fui decerto a única com este pensamento: ninguém se mexeu e não sei como a companhia resolveu o problema.

Aterro em Francoforte, um aeroporto que movimenta diariamente 150 000 a 200 000 passageiros. Nele trabalham cerca de 80 000 pessoas, mais do que em todas as instituições da União Europeia juntas. É como estar no ventre de um monstro. Quero mexer as pernas e fugir à multidão. Evito passadeiras rolantes e elevadores. Ando, ando e ando. Subo e desço. Cruzo vagas e vagas de pessoas, isoladas, em grupos, em excursões, em família, em manada, umas a arrastar malas, outras a arrastar crianças, outras a arrastar sacos do free shop cheios de tabaco, álcool e cosméticos. Todas parecem andar à toa, apalermadas, robóticas, sem tino e sem rumo. Sinto a pressão demográfica como se estivesse num autocarro indiano, quase me falta o ar. Há filas para tudo. Até os homens fazem fila à porta das casas de banho.

«Por que viajam as pessoas? Por que viajam tantas pessoas? Por que raio viajo eu?» – pergunto-me – Por me faltar a imaginação? Fernando Pessoa detestava viagens. Para viajar, basta existir, dizia ele…». Pego no meu iPhone, abro as notas, releio citações que apontara há muito: «Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha de deslocar para sentir.» «As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.», Bernardo Soares, Livro do Desassossego.» Diluo o cansaço e uma ponta de melancolia em mais um café, e procuro um canto onde me possa subtrair, por alguns minutos que seja, àquele zumbido incessante e medonho da multidão tragada pelo monstro.

O voo para o Luxemburgo descola atrasado. Adormeço. Acordo com o embate dos pneus do avião na pista. Aqui, o aeroporto parece um aeroporto de brincar. Está para o de Francoforte como o meu quintal está para os jardins de Serralves. Pequenino, quase vazio e silencioso. Abençoada pequenez, abençoado vazio, abençoado silêncio. Raiava um sol dourado de outono e a temperatura era amena. Que bom.

Cheguei a casa 24 horas depois da hora inicialmente prevista. Faltei a um congresso, a uma inauguração e a um concerto. Fiz-lhes falta? Não. Fizeram-me falta? Na verdade, também não. Em vez disso, vi, li e escrevi um monte de coisas. Vistas bem as coisas, vivi um momento suspenso, um compasso de espera entre duas vidas, entre dois mundos. «Deixa-te estar assim, no ar. Não aterres já, toma tempo, toma o tempo, toma o teu tempo…». Que bom!

Eduarda Macedo

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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