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Daniel Lobo: o teatro e as sincronicidades

Em maio de 2012, o ator, diretor e dramaturgo carioca Daniel Lobo, por ocasião da temporada da peça teatral Nise da Silveira Senhora das Imagens, na capital paulista, nos ofereceu lúcido depoimento sobre suas sensíveis concepções de arte e seu envolvimento com aquela que foi a maior psiquiatra brasileira de todos os tempos.

A 24 de março de 2016, faleceu, prematuramente, aos 43 anos, na cidade de Florianópolis, Santa Catarina.

Seu primeiro trabalho em televisão foi viver o personagem Pedrinho, no Sítio do Picapau Amarelo. Como foi esse início? Por essa época, já existia a consciência de que seria ator quando adulto?

Sim. Desde pequeno sempre tive a consciência de que essa era a minha vocação. Tinha mesmo muita convicção de que seria ator. Ou palhaço! Chorava para minha mãe, pois queria ter um circo. E quando ia aos circos, quanto mais humildes fossem, mais eu me identificava com a energia que pairava no ar. Um misto de ingenuidade e pureza, não sei explicar. Claro que ser Pedrinho foi algo mágico. Mas antes do Pedrinho, eu já tinha feito teatro. O teatro sempre foi minha paixão.

Atualmente, o ator deu lugar ao autor e diretor. O que o levou à mudança de posição? Quais os maiores desafios para o dramaturgo e diretor?

Dirigir era um desejo antigo, algo que me acompanhava há duas décadas. Tive duas experiências antes de Nise. Um espetáculo dedicado ao público infanto-juvenil, Coisas do Gato da Velha, de Bethe Araújo. Era quase uma metáfora do teatro feita para crianças. E a versão teatral do cd O Amante do Girassol, que realizei em parceria com João Carlos Assis Brasil, um dos maiores pianistas que temos em atividade. Assinei a concepção original da montagem de O Amante do Girassol e chamei o Xarlô para a direção e cenografia, promovendo um diálogo que foi enriquecedor. A encenação foi inspirada no cd homônimo que fiz com poemas e canções de minha autoria, interpretados por diversas personalidades como Zilda Arns, Monja Coen, Amyr Klink, Reynaldo Gianecchini, Mariana Ximenes, Eva Wilma, Paulo Goulart, Diogo Vilela, Chico Anysio, José Mayer, enfim, algo bem eclético e extremamente autoral. A trilha original do cd é de uma renomada orquestra de Santa Catarina, a Camerata Florianópolis, sob a regência do maestro Jeferson Della Rocca. E a direção musical do Mayrton Bahia. Acredito que o processo de concepção de O Amante do Girassol foi uma preparação para a direção de agora em Nise. Existem vários desafios. No meu caso, que assino também a dramaturgia, com a importante colaboração da atriz Mariana Terra, um dos desafios é: será que o que imaginamos no papel terá sentido cênico, vida própria? E é realmente um alívio ver plena e viva esta matemática humana acontecer, ou seja, perceber a plateia reagindo quase que nos mesmos momentos, com a mesma intensidade, e nas texturas que foram projetadas originalmente. Trabalho muito com a intuição (ou inconsciente?). Não tenho profunda formação acadêmica. Ou melhor, nenhuma. Minha formação foi a vida quem deu e a prática de meu ofício. Acho que a função do diretor é observar. E sentir que material humano está ali, à disposição. Transformar sempre. Saber mudar de rota sem perder a concepção que originou aquela partitura cênica, que só se completará no encontro com a plateia. Importante também experimentar o desapego. Saber dizer não às suas próprias ideias. Mas ser firme e acreditar com fé nas escolhas que forem feitas ao longo do processo de criação, que, é importante salientar, jamais finda. Um espetáculo jamais estará pronto. Como a vida, sempre será uma partitura aberta. Para um ator/diretor outro desafio é saber olhar o intérprete com pureza, sem vícios, sem tentar adaptá-lo ao estilo ou performance que você faria. Erro que todos os diretores/atores cometem. Eu também, claro. Mas o importante é isso. Estar aberto e atento a tudo. E humildade para aceitar e reconhecer o erro e escolher novos caminhos. Eterno lapidar.

Como surgiu a ideia de escrever a peça Nise da Silveira Senhora das Imagens?

Em meados de 2008, li uma reportagem que dizia da importância da doutora Nise e que completaríamos uma década de sua partida. Já conhecia sua obra, assim como o legado que deixou não só na busca por uma psiquiatria mais humanitária, mas também às artes em geral. Pouca gente sabe, mas a Nise foi a responsável por um dos maiores sucessos do teatro brasileiro que foi Artaud, feito pelo saudoso Rubens Corrêa. Foi ela quem incentivou o Rubens e o Ivan de Albuquerque a encenarem a obra de Antonin Artaud. E este acabou sendo o espetáculo emblemático do Rubens, que ele fez até o final da vida.

Quando li essa matéria tive um insight e decidi montar o espetáculo. A ideia veio realmente com muita força e muita convicção. Eu, que até ali tinha uma carreira mais como ator, tive a certeza de que faria um solo multimídia em que eu não atuaria, cabendo a mim a concepção geral do espetáculo, dramaturgia, direção e concepção multimídia.

Acredito profundamente na lei da sincronicidade. Assim como na espiritualidade do ato que fazemos ao evocar um personagem de nossa história que já se foi, no caso a grande Nise da Silveira. Em nosso projeto, a história já estava sendo escrita antes mesmo de termos consciência e colocarmos em prática. O Carlos Vereza, grande ator e querido amigo que faz a voz do Jung (ou a voz do inconsciente) no espetáculo, é que disse ao nos conhecer: “Isso não é mais um espetáculo. É um evento espiritual. Está tudo pronto. Vocês só precisam acreditar.” E é verdade. Só essa ligação profunda com o mistério, o desconhecido, é que explica um espetáculo como o nosso se transformar nesse sucesso absoluto. Talento só não basta. Acredito ainda que estamos falando aquilo que o coração das pessoas quer ouvir. Evocamos a voz de um inconsciente profundo. Por isso, o público se identifica, se emociona e mergulha tão fundo. Sobre a sincronicidade e a elaboração da montagem, eu diria que foi a própria Nise que me apresentou a Mariana. Nise e a sincronicidade junguiana. Eu e Mariana nos conhecemos no Rio de Janeiro. Éramos alunos da academia do mestre Orlando Cani. Um dia, comentei que estava criando um espetáculo multimídia sobre a vida e obra da doutora Nise. Mariana, na mesma hora, falou de seu pai, o psiquiatra Raffaele Infante, discípulo de Nise. Aí começaram as sincronicidades. Eu havia conhecido o pai de Mariana 20 anos atrás. No momento em que nos conhecemos, Mariana estava retornando da Itália, após longa temporada, e tinha decidido

viver na casa deixada pelo pai. Porém, foi atingida pelo destino. A casa, na Ilha Grande, em Angra dos Reis, foi soterrada no desabamento que acorreu no ano novo de 2010. Foram sete casas atingidas. Todas com vítimas. Exceto a casa de Mariana. Ela tinha combinado de passar o ano novo por lá. Filha de pai italiano e mãe baiana, celebraria a entrada do novo ano oferecendo um vatapá para a comunidade. Quis o destino que ela sonhasse com o pai e decidisse, dias antes da tragédia, sair de lá e ir visitar a mãe no interior da Bahia. Dos escombros, quase nada restou. Exceto seus estudos de ioga, uma foto em que ela medita na natureza, uma imagem em gesso de Iemanjá e uma máscara recebida de presente de um grande mestre da commedia dell’arte. E é justamente essa máscara que dá vida à Nise em sua fase final. Essa idéia de renascimento , de criação a partir do caos, está presente em nossa obra cênica e é fiel ao caminho que Nise trilhou, sempre transformando sombras em luz, caos interno em arte, em criação. Em, como ela gostava de dizer, “emoção de lidar”. “Vai Mariana, pega o cajado, legado de teu pai. E dá vez à voz do coração”. Estas são as palavras que abrem a montagem, na voz do Jung/Vereza. O espetáculo é fruto disso, do nosso inconsciente. Dessa costura sutil de nossas histórias pessoais que se juntam para dar vida cênica à Nise e à sua obra pioneira. E as sincronicidades não pararam por aí. O pai de Mariana se foi com a mesma idade do pai de Nise, 47 anos. E Mariana nasceu no mesmo dia em que Nise fez sua passagem, 31 de outubro. Um Dia das Bruxas. Ah! A máscara que falei acima chama-se La Strega, que representa a Bruxa na commedia dell’arte. Ou seja, estava escrito. Era nossa missão estarmos juntos.

Nise da Silveira Senhora das Imagens é um espetáculo multimídia, envolvendo teatro, dança, cinema e canto. Tal multiplicidade de linguagens exige do diretor um conhecimento amplo de cada uma das linguagens envolvidas. Pode nos contar como foi esse processo?

A alma do teatro é o ator, o intérprete. Na prática, não precisa de mais nada, além disso. Mas acredito que os recursos existem e devam ser utilizados se de fato existe uma sincronia com a obra, se auxiliarão o próprio intérprete cenicamente. E é isto que temos em Nise. Todos os recursos estão integrados. Mesmo a escolha dos depoimentos em vídeo projetados, do escritor Ferreira Gullar e do diretor José Celso Martinez Corrêa, tem uma coerência com o tema e com Nise.

A palavra que Nise mais gostava era liberdade. De minha parte, sempre acreditei no teatro como uma arte total que abraça todas as outras artes. Vivemos num mundo com rótulos e Nise era contra isso. Acho que a multimídia deve ser utilizada quando tem algo a somar. No nosso caso, achei importante contextualizar para as pessoas a dimensão das pinturas que nasceram nos ateliês que Nise desenvolveu dentro do hospício do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. E que veio depois a se chamar Museu de Imagens do Inconsciente, instituição criada por ela e que completa 60 anos agora em 2012. Projetamos as imagens do inconsciente e assim dimensionamos ao olhar dos que estão na plateia a força dessas imagens, seu poder de cura e também sua potência enquanto arte. Embora Nise não tivesse como foco revelar artistas, mas sim provocar um processo terapêutico, através da manifestação da psique, por meio das artes. A dança se abriu a nós como ideia, a partir de uma frase de Nise que não me saiu da cabeça. Ela dizia que a comunicação com a esquizofrenia teria pouco êxito se fosse iniciada no nível verbal. Que era preciso partir de expressões simbólicas. A dança entra no espetáculo como forma de atingir justamente essa comunicação simbólica, sem o auxílio da palavra. Justamente no instante em que Nise descobre as artes como processo terapêutico riquíssimo é que projetamos as imagens do inconsciente, as pinturas. É como se a Mariana dançasse as imagens do inconsciente. Além do mais, eu e Mariana temos enorme interesse por um teatro físico. E somos igualmente admiradores profundos da Ana Botafogo, que faz sua estreia coreografando para teatro em Nise. Ana foi uma de nossas principais colaboradoras e incentivadoras.

Em seu livro Jogar, representar, Jean-Pierre Ryngaert, diretor teatral e professor da Universidade de Paris III, afirma que “…a pesquisa do código acompanha a elaboração do discurso; ambos nascem do mesmo movimento e participam da mesma necessidade. O código não é determinado em meio a um arsenal de possibilidades; ele faz parte da essência do espetáculo.” A seu ver, em que códigos se funda e qual a essência de Nise da Silveira Senhora das Imagens?

Penso que é justamente o que falávamos acima. Sobre a essência de Nise, poderia destacar três pontos: 1) ser um documentário cênico, ou seja, uma obra que vai além da ficção, que se propõe a se debruçar na vida de Nise, mas também na vida da intérprete Mariana Terra e do legado que ela representa ao estar no palco renascendo em Nise e em sua própria história de vida. Particularmente, a ficção pela ficção me interessa muito pouco ou nada; 2) a espiritualidade, a verticalidade que emana de uma obra como Nise. Existe uma evocação, uma celebração da vida, a partir de pessoas que não estão mais nesse plano. E acredito profundamente que estamos intimamente ligados. Nise escolhe seus pares; 3) o caráter multimídia, assim como a soma das linguagens artísticas, colabora para o que eu chamaria de uma espiral. Um mantra. Acho que é isso. Levamos a plateia a um outro plano. E é nesse mergulho que reside a essência de Nise. Mas é claro que se trata de um pacto em que todos tem que fazer a sua parte. Cada plateia tem o espetáculo que merece. Afinal, Nise é um mosaico construído a partir de
Nise, de Jung, de Artaud, de Raffaele e também de cada ser que integra a equipe, principalmente da Mariana Terra, claro. Mas também de cada um que está ali, na plateia. Um sonho dentro de um sonho. Feito do inconsciente, das imagens e dos sonhos que habitam em cada um de nós. A leveza dos sonhos que vem dos pés firmes na terra, da fé na humanidade. Em uma humanidade que possa inventar um futuro onde a exclusão das pessoas denominadas como loucas ceda lugar à convivência, ao elogio da diferença. A transformação precisa começar em nós.

Ao fazer uma retrospectiva da trajetória de Nise da Silveira, sua peça, à maneira de um documentário, revive várias figuras importantes de nossa história, na primeira metade do século passado. Como é lidar com isso num país onde a memória é costumeiramente ultrajada?

É missão. Estamos fazendo a nossa parte. Porém, apesar dos elogios de todos que conheceram Nise, todo espetáculo sobre um personagem real tem que ser uma releitura. Algo que seja fiel e ao mesmo tempo voe, vá além da mera biografia. Caso contrário, não tem porque existir, não justifica encenar. Um livro sempre contará de maneira mais completa a biografia de alguém. Uma peça é um recorte da vida. E este recorte, paradoxalmente, precisa ser maior que a própria vida do biografado. Uma epifania cênica, eu diria. Um espetáculo é uma licença poética em si. E as licenças são inevitáveis. Não vejo problema se são poéticas e feitas com a pena da paixão sem perder fidelidade à alma do personagem biografado. O que chamamos de licença poética nada mais é do que um exercício de plena criação.

Como foi a relação de amizade entre Nise da Silveira e Jung e o que ele significou na formação dela como psiquiatra?

A história diz que Freud abriu a porta do inconsciente, mas foi Jung quem entrou! Acho que é isso. Jung entrou e conduziu Nise. Que em perfeita sincronia com o destino já desenvolvia um trabalho profundamente ligado ao inconsciente em seus ateliês dentro do hospício do Engenho de Dentro. Nise se aprofundou nos arquétipos e na mitologia, após conhecer seu mestre C. G. Jung. Se hoje sabemos da existência de Jung no Brasil, isto se deve a ela.

Sabemos do interesse de Jung pelos fenômenos espirituais e percebemos em sua peça um leve toque místico. E a própria Nise da Silveira, em certo momento da vida, revê suas posições materialistas, em decorrência de várias comprovações de fenômenos extra-sensoriais. Acredita que a ciência deva dialogar com a transcendência?
A arte tem que dialogar com transcendência. A ciência também. E a medicina e tantas outras áreas. O diálogo tem que ser constante. Existe um todo. As partes não têm função se não coexistirem.

Que lugar ocupa o teatro em nosso país, haja vista a imensa influência exercida pela televisão?

O lugar ocupado pelo teatro em nossa vida é infinitamente menor do que poderia ser. Mas acho que isso é fruto de um sistema mais complexo, que envolve também os mecanismos de incentivo à cultura viciados e muito de entretenimento que é produzido com fins meramente comerciais. E que deveria existir, claro, mas não sob o telhado do estado, do incentivo público. Num país sem educação, saneamento, segurança, enfim, sem nada, só deveriam existir editais de baixo orçamento. A importância que o teatro tem em nossas vidas é a mesma que a transcendência ou a necessidade que dela temos. Por aí se mede a força de um povo, de um país, de uma cultura.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

 

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