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Lima Trindade: a reinvenção da vida pela literatura

Nascido em Brasília e radicado há quase duas décadas em Salvador, Lima Trindade acaba de publicar seu primeiro romance, As Margens do Paraíso, que traz como cenário a construção da nova capital do país, na segunda metade dos anos 1950. Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), editou, por vários anos, a revista de arte e cultura Verbo 21. Tem publicados outros quatro livros: Todo Sol Mais o Espírito Santo (2005), Supermercado da Solidão (2005), Corações Blues e Serpentinas (2007) e O Retrato ou Um Pouco de Henry James Não Faz Mal a Ninguém (2014).

Quando a descoberta do livro e da leitura?

Eu deveria ter entre cinco e seis anos. Fui alfabetizado em casa, por uma irmã um ano mais velha do que eu, a Cláudia. Embora ela também fosse criança, adorava brincar de escolinha e repassar o que aprendia em sala de aula. Nós não possuíamos livros em casa, muito menos livros para crianças. Era início dos anos 70 e pertencíamos a uma família pobre numa cidade-satélite de Brasília. Comecei lendo revistas em quadrinhos. A primeira que tive, eu achei perdida na rua. Era um Brasinha. Fiquei encantando com aquilo, o garoto diabinho que não era mau e vivia estranhas aventuras com seres mágicos e humanos. Lia e relia suas histórias inúmeras vezes. Em seguida, fui descobrindo também as revistas de heróis. Gostava muito de Tarzan, Zorro, do universo Marvel e DC. Aos poucos, fui me tornando um colecionador, só que o meu acervo era sempre pequeno. Tinha cerca de dez ou vinte revistas. Se eu quisesse continuar a atividade de leitura, tinha obrigatoriamente de trocar as revistas usadas com os amigos e conhecidos, pois eu nunca dispunha de grana para comprar novas, o que me fazia privilegiar títulos como os da Disney e do Maurício de Souza, que não eram seriados e traziam histórias fechadas. Já o interesse pelos livros surgiria alguns anos mais tarde. O primeiro que li foi Tonico, da série Vagalume, por obrigação na escola. Não o apreciei tanto. Talvez pelo seu realismo, sua preocupação social, a história me pareceu cansativa. Depois, vivi algo parecido com “Felicidade Clandestina”, da Clarice. O pai de um amigo, ao notar meu interesse pela coleção de Monteiro Lobato em sua estante, permitiu que eu escolhesse um volume emprestado. Disse que nenhum dos seus três filhos jamais demonstrara curiosidade em lê-los. Escolhi Os Doze Trabalhos de Hércules. O prazer que senti com a leitura foi tão intenso! Eu não queria que aquela sensação acabasse nunca. Passei a avançar as páginas devagar, adiando a cada dia o seu final. Quando o devolvi, meu coração era um misto de gratidão e tristeza, pois havia descoberto algo realmente maravilhoso, que era de difícil acesso para mim.

Como foi a experiência de escrever o romance As Margens do Paraíso, após ter publicado dois livros de contos e duas novelas? Uma consequência?

Não creio. Não há uma explicação lógica. Poderia ter acontecido de o meu primeiro livro ter sido um romance e somente no futuro surgisse vontade de trabalhar contos e novelas. Ou mesmo que eu passasse a vida inteira unicamente criando histórias curtas, parábolas ou poemas. Quando estou escrevendo, o gênero literário não é uma questão relevante para mim. Penso, sim, no fôlego que tenho para investigar um determinado tema, se tudo o que eu queria dizer naquela ocasião foi realmente dito, se a maneira de o dizer me foi inteiramente satisfatória.

Ambientar As Margens do Paraíso na década de 1950, pouco antes da inauguração de Brasília, se deu por que razão?

Diversas. Entre elas, o fato de ser um período na história do país pouco visitado pelos ficcionistas. Em minha percepção, havia uma lacuna. Ou falavam da juventude dourada dos anos 50, geralmente de forma lacônica, ou saltavam de vez para a bad trip pós-64, quando o chumbo grosso caiu sobre nós. Além disso, desejava examinar como a geração dos meus pais, que hoje ocupa uma parte significativa do poder, viveu seu momento de emancipação da personalidade, que era a passagem da adolescência para a vida adulta, como desenvolveram certo tipo de mentalidade, abrangendo aí seus aspectos morais, libertários e até mesmo conservadores. Para isso, fiz uso de todo potencial simbólico que o marco da inauguração de Brasília encerrava.

Brasília, sonho quase romântico das personagens de As Margens do Paraíso, não parece mais um pesadelo, quase seis décadas após virar capital do Brasil? Não terá agravado ainda mais a exclusão social de que padecemos há séculos?

O problema é que o sonho da cidade planejada é constantemente conspurcado pela efígie do poder. O pesadelo atual não se resume à Brasília, mas a todo o país. A capital federal não é a fonte de nossas mazelas. Ela tem vida própria e ultrapassa as linhas da Praça dos Três Poderes. Pensar nossa história certamente nos ajudará a compreender como chegamos a isso e quais erros não devemos repetir. É o que faço neste romance. Avalio nosso percurso. Há diversas camadas de leitura em As Margens do Paraíso. Eu espero que os leitores encontrem nele o que procuram, seja pelo viés político, filosófico, antropológico, social ou histórico, mas não se fechem para as surpresas que possam surgir, as descobertas inesperadas. E, principalmente, não se anestesiem emocionalmente, mas se permitam viver as vidas de Leda, Rubem e Zaqueu.

Ao construir a personagem Leda, o foco central era abordar as relações sociais servis, mascaradas pela generosidade, tão enraizadas em nosso país?

Bela pergunta. Leda é uma personagem complexa. Ela vive na casa dos padrinhos e nutre sentimentos ambíguos em relação à família que a acolhe. Na primeira parte do romance, temos exclusivamente o seu ponto de vista. Sendo ela a narradora, não sabemos o que pensam e sentem as demais personagens que a cercam. Não temos sequer certeza se os fatos ali narrados possuem a dimensão emocional e as cores que ela emprega. Isso é importante. Ao mesmo tempo, não há como se ignorar a tensão das relações, o espaço em que o poder opressor opera, os códigos adotados para suavizar os conflitos e permitir a sobrevivência daquele que é agregado e depende materialmente do seu “protetor”.

Em As Margens do Paraíso você parte de uma narração polifônica para uma narração onisciente. Alguma razão especial para isso?

Certamente. Após conduzir os leitores para a vida interior desses jovens protagonistas, tentando abarcar a construção de uma mentalidade geracional, decidi não privilegiar o olhar de nenhum dos três. Eu precisava de um novo narrador, alguém que já estivesse presente na primeira parte e pudesse dar o seu testemunho dos novos acontecimentos de maneira mais isenta. Ou, talvez, apenas aparentemente isenta, entende? Nós não temos nenhuma garantia se, dentro de As Margens do Paraíso, o que ele narra é verdade ou pura invencionice. Contudo, o narrador da segunda parte conquistou minha confiança desde o seu aparecimento. Pareceu-me coerente e natural essa mudança.

Em que as histórias de vida, aparentemente difusas, de Leda, Zaqueu e Rubem são coincidentes? Encarnarão eles a promessa de um Brasil que não se realizou?

Encarnam não só a promessa, o sonho, a paixão, a dúvida e a vontade, mas também a realização de tudo isso. A vida reinventada de que nos falava Cecília Meireles. Eles são as próprias margens do paraíso. São as linhas que o contém e dão a sua forma. Não estão à margem de nada. Estão dentro. São protagonistas responsáveis pelo próprio destino. Cada um fazendo o seu melhor e o seu pior. Eles são o Brasil do tempo presente e também do que está por vir.

As precárias condições de trabalho daqueles que ergueram a atual capital do país, muitas vezes negadas até mesmo pelos setores mais progressistas da sociedade brasileira, não serão um dos cernes de nossas mazelas sociais presentes?

Acredito que sim. Os danos da exploração cruel da força de trabalho,seja na construção de Brasília ou da ponte Rio-Niterói, na colheita de cacau no sul da Bahia ou na extração de minérios de solo no Espírito Santo, no passado mais longínquo ou no presente, nas áreas rurais ou urbanas, são irreparáveis e ferem a dignidade humana. Muitos candangos deram suas vidas para concretizar os planos de Niemeyer e Lúcio Costa. Alguns, ficaram inválidos. Julgavam-se heróis de uma causa que não compreendiam bem. Sentiam que contribuíam para preparação de um feito extraordinário na história da humanidade, algo a ser lembrado por centenas e centenas de anos e que valeria todos os seus sacrifícios. É para eles que escrevi essa história.

Ao ler As Margens do Paraíso fica a sensação de que o paraíso será sempre uma utopia. Foi isso mesmo que você pretendeu mostrar a seus leitores?

Os conceitos de paraíso e utopia se confundem. Todavia, é preciso lembrar que, segundo a tradição judaico-cristã, a perda da ingenuidade, o contato direto com o conhecimento, produz a queda do paraíso e leva o caído a buscar a retomada da felicidade perdida. Essa felicidade deve ser conquistada e não dada. Há um caminho a se percorrer e os percalços fazem parte da jornada. De igual modo, julgo que abdicar da busca, abandonar os ideais de transformação coletiva e satisfazer-se com o mundo tal como ele se encontra, são coisas extremamente tristes no plano de qualquer existência. Não me preocupei em escrever uma história pessimista ou otimista. Minhas personagens são fortes, a vida é complexa e não temos todas as respostas que desejamos.

Como vê a condição do escritor e do artista no atual cenário político do Brasil?

Tão precária quanto a de um operário nos tempos da construção de Brasília. Continua sendo muito útil ao poder institucionalizado, seja ele de direita ou de esquerda, a desvalorização da educação e das artes na vida das pessoas, a transformação sôfrega do indivíduo em um mero autômato consumista. Orwell continua vivo.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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