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Graça Roriz Fonteles: a poesia, a mística e o lirismo femininos

Nascida em Fortaleza, Graça Roriz Fonteles ainda jovem concluiu o curso de Odontologia pela Universidade Federal do Ceará, onde, após alguns anos de profissão, recebeu o título de mestre em Farmacologia. Anos mais tarde, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, fez mestrado em Ciências da Religião e doutorado em Letras.

É autora da coletânea de poemas Garimpo de Sonhos, do estudo crítico Cecília Meireles Lirismo e Religiosidade, do volume de memórias No Colo de Minha Mãe e do ensaio O Sagrado no Olhar Feminino, no qual desenvolve extensa pesquisa sobre o feminino e o sagrado, além de coautora de mais de uma dezena de antologias. Atualmente, está com um livro de poesia no prelo, Lirismo do Silêncio, e trabalha na finalização de seu primeiro romance, com fatos históricos sobre a Segunda Guerra Mundial, assim como a história de amor de uma judia, que após muitos revezes da vida, faz a Aliyah, tão logo o Estado de Israel é criado.

Como surgiu o interesse em examinar a obra de Cecília Meireles estabelecendo sua intertextualidade com os Salmos Bíblicos, tema de seu livro Cecília Meireles Lirismo e Religiosidade?

Por eu ser poetisa, havia pretensão de ligar minha tese doutoral à poesia e Cecília estava sendo cogitada. O passo final adveio de um diálogo com minha orientadora, Lilian Lopondo. A obra de Cecília fez parte dessa decisão e chegamos a um consenso. O livro Poema dos Poemas, que eu desconhecia, chegou às minhas mãos, daí o desejo de desvendar os caminhos do eu lírico que me encantaram. Ao ler os poemas, logo me chamou atenção a linguagem sálmica e a intertextualidade com os Salmos foi consequência dessa observação.

Alguns anos após publicá-lo, tudo leva a crer que Cecília Meireles renegou seu Poema dos Poemas. O que a teria levado a isso?

Nem toda obra de juventude permanece como uma obra exemplar para os autores, a menos que seja premiada. Cogita-se que o vínculo com o Simbolismo, ao qual Cecília se distanciou nas suas obras da maturidade, seja a possível razão da exclusão de Poema dos Poemas pela própria autora. Entretanto, após a morte de Cecília, em 1964, Darcy Damasceno, estudioso ceciliano, ao compilar suas obras, incluiu o livro em questão. E como diz a professora Ana Maria Domingues de Oliveira, “muito provavelmente à revelia da vontade da autora”.

Sua produção poética, reunida em Garimpo de Sonhos é alicerçada num sólido lirismo feminino, com fundo místico. Poderia nos falar sobre ela?

Sou uma poetisa de alma eminentemente lírica. Creio que minhas raízes portuguesas, da Ilha de São Miguel, nos Açores, exerça uma força sobre meu lirismo. Desde tenra idade era embalada por modinhas de amores sofridos e poesias líricas cantadas e declamadas por minha mãe. Esse clima lírico-amoroso, somado à religião e às muitas leituras, inclusive da vida de Santa Tereza de Ávila e de outras santas mulheres, serviram como propulsor do somatório da aurora de um lirismo e de uma mística que emergiu em Garimpo de Sonhos.

No Colo de Minha Mãe evidencia uma vez mais a força da mulher em sua obra. O que dizer do papel da mulher na sociedade contemporânea, das conquistas que obteve e das que ainda estão por vir?

Creio que o mestrado em Ciências da Religião, tendo como foco o feminino e o sagrado, me capacitou a desenvolver sobre o tema com mais leveza e profundidade. No Colo de Minha mãe torno-me mais transparente, até porque as experiências vivenciadas se fizeram sempre na presença de uma forte e determinada mulher como minha mãe. Seu lema é de nunca desvanecer ante as adversidades. Ela, que em seu século de existência, assistiu a grandes mudanças sociais, como a conquista do voto feminino, que considero um grande avanço da modernidade. Minha mãe sempre foi uma guerreira contumaz da valoração da mulher e tendo sido agraciada com uma vida longa por cento e quatro anos, foi uma exímia professora de lições de vida. Sob a ótica do feminino, a sociedade contemporânea vivencia a passos largos grandes mudanças sociais às quais evidenciam a pujança do papel da mulher na sociedade, muito embora a degradação da sociedade espelhe a imagem da carência feminina no lar.

Historicamente, as religiões de diversos matizes têm colocado a mulher numa condição subalterna, justificando, em muitos casos, cruéis opressões, como em diversos países islâmicos. Ou seja, ao invés de valorizar a mulher, o discurso e a prática religiosos contribuem para inferiorizá-la. Como vê tal situação?

Adentrar no universo do feminino para tentar desvendar a historicidade das religiões em relação à mulher é navegar em águas tumultuosas. No inconsciente coletivo habitam dois seres perfeitos e distintos, Eva e Maria. Duas mulheres, duas imagens. A primeira, indutora do pecado e a segunda, a Virgem puríssima. Essa dualidade que permeia tudo, no universo feminino foi imbricada de muito mais adereços, tantos quanto o imaginário comportava. Paulatinamente, a sociedade foi absorvendo os matizes que o papel da mulher ia delineando ao longo de sua trajetória. A procura pela união dessas imagens ainda persiste. Jesus, o grande rabino da Galiléia, o filho do Deus altíssimo, operou a maior mudança social de todos os tempos. Questionou o papel da mulher, pois quebrou as regras do judaísmo. Falou com a prostituta e valorizou-a, tanto ao lhe dirigir a palavra, quanto ao pedir-lhe água. Ao lidar com as irmãs Marta e Maria, enfatizou que Maria fez a melhor escolha, ao ficar aos seus pés ouvindo-lhe os ensinamentos, enquanto Marta andava ocupada com os afazeres domésticos. A nossa sociedade poderia muito bem aplicar os ensinamentos do mestre e reverenciá-lo em suas atitudes, porém, o eclipse de Deus na sociedade ocidental implica comportamentos dissonantes com o evangelho de Jesus Cristo. O cenário se descortina evidenciando a responsabilidade de nossas ações totalmente imbuídas de racionalidade, mas, ainda assim, haverá uma permuta pelo espiritual. Poderíamos considerar como sendo um processo de (re)humanização da criatura e, como diz Galimberti, “no tempo cíclico não há futuro que não seja a pura e simples retomada do passado que o presente renova”.

O que a levou a escrever O Sagrado no Olhar Feminino, seu livro mais recente?

Para se adentrar no universo feminino e sagrado, passa-se pelo profano. À mulher era-lhe negado ter alma e o encontro com o sagrado, através do misticismo, se configurava como a única maneira de sua afirmação como criatura divina. A mulher, carregando consigo tantos fardos e alijada dos processos sociais, encontrou dentro dos mosteiros a acolhida que sua alma procurava. O misticismo adveio desse encontro com o sagrado e do acolhimento que lhe fora negado pela sociedade vigente. A contemporaneidade continua maculada pela inferiorização do feminino. A mulher busca o acolhimento do outro e o encontra no sagrado. O olhar de Deus sobre a mulher é infinitamente misericordioso, assim provou a Maria Madalena, ameaçada de apedrejamento. E como diz o místico Nicolau de Cusa: “Senhor o teu ver é amar e assim como o teu olhar me contempla tão atentamente que jamais se desvia de mim, assim também o teu amor”. Carecemos um do outro para nos esculpir e demonstrar aprovação de todos os nossos atos. O problema permanece em aberto como indutor de reflexões e almeja-se atingir um ponto de confluência, despontando como nascedouro de valores eternos.

A poesia ainda tem espaço em nosso mundo pautado pelo discurso tecnocientífico? Como trazer o leitor de hoje para seu universo?

A poesia é um bálsamo. Deus é o maior poeta, somos feitura dele, por isso somos poetas. Fora dos muros do paraíso, entre o céu e a terra, é o lugar onde a poesia existe. O filósofo Abraham J. Heschel escreveu que “poucos são capazes de se elevar em raros momentos sobre o próprio nível da terra. Mas é nesse momento que descobrimos que a essência da existência humana consiste em estar suspenso entre o céu e a terra”. O poeta Rabindranath Tagore, considera que “a música sente o infinito no ar; a pintura o sente na terra. A poesia o sente na terra e no ar, porque sua palavra tem o sentido que caminha e a melodia que voa”. E complemento o filósofo e o poeta com o dizer de Gabriela Mistral, para quem “A beleza é a sombra de Deus sobre o universo”. O leitor de hoje tem dentro da alma o mesmo sentimento de incompletude que muitas vezes nos assalta e nos conduz a estágios capazes de trazer deleite com a poesia. Esse sentimento, mesmo em tempos adversos de tecnologia, precisa de uma válvula de escape. A poesia funciona assim. Lê-se dor e se escreve amor. Vive-se dor e se escreve amor. O amor é a essência da qual ela é confeccionada. Tudo se resume no amor. A poesia tem o poder de nos incomodar, até atingirmos o nível de mitigar nossas dores e adentrarmos o sonhar.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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