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Fiéis servidores de Deus

(inspirado num post colocado no Facebook pelo Mário Adão)

Nem todos os que dizem, Senhor! Senhor! Entrarão no Reino dos Céus…

O padre Vitorino Caramelo levantou a mão direita e de palma virada para fora com os dedos em riste, abençoou os seus fiéis com um “em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo”, e antes de proferir as palavras que habitualmente indicavam o fim da celebração da missa, fez um anúncio.

“O próximo domingo vai ser um domingo especial. Farei talvez a homilia mais importante das vossas vidas, vós que todos os domingos, na casa de Deus, procurais por salvação divina.”

E terminado o anúncio finalmente proferiu as palavras que indicavam o fim da celebração eucarística.

“Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe.”

Seguiu-se um último louvor ao Senhor, cantado pelo coro permanente da igreja, a que se juntaram as vozes do padre Vitorino Caramelo, os seus colaboradores e praticamente todos os paroquianos que assistiram à celebração.

No início da última quadra do louvor, sempre sem parar de cantar, o senhor padre desceu do altar e com a batina quase a arrastar pelo chão limpo e bem encerado, os braços descaídos e mãos entrelaçadas, num gesto de devoção, e humildade acima de tudo, atravessou a igreja, sempre acompanhado pelo rapaz e pela rapariga que o ajudaram à missa, bem como o sacristão, e saiu pela porta dos fundos onde cumprimentaria os seus fieis, num aperto de mão, quando estes saíssem da igreja.

Assim que o louvor terminou, ordeiramente todos os paroquianos prestaram uma última vénia, que na maioria dos casos foi apenas um dobrar ligeiro do joelho direito, quase como que disfarçadamente, um murmúrio de lábios acompanhado de um benzer rápido, “em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo”, ao passarem em frente ao altar e antes de lhe virarem as costas, para saírem da igreja.

Cá fora, já depois dos cumprimentos do padre Vitorino Caramelo, de este ter desejado a todos um bom e santo domingo, as pessoas foram dispersando em direção às suas casas, satisfeitas e com a sensação de quem cumpriu um dever perante a vontade de Deus e dos seus desígnios. Mas ao mesmo tempo conjeturando acerca do anúncio do padre.

No adro da igreja apenas ficaram algumas pessoas, pequenos grupos aqui e ali, conversando entre si, cheios de formalidades, de sorrisos domingueiros, atitudes serenas de bom comportamento, dignas de quem acabou de ouvir a palavra do Senhor. Depois, sempre muito cordiais entre si, despediram-se com suaves, mas firmes apertos de mão, abraços de uma fineza quase estudada, e desapareceram nos carros que, uma vez dentro deles, lhes faziam sobressair uma grandeza…, até apetece dizer, que transcendia orgulho. Deles, no adro da igreja ficou apenas uma nuance de perfume que por algum tempo testemunhou as suas presenças. Pessoas de bem.

O padre Vitorino Caramelo não teve uma semana nada fácil. Tinha prometido aos seus paroquianos uma homilia especial para a missa de domingo, mas todos os sermões que escreveu nessa semana com o intuito de tocar fundo no coração de todos aqueles que se intitulavam a si mesmos, fiéis servidores de Deus e da sua vontade, não lhe pareciam suficientemente profundos e por isso acabava sempre por amarrotar a folha onde começava por inúmeras vezes o discurso e deitava-a no cesto dos papeis onde essas folhas transformadas em bolas mal amanhadas se iam amontoando.

Chegou o sábado à noite e, sendo a véspera da missa da qual havia prometido a homilia que podia transformar a vida de muitos dos fieis do Senhor, continuava a não ter um sermão que lhe parecesse suficientemente forte para tocar no coração das pessoas ao ponto de as fazer refletir verdadeiramente naquilo que são os desígnios de Deus.

Cansado, ansioso, de certa maneira zangado consigo mesmo, o padre saiu de casa e meteu-se na igreja ajoelhando-se em frente do altar, e com fervura de servo de Deus, bom servo, rezou com o coração aberto e limpo. Só lhe restava uma ajuda divina.

Acabada a oração, o padre saiu da igreja sem ter a mínima ideia de um discurso que lhe parecesse suficientemente bom. Enquanto caminhava absorto nos seus pensamentos acabou por dar de si no jardim público da cidade. Era o inicio da noite e havia escurecido já. Quando decidiu parar por um bocado, sentando-se num dos bancos do jardim, reparou que um velho, de cabeça baixa, perdido num olhar que parecia alongar-se pelo chão à sua frente, sujo, malvestido e doente, caminhava pelo parque, arrastando os pés com uma dificuldade que se notava na vagareza com que caminhava. O padre levantou-se e foi ter com ele. Pegou-lhe com suavidade num braço e com mil cuidados levou-o até ao banco do jardim ajudando-o a sentar-se. O velho estava habituado a que lhe agarrassem pelo braço, mas nunca com bons modos, muito menos para que o ajudassem a sentar, mesmo quando a maior parte das vezes estivesse exausto das suas caminhadas sem rumo nem sentido, pela vida. Quando lhe agarravam no braço era para o pôrem a andar porque incomodava, porque não podia estar assim malvestido, sujo e roto, junto das outras pessoas. Por isso ficou admirado, mas acima de tudo comovido, com o gesto do padre. Por sua vez, o padre esqueceu a sua homilia para o dia seguinte e sentou-se ao lado do velho a conversar com ele. A saber o porquê de ele viver nas ruas, enfim, a ouvi-lo e a ouvir os seus desabafos. O velho estava encantado. Nunca ninguém parou com ele, nunca ninguém se sentou ao seu lado, nunca ninguém quis saber acerca de si e dos seus problemas, infortúnios, e mais do que isso, nunca ninguém o quis ouvir.

Quando o padre se levantou, levou consigo o velho e chegado a casa arranjou-lhe uma refeição, um banho quente, ofereceu-lhe um dos seus pijamas, e preparou-lhe uma cama de lavado. Nas costas da cadeira pôs-lhe roupas suas, limpas e bem engomadas, pois o velho tinha mais o menos a sua estatura. Junto com as roupas deixou um papel bem visível que dizia, “missa às 10.30 da manhã.” Agarrou nas roupas velhas sujas e rotas, do velho, e arrumou-as na arrecadação. Deixou que o velho adormecesse e voltou a sair de casa. Foi ao teatro.

No domingo de manhã, quando o velho acordou refeito e com boa disposição pois dormira uma noite descansada, olhou a cadeira e viu as roupas que o padre lhe havia deixado, juntamente com o bilhete. Vestiu-se, dobrou o papel e arrumou-o numa das gavetas da mesinha de cabeceira. Procurou o senhor padre pela casa, mas não o viu. No entanto, na mesa da cozinha haviam pãezinhos frescos, leite, café, manteiga fiambre queijo e frutas. Com os olhos cheios de lágrimas o velho sentou-se para tomar um pequeno almoço como não tomava há muitos anos.

Lavado, barbeado, roupas limpas e decentes, a cheirar a fresco, o velho entrou na igreja de coração enternecido e grato ao mesmo tempo, procurando de olhos ávidos pelo padre, para lhe agradecer tamanha generosidade. De sorriso meigo e amigável foi cumprimentando as pessoas que já estavam dentro da igreja à espera que a cerimónia começasse e para sua agradável surpresa todos lhe responderam ao cumprimento de forma simpática e cordial. A transformação que o padre lhe proporcionara ao seu aspeto tinha funcionado e de que maneira, e ele estava-lhe grato por isso, do fundo do seu coração. Sentia-se tão bem e tão fresco, quase rejuvenescido, que até parte das suas mazelas pareciam ter desaparecido quase por milagre. Talvez o milagre de uma cama lavada, uma noite descansada, um pequeno almoço fortificante.

À medida que o relógio ia avançando para as 10:30 a igreja ia ficando cheia.

No ar, uma atmosfera morna e agradável ao mesmo tempo, misturada por uma espécie de burburinho de vozes que cochichavam entre si, curiosas de saber de que falaria o padre na sua prometida homilia. Mas do padre Vitorino Caramelo, nem sinal. Ninguém sabia dele. Os ajudantes à missa foram preparando tudo da mesma maneira, acreditando que o padre chegaria a qualquer momento. As beatas do costume haviam organizado a igreja com o primor de sempre. Flores frescas, que libertavam um perfume primaveril por toda a igreja, o chão bem limpo e encerado, velas acesas, e até o organista deixava deslizar os dedos pelas teclas do órgão enchendo a igreja de um júbilo de alegria e acima de tudo celebração.

Na casa do Senhor todos se haviam aprimorado para que fossem dignos de se apresentarem à sua presença. Alguns esmeraram-se, aliás como lhes era habitual, num requinte quase intimidador, especialmente para aqueles que menos afortunados não lhes podiam fazer pé.

Por isso, foi com algum espanto e muito desdém que viram entrar na igreja um velho malvestido, barba pardacenta, cabelo sujo e grande, despenteado, com alguns sacos na mão, agarrado a um pau que lhe servia de bengala, caminhando devagar e com dificuldade. Velho simpático, no entanto, sorrindo para as pessoas com cordialidade, pessoas essas que desviavam a cara absolutamente embaraçadas. Alguns, como que apanhados numa flagrante surpresa ainda esboçavam uma espécie de sorriso amarelado, para desviarem o olhar o mais rápido que o embaraço lhes permitia, e outros nem sequer esboçavam qualquer sentimento, a não ser o do desprezo, talvez algum espanto também, pela ousadia do velho sujo que entrava ali para destoar num ambiente tão digno do Senhor.

Ao passar em frente ao altar, com dificuldade o velho ajoelhou-se e benzeu-se em sinal de respeito. O velho que tinha sido ajudado pelo padre na noite anterior, levantou-se do seu lugar, com bons modos e com cuidados, chegou-se perto do velho sujo, pegou-lhe num braço para delicadamente o ajudar a levantar os joelhos do chão e ficar em pé, e com uma mão pegou-lhe nos sacos e com a outra amparou-o até o sentar ao seu lado, num dos bancos da frente, da igreja.

Cada vez mais as pessoas estavam indignadas. Algumas até abanavam a cabeça em sinal de reprovação pelo facto do outro velhote o ter sentado num dos bancos da frente. As pessoas que estavam nesse banco, disfarçadamente foram-se afastando aos poucos até terem um espaço suficientemente grande entre elas e o velho sujo. Não o enfrentavam. Olhavam para ele de lado, como se a sua pobreza, os seus infortúnios, fossem eles quais fossem, lhes metesse medo e ao mesmo tempo uma certa repugnância.

Uma das beatas da igreja, tira flor põe flor, padre nosso e ave Maria, muitos sinais da cruz e muito murmurar de lábios, essas coisas que as pessoas fazem em ordem de merecer o perdão divino, e um lugar no paraíso, muito delicadamente chegou-se perto do velho e quase lhe murmurando ao ouvido disse-lhe.

“Olhe, oh senhor, o senhor não se pode sentar aqui. Vai ter de ir lá para o fundo da igreja. É que aqui, sabe, estes lugares já estão tomados”

O velho que o padre tinha ajudado ficou indignado.

“Homessa, então não somos todos filhos de Deus?”

O velho sujo,

“Mas eu só queria assistir à missinha. Não estou a fazer mal a ninguém.”

A beata, com uma compreensão de santa, e uma delicadeza de invejar Madre Teresa, sem levantar a voz, sempre num sussurro que não espalhasse escândalo desnecessário,

“É claro que pode assistir à missa, mas não aqui à frente. Venha comigo, eu ajudo-o.”

E agarrou-lhe por um braço, sem brusquidão, mas com uma firmeza que até podia levantar o banco do chão, e com a paciência que só uma pessoa de muitas aves Marias e muitos padres nossos é capaz, levou o velho até ao fundo da igreja.

Ao atravessarem a igreja desde o cimo até ao fundo, a beata ia olhando as pessoas e encolhia os ombros num gesto enfadonho, um gesto de quem, na falta de melhor, arranjou a solução possível. As pessoas por sua vez, na sua maioria, correspondiam aquele olhar e aquele encolher de ombros, com outro olhar do mesmo género e outro encolher de ombros similar.

O velho ficou no fundo da igreja, encostado às paredes brancas e altas, tão altas que ali abandonado quase parecia um objeto de uma má decoração numa parede vazia. O outro velho ficou no seu lugar, inquietamente a dividir o olhar entre o fundo da igreja e a porta da sacristia como quem grita em desespero por socorro, avidamente procurando pelo padre.

Finalmente chegaram as 10:30. Era a hora de começar a missa.

O sacristão chegou-se ao microfone do altar e anunciou a vinda do padre Vitorino Caramelo. As pessoas fixaram o olhar na porta da sacristia, mas a porta não se abria, nem um movimento sequer se adivinhava dali.

As pessoas começaram a estranhar a demora do padre, deixando-se transparecer numa espécie de murmúrio entre si.

O velho sujo e mal vestido, saiu vagarosamente da parede onde estava encostado e começou a caminhar pelo corredor da igreja dirigindo-se ao altar.

As pessoas estavam tão curiosas com a demora do padre, que não era nada habitual, que de olhos sempre fixos na porta da sacristia, quase ignoravam o velho que continuava a caminhar em direção ao altar.

Quando ficou de frente ao altar, o velho ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e ficou ali por uns escassos segundos. Desta vez não teve dificuldade nenhuma em se ajoelhar muito menos em se voltar a por de pé. Subiu ao altar e ficou de frente para todos. As pessoas estavam estupefactas, quase sem reação. Sem saberem o que fazer, muito menos o que pensar.

O velho passou a mão pela cabeça e com ela trouxe a cabeleira postiça. Depois puxou a barba pardacenta e num toque de magia ficou de barba desfeita. Tirou o casaco sujo e roto, as calças e por debaixo dessas roupas tinha a batina de padre. O padre Vitorino Caramelo aparecia aos seus fieis e aos “fieis de Deus”.

Ouve um “ah” quase em uníssono que se seguiu de um silêncio profundo.

Por alguns segundos o padre ficou ali a olhar a sua pequena multidão, sem proferir uma palavra, apenas de olhar triste e magoado, como que a refletir no que ali tinha acontecido. Depois, finalmente quebrou o silêncio e disse,

“Nem todos os que dizem, Senhor! Senhor! Entrarão no Reino dos Céus. Deus está muito triste convosco. Que fazeis quando vindes à casa do Senhor? Vindes para ouvir a sua palavra e para a praticar, ou vindes para vos mostrares nas vossas vaidades? Julgais-vos fiéis servidores de Deus quando vos adornais com exteriores atos de devoção e, ao mesmo tempo sacrificais ao orgulho, ao egoísmo, à cupidez e a todas as vossas paixões? Sereis discípulos do Senhor porque passais os dias em oração e não mostrais nem melhoras, nem caridade, nem benevolência para com os vossos semelhantes? Vindes para procurar um lugar na sociedade que vos dê posição, ou vindes para vos purificar do coração e para seres mais dignos dos desígnios de Deus, a quem tão hipocritamente orais. Achais que ele não sabe quais são as vossas verdadeiras intenções? Não foi Jesus que vos disse que o que fizerdes aos pobres estais a fazer-Lhe a Ele? De que vos serve vir à missa todos os domingos se virais a cara a um pobre, se desprezais um doente, se vos afastais de um mendigo. As vossas vaidades, as vossas riquezas de nada servem se o vosso coração é duro e despreza quem precisa. Ide para casa, refleti no que aqui se passou hoje, e se o vosso coração se der conta do que realmente importa aos olhos de Deus voltai no próximo domingo. A casa de Deus é a vossa casa.” Respeitai-a.

As pessoas ficaram atónitas com o que ouviram e viram, mas quando começaram a refletir no que o padre tinha dito, nas atitudes que tiveram, um sentimento de arrependimento e vergonha ao mesmo tempo, apoderou-se delas. Algumas saíram cabisbaixas, outras de lágrimas nos olhos, outras chateadas. Essas não perceberam a mensagem que Deus lhes enviara, mas as outras, as que reconheceram as suas falhas, saíram dali, envergonhadas, arrependidas, mas ao mesmo tempo com a sensação de que aprenderam a lição, e acima de tudo, entenderam a mensagem que Deus, através do padre, lhes enviou.

O velho que o padre tinha ajudado estava sem palavras. As lágrimas corriam-lhe nas faces e uma ternura no olhar era um sinal de esperança de que afinal, no mundo, ainda existem pessoas de bem. Um sinal de que, por muito cruel e muito controverso seja o mundo, e as pessoas que habitam esse mundo, a esperança será sempre o motivo de nunca desistir. De acreditar. De ouvir Deus que dentro de nós nos fala e às vezes o ignoramos.

A igreja ficou vazia, só o velho e o padre. O padre desceu do altar, estendeu a mão ao velho e perguntou-lhe,

“Como se sente?”

“Bem senhor padre, muito bem, graças a Deus, e a si também.

“Ótimo, – disse o padre- deduzo então que tem forças suficientes para ir comigo devolver esta caracterização ao teatro. Depois vamos para casa. Na casa de Deus há sempre lugar para mais um.”

 

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