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Há lobos na serra

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Nasci quieto e silencioso. Talvez por isso tenha afirmado a minha existência na procura das palavras certas para este desassossego de corpo e de espírito, tão pouco visível para os outros.

Na hora H quase quebrei, queria lá morrer! Eu queria era viver, de toda e qualquer maneira! Fiquei zangado, furibundo mesmo, por me interromperem o percurso assim tão antes da hora de fim de prazo. Um homem se não está preparado para se despedir deveria ter um tempo extra. Se podem prolongar tanta coisa, por que não prolongam o fim?

Nos últimos dias andava tão agitado que nenhuma posição me segurava quieto. A minha filha mais velha, afagava a minha mão e eu sentia o seu desconforto líquido, mas reprimido. Porque será que somos tão reprimidos? Numa tentativa de minimizar os meus males, chamava a enfermeira: Por favor, verifique de novo a posição do meu pai, ele não para de se queixar… E a voz da enfermeira a pausar-se na minha impaciência: Ai este senhor, este senhor! Ainda agora o mudei de posição, o que se passa, o que é que o senhor quer, diga lá.

Eu quero viver! Foi assim que informei a enfermeira do desejo maior da minha vida. 

Passei por muitos momentos, uns agradáveis e outros dolorosos, mas sempre saí deles mais ou menos chamuscado. Agora não saio chamuscado saio cremado! Sim, é mesmo isso, pedi para ser cremado quando morresse. Claro está que fiz este pedido quando ainda estava bem vivinho da silva. Agora que estou quase moribundo, já não preciso de fazê-lo e nem teria coragem de abordar o assunto. Só quero viver e isso não me dá espaço para pensar em cremar estes pensamentos juntamente com os ossos rendilhados e as células anárquicas que em mim se reproduzem sem controlo. 

Paula Sá Carvalho

in TEMPO EXTRA, Poética edições

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