– Prometes-te que nunca me trarias para um sítio como este.
Sim, de facto prometeu. Mas entretanto as circunstâncias mudaram.
Uma panela com água, ao lume. Duas batatas, cortadas em cubos de mais ou menos dois centímetros cada. Uma cebola, cortada da mesma maneira, e dois dentes de alho, partilham o mesmo mergulho das batatas dentro da panela.
Não se vai falar de culinária. Esta que poderia ser, que era para ser, uma sopa, saudável, a avaliar pelos ingredientes, tornou-se num pedaço de carvão esturricado, porque o avô se esqueceu completamente que a panela estava ao lume.
Foi o fumo intenso, ao espalhar-se pela casa, disparando todos os alarmes, que chamou a atenção dos vizinhos, porque o avô, por causa do barulho, ficou completamente desorientado, perdido na sua própria sala de estar, no seu sofá, enfim, no seu mundo, que já não era o mesmo mundo onde nasceu, cresceu e viveu durante muitos anos.
– O almoço é ao meio-dia, o jantar às seis, as luzes apagam-se às dez.
Dizia a senhora que os havia recebido, andando num frenesim de um lado para o outro, apontando para as coisas à medida que as ia explicando.
– Aqui fica a casa-de-banho, ali o comando da televisão. Já lhe pus toalhas lavadas, aqui é o seu armário para pôr as suas coisinhas pessoais.
– Prometes-te que nunca me trarias para um sítio destes.
– Bem-vindo à casa de repouso de Santana-do-Monte.
– Avô, é para o seu bem.
Andamos todos tão ocupados com a vida, que exige de nós mais do que aquilo que podemos dar, que quando se despacha um ente querido para “um sítio como este” é sempre para o seu bem. Claro que é. Que outra alternativa se apresenta?
É a vida.
O neto sempre visitou o avô. Pelo menos três vezes por semana. Vinha para lhe fazer companhia, como também pôr a conversa em dia.
Nunca vinha à mesma hora. Fazia-o quando lhe era possível escapar dos afazeres do dia a dia. Como o trabalho, por exemplo.
As contas não se pagam sozinhas, e contas há todos os dias. Se se acaba de pagar a última prestação, algo avaria, algo precisa de conserto. Já para não falar das contas que nos acompanham até ao último suspiro, deste mundo cada vez mais devorador das nossas liberdades.
Um carro deixou há muito tempo de ser um luxo, é agora uma necessidade. O telemóvel, quem pode viver sem ele, quando toda a vida, todos os afazeres, podem lá estar metidos. A televisão. A televisão? Bem…as televisões. Os programas, os filmes, os documentários, tudo espalhado por diferentes serviços de streaming. Cada um deles tem um preço. O entretimento também se paga. Respirar no dia a dia, também se paga.
– Prometeste-me que nunca me trarias para um sítio destes.
Enquanto o avô olhava pela janela, perdido no vazio, mergulhado na sua imensa tristeza, confuso, sem saber muito bem como distinguir realidade ou fantasia, truques de uma mente que já foi brilhante, o neto procura dentro de si, palavras de conforto, que não consegue encontrar.
Apesar de tudo, este avô, é um homem com sorte.
Vão esquecê-lo na casa de repouso de Santana-do-Monte. A filha, a única filha que tem, já não fala com ele há anos. Sabe-se que há de continuar a sua vida sem falar, sem uma visita, um arrependimento.
Os amigos, uns na mesma situação, outros, ocupados de mais com as suas vidas.
Os vizinhos…
– Ouvi dizer que o neto pôs o velho num lar. Foi o que fez melhor. Ele já não andava bem da cabeça.
Sim, hão de esquecê-lo, enquanto entre momentos de solidão e alguma lucidez, ele os há de lembrar a todos com uma imensa tristeza, inimaginável dor.
Hão de esquecê-lo, mas o neto não. Nunca.
Lar nenhum, ou casa de repouso, ou seja lá o que lhe quiserem chamar, é sítio para se viver os últimos tempos da nossa vida. A não ser que a solidão seja mais penosa do que a necessidade de fugir dela.
– Aqui fica a casa-de-banho, ali o comando da televisão. Já lhe pus toalhas lavadas, aqui é o seu armário para pôr as suas coisinhas pessoais.
– Prometes-te que nunca me trarias para um sítio destes.
– Bem-vindo à casa de repouso de Santana-do-Monte.
É a vida.
Palavras do grande poeta Acácio, com a sua inteligência bruta, a puta é filha da vida, e a vida é filha da puta.
António Magalhães