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Marcos Felipe: o teatro como incêndio da consciência

Revelação do teatro paulista que tem ganhado os palcos do Brasil inteiro, Marcos Felipe nos traz com equilíbrio, envolvimento e maturidade, um pouco de sua bem-sucedida e premiada carreira.

Fundador da Cia Mungunzá de Teatro, recebeu, pela encenação de Luis Antonio-Gabriela indicações par alguns dos prêmios mais importantes do teatro brasileiro, levando aos palcos oportuno debate sobre o preconceito e a opressão às minorias sexuais em nosso país. Em 2016, sua companhia, graças a seu arrojo e destemor, ocupou um espaço no bairro da Luz, em São Paulo, ali instalando sua sede, com o Teatro de Contêiner Mungunzá.

Em que momento o teatro passou a fazer parte de sua vida?

Acho que desde que nasci. Sempre caminhei para o lado artístico das coisas, lembro que quando era criança, já no primário, eu gostava de representar e sempre estava envolvido nos “teatrinhos” de final de ano. Em 2005, eu entrei numa escola de teatro e, desde então, comecei a fazer minhas manifestações artísticas com mais propriedade e mais próximo do profissionalismo.

Luis Antonio – Gabriela foi a segunda encenação da Cia Mungunzá, da qual você é fundador. Porque a Criança Cozinha na Polenta foi a primeira É possível um paralelo entre as duas montagens? Como foi o encontro com os dois textos?

Sim, ambas foram levantadas pelos mesmos criadores. Há um estudo estético de manifestação artística por de trás da criação. O Nelson Baskerville, diretor artístico do grupo, estudava essa forma de fazer teatro há bastante tempo. Logo, não há como desconectar uma da outra. A Polenta foi uma espécie de degrau para chegarmos a Luis Antonio-Gabriela. Claro, na segunda montagem, o estudo estava mais verticalizado, mais apropriado como linguagem e mais impregnado no corpo do ator/criador. Contudo, é a mesma forma de contar uma história da primeira peça. Encontramos o romance Porque a Criança Cozinha na Polenta, nos apaixonamos por ele e o adaptamos para o teatro. Já no segundo trabalho, o Nelson nos contou sua história e nós achamos que seria pertinente levá-la ao palco.

Como se deu a construção do seu personagem em Luis-Antonio-Gabriela? Na busca de referências para compor o personagem, alguma preocupação especial?

Sim, muita preocupação. Não apenas minha, mas de todos. Não queríamos reproduzir nosso próprio preconceito, por isso precisamos de um tempo para errar e partir do próprio erro. Enxergar a figura da travesti com um olhar diferente e dissonante daquele que até então estávamos acostumados. Fiquei sabendo que faria o Luis Antonio pouco tempo antes da estreia. As divisões de personagens aconteceram naturalmente e eu tentei me embebedar da história para poder fazê-la com leveza e doçura. Procurei não ficar parecido com ninguém, não imitar ninguém.

Atualmente, a maioria das pessoas procura entretenimento e riso fácil quando sai de casa para ir ao teatro. Acredita no teatro como entretenimento?

Acredito. O teatro deve ter diversas facetas. O problema é quando se estipula um segmento como único e predominante. O teatro precisa alegrar, informar, questionar, fazer chorar, fazer com que sua cabeça, seu corpo, sejam tomados por sensações. O teatro é único. É ali, na hora. Eu tenho como principio não fazer qualquer coisa no palco. Nada contra quem faz do teatro uma extensão da novela global, mas eu jogo noutro time.

Ao longo de dois anos de apresentações de Luís-Antonio-Gabriela, em algum momento ocorreu alguma reação inusitada por parte do público?

Várias. Cada noite é uma noite, cada cidade carrega consigo sua cultura, seu jeito de ver a peça, sua maneira de enxergar, visualizar, escutar o que está sendo apresentado. Fizemos, por exemplo, uma apresentação no Rio de Janeiro, para alunos de escolas públicas. Foi estranho, mas foi lindo. Especialmente pela espontaneidade do público, sem o que chamo de regras cult.

Vivemos num país onde boa parte da população nunca entrou numa sala de espetáculos. Como mudar tal realidade? E o que dizer das leis de incentivo à cultura?

Há uma parcela grande de culpa na má formação educacional no país, porém, acredito que nossos gestores não são os únicos culpados. O teatro se afastou da população. Quase sempre olhando para o próprio umbigo e muitas das vezes levando ao palco histórias que não causam empatia em seu povo. Talvez, o teatro documentário seja uma saída para a identificação imediata. Conforme comentei, se o teatro for somente uma extensão da novela global, em nada vai ajudar. Com relação às leis de incentivo, tenho muitas ressalvas com a Lei Rouanet. Há um equívoco na liberação dessa verba federal que, por falhas, está sendo destinada apenas para grandes produções, negócios e empresas.

O ator e diretor francês Jacques Copeau defende a ideia de uma encenação praticamente sem objetos de cena, pois para ele a ação no palco se torna mais enriquecida quando não há cenário. “Quanto mais nua estiver a cena, tanto mais a ação poderá fazer aí nascer sortilégios. Quanto mais austera e rígida for, tanto mais a imaginação aí trabalha livremente. É sobre o constrangimento material que a liberdade de espírito se apoia.” Concorda com ele?

Não! Hahahahah. Acho ingênuo não somar ao teatro tudo que a mundo contemporâneo pode trazer. Se para contar uma história bem contada, temos mil coisas ao alcance das mãos, não sejamos ingênuos em não usá-las. Todas as manifestações artísticas caminharam com o passar dos anos. O teatro também precisa caminhar.

Qual o maior desafio para atingir uma estética teatral mais atuante e crítica de nossa sociedade, num mundo norteado pelas leis de mercado?

Difícil, mas não impossível. Fazer um teatro pensando nos seguintes pilares, apontados por Roland Barthes: festa; conhecimento; desenlace solene após um dia laborioso; incêndio da consciência.

Dizem que somente atores com talento permanecem, mas, infelizmente, isso nem sempre ocorre. Há um número razoável de atores sem talento algum no mercado, principalmente na televisão. O que leva a esta situação? A televisão está em seus planos?

Eu não saberia dizer sobre a televisão, pois não tive oportunidade de trabalhar nesse veículo. Acredito que na televisão há outra vertente para manter-se como artista, pois não necessariamente você precisa ser talentoso. Acredito que sejam necessárias outras qualidades, assim como ser bonito ou se enquadrar no que a mídia enxerga como bonito. A televisão não é meu foco. Não fecho a porta, mas não é meu objetivo de vida. Eu gosto mesmo é do cheiro de poeira das coxias.

Indicação como melhor espetáculo pela APCA, Prêmio Shell de melhor direção, assim como indicações aos prêmios Governador do Estado e Bravo. Qual o segredo para tanto sucesso com Luís-Antônio Gabriela?

Quem me dera saber essa resposta. Acredito que tenha sido uma comunhão de fatores: uma boa história, bons artistas envolvidos, coração aberto, profissionalismo, ser conduzido pela batuta de Nelson Baskerville, etc…

Pode nos fazer uma retrospectiva dos trabalhos que vieram após Luís-Antônio Gabriela e quais são hoje as principais linhas de pesquisa e atuação na Cia Mungunzá?

Poema Suspenso para uma Cidade em Queda, direção do Luiz Fernando Marques, que se debruçou em episódios conturbados da vida pessoal dos artistas da Cia Mungunzá de Teatro. Era uma Era, direção da Verônica Gentilin, primeiro espetáculo infantil/infanto-juvenil do grupo, que teve como objetivo um estudo amplo sobre a memória e a discussão sobre a era da tecnologia. E, por fim, Epidemia Prata, direção da Georgette Fadel, que revelou os atravessamentos diários da Cia Mungunzá de Teatro, no centro de São Paulo, no bairro da Luz, local de extrema vulnerabilidade social.

Quando a ideia de ocupar um espaço público no bairro da Luz e ali instalar o Teatro de Contêiner Mungunzá? Que desafios têm sido maiores na manutenção do espaço, seja em relação aos problemas sociais da região, seja no que se refere ao governo da cidade de São Paulo?

Difícil de responder, pois não temos o distanciamento de tempo necessário para uma análise mais contundente. Ocupamos um terreno em desuso no centro de São Paulo, num ato de pura ousadia e necessidade de propor novos caminhos em políticas públicas. O Teatro de Contêiner Mungunzá foi alçado muito rapidamente ao posto de centro cultural público, recebendo uma grande demanda artística e de público. Nossos aprendizados são diários.Sem dúvida, nesses quase dois anos, conseguimos apontar alguns novos caminhos no âmbito urbanístico e na gestão pública de espaços culturais. Nosso maior desafio é o entendimento político e afetivo da nossa área de atuação. Até onde seguir sem ser assistencialista? Até onde seguir sem tirar a responsabilidade do Estado? Como atuar como ente privado sobre um solo público, sem ultrapassar a fronteira ética e moral? Como colocar em prática projetos importantes sem recursos ou apoio governamental? Como explicar para iniciativa privada que é importante ter afeto e política pública por pessoas em situação de vulnerabilidade social? Como é estar num local de vulnerabilidade social sem ser colonizador ou corroborar com a gentrificação? Enfim, as questões são múltiplas. Mas a vontade de superá-las também.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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