De que está à procura ?

Colunistas

Ensaio sobre o coronavírus

A lembrança tinha saído da cabeça do próprio ministro. Era, por qualquer lado que se examinasse, uma ideia feliz, senão perfeita, tanto no que se referia aos aspetos meramente sanitários do caso como às suas implicações sociais e aos seus derivados políticos. Enquanto não se apurassem as causas, ou, para empregar uma linguagem adequada, a etologia do mal-branco, como, graças à imaginação de um assessor imaginativo, a mal sonante cegueira passaria a ser designada, enquanto para ele não fosse encontrado o tratamento e a cura, e quiçá uma vacina que prevenisse o aparecimento de casos futuros, todas as pessoas que cegaram, e também as que com elas tivessem estado em contacto físico ou em proximidade direta, seriam recolhidas e isoladas, de modo a evitarem-se ulteriores contágios, os quais a verificarem-se, se multiplicariam mais ou menos segundo o que matematicamente é costume denominar-se progressão por quociente.

José Saramago – Ensaio Sobre a Cegueira – página 57

 

Não foi por acaso que José Saramago recebeu, em 1998, o prémio Nobel da literatura, muito embora, para meu grande espanto, algumas bocas da constante discórdia, poucas apesar de tudo há que o admitir, viessem dizer que a academia só atribuíra o prémio ao grande Mestre, para cumprir calendário, pois nesse ano, por motivos que nem merecem a pena serem uma vez mais descritos por soarem a uma espessa, forte e infundada teoria de conspiração, nesse ano não tinha a quem mais atribuir o prestigiado prémio. Como se, no planeta a quem chamamos terra não houvesse excelentes candidatos ao prémio, alguns deles inclusive em Portugal.

Mas, livros como O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, O Homem Duplicado, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Memorial do Convento, Ensaio sobre a Lucidez, e o mais apropriado à situação que o mundo vive no momento, a pandemia provocada pelo chamado Covid-19, Ensaio Sobre a Cegueira, são obras que revelam um profundo e inteligente conhecimento que o autor tinha daquilo que é a condição humana, na sua maneira de reagir e agir nas mais diversas situações para as quais, em comunidade ou individualmente é constantemente posta à prova.

O Mestre sabia como ninguém, na sua infindável inteligência, astuta, criativa, imaginativa, por vezes sarcástica e afiada imaginação, descrever aquilo que nos define como humanos nos nossos comportamentos e ações.

Quando a cegueira, branca, como um mar de leite, se foi propagando de pessoa para pessoa sobre a forma de contágio, rapidamente se instalou o caos entre a população, e até mesmo o governo, que, malgrado a designação, não é senão um tentáculo dessa mesma população, com poderes dominadores e por vezes subjugadores sobre a mesma, mas que em termos de epidemia, não está imune ao contágio, e nisso, nos tempos que correm temos que admitir que por parte do agente contaminador demonstra uma das duas considerações. A primeira, que, ou é muito estúpido e não sabe fazer distinções, sobretudo as que ao poder dizem respeito, ou se regra por princípios inabaláveis de igualdade e sem qualquer tipo de discriminações e vai como que desenfreado a saltar de pessoa para pessoa contaminando o maior número que lhe é possível. Não importa o tipo de epidemia, ou pandemia que ameaça a população, se branca, como que um mar de leite que nos entrasse olhos adentro, se, da mesma invisível maneira se instala nos canais respiratórios para a partir daí começar a fazer os estragos a que se propôs fazer desde o princípio.

Em o Ensaio Sobre a Cegueira, à medida que a epidemia se propaga depressa o caos se instala entre afetados e não afetados e muito depressa também, começam a surgir e a serem expostos os instintos mais animalescos do ser humano, vindo ao de cima características como a ganância, crueldade, maldade, pânico, vergonha, dominação, subjugação etc. mas também carinho, compaixão, coragem, persistência, e acima de tudo esperança, estes sentimentos tão bem representados na personagem da mulher do médico no romance de José Saramago.

Não é só porque eu sou um apaixonado pela escrita do grande Mestre, mas porque como ninguém ele sabia pôr em palavras tão reais aquilo que somos como raça-humana.

Na corrente pandemia que está a assolar o mundo, temos muito a aprender com o romance que o Mestre nos escreveu, sobretudo na personagem da mulher do médico, onde, apesar do caos instalado reside a única réstia de esperança.

No fundo, o que José Saramago nos quis mostrar, é que apesar das nossas vicissitudes e incongruências, apenas sobreviveremos como espécie, se trabalharmos em grupo, num todo, onde todos somos um e um somos todos.

Não será com toda a certeza nada diferente nesta crise do coronavírus.

Nas palavras do grande poeta Luís de Camões, mudam-se os tempos mudam-se as vontades, e nessa perspetiva não nos será apropriado dizer que é tempo de darmos as mãos, mas, aparte do que o gesto em termos físicos representa na corrente situação que assola o mundo, o conceito que ele representa mantem-se o mesmo, é tempo de nos unirmos e de pensarmos que (tenha calma, disse o médico, numa epidemia não há culpados, todos são vítimas. – Ensaio Sobre a Cegueira, página 69) das nossas ações pode depender a vida de milhares, se não milhões de pessoas, muitas delas em situações vulneráveis.

Chegou o momento de agir com responsabilidade.

Chegou o momento em que deixo de ser eu, para passarmos a ser… ”Nós”

António Magalhães

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA