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Conversa com José Saramago

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18 de junho de 2010 – O dia em que José Saramago deixou de estar

Há certos autores, e o autor do livro que estou a reler é um deles, em que em poucos parágrafos me ubíquo na leitura como se, não sendo parte do enredo, acompanho-o pelo lado de dentro do livro, qual espetador privilegiado, que não interfere porque a história já la está escrita, mas que a acompanha com honras de tribuna.

Em poucos minutos entro numa outra dimensão, a literária, e todos os aborrecimentos daquele que passa a ser o meu mundo exterior, depressa desvanecem.

Já assisti ao Highland Brigade a atracar no cais de Alcântara e dele vi sair aquele homem grisalho, seco de carnes, acompanhado de um outro, bagageiro, cujo aspeto físico o autor se escusa a descrever para que dele, seco de carnes também, grisalho e moreno, não se venha a criar confusões entre distinguir um do outro, pois sempre são apesar de tudo bem diferentes por ser passageiro um, bagageiro outro.

Passageiro que depois de entrar no táxi fica mudo à pergunta do taxista – para onde – e estes traços dispensa-os o mestre porque inventou a sua maneira única de escrever, maneira essa que passa bem sem pontos de interrogações, exclamações, muito menos tracinhos, “e a esta pergunta, tão simples, tão natural, tão adequada à circunstância e ao lugar, apanha desprevenido o viajante” que ao comprar a passagem no Rio de Janeiro, para o seu regresso a Lisboa após dezasseis anos, não havia pensado que de um ponto de partida haverá sempre um ponto de chegada, e esse ponto de chegada não é só a saída do Highland Brigade, o cais de Alcântara, e um táxi a circular nas ruas de Lisboa, mas pode ser, por exemplo, o hotel Bragança, e este sugeriu-o o taxista que apesar de tudo deve estar habituado a estes tácitos passageiros, sentados ao fundo do seu retrovisor.

Já conhecemos Salvador, esmerado gerente do hotel, Pimenta, o que acarreta com as malas, Lídia, a empregada de limpeza que se vai enrolar de intimidades com o personagem principal, Marcenda, aquela da mão morta, e ficamos a conhecer aquele que foi passado em revista, o ano de 1935, ano em que Ricardo Reis chega a Lisboa para se juntar a Fernando Pessoa e juntos partirem para a viagem final.

Já sabemos muito, mas não sabíamos quem era aquele freguês do canto, que não fosse a curiosidade e esta mágica capacidade de fluir nessa dimensão literária do grande mestre, não teríamos a oportunidade de o conhecer pessoalmente, mesmo já depois da sua partida do mundo dos vivos.

Se Fernando Pessoa o fez com Ricardo Reis, porque não o faria José Saramago com um dos seus mais assíduos leitores…

“…Nunca, era como se tivesse acabado de chegar de um país estrangeiro assim como eu quando vim de Xunqueira de Ambia, não sei se me entende, Entendo muito bem, todos nós já passamos por isso, Vossa excelência deseja mais alguma coisa, tenho de ir servir aquele freguês do canto…” 

A partir daqui já só vou acompanhar Ricardo Reis que acabou de beber o seu café que deixara arrefecer, muito mais tarde, porque, entretanto, uma vez que, como seguidor da história é certo, já estou dentro do livro, movo-me pela curiosidade e vou ter com o tal freguês do canto. Sempre me intrigou aquele freguês do canto. Foi posto ali por acaso, ou ali estava porque também ele entrou pelo lado de dentro da historia, aproximo-me, Teve coragem, disse-me, Nunca ninguém o tinha feito e olhe que por aqui já passaram milhares, Não sei o que me deu, achei que este freguês do canto teria algo mais do que a história de facto demonstra, As histórias, as dos livros, têm sempre muito mais do que aparentemente demonstram, e o escritor, não faz mais do que dar as ferramentas para que a imaginação de cada leitor as possa trabalhar da maneira como as entende.

Tonto que estou de emoção, não me lembro com clareza como começamos a nossa conversa. Mas pouco depois de a iniciarmos sei que perguntei, Bem…penso que a pergunta pertinente que se impõe é a inevitável…afinal, Deus existe ou não. E de repente coro. Acho que coro. Não o sinto no calor fumegante da face, mas no desconforto do sentimento intocável do meu pensamento, tudo porque, ao fazer a pergunta, quase de súbito, sinto também uma espécie de indelével sarcasmo, apesar de tudo, não maldoso, Claro que sim. Não se apressou a responder, apenas respondeu de maneira natural, espontânea, convicta, aliás como sempre o fez no mundo dos vivos. Fico com uma espécie de grunhido na garganta para que se perceba que estou prestes a dizer algo mais, mas na verdade hesito pelo impróprio da pergunta que o pensamento, esse menos comedido, já vai fazendo e que seria, Afinal o senhor Saramago esteve sempre errado. Julgo ver por trás de José Saramago uma espécie de silhueta que me parece ser a do meu pai. Não fala, mas na expressão que aparenta emanar dessa silhueta creio compreender, Ouve mais, fala menos, não tenhas pressa de expor o teu ponto de vista sem que primeiro tenhas conhecimento de todos os factos, para que a seguir não te envergonhes a ti mesmo.

Não sei se depois de mortos teremos a mesma incapacidade de ser por fora aquilo que somos por dentro, não sei se as palavras que nos veem de dentro também sofrem as pequenas alterações e os pequenos contornos que nos fazem perder a coragem de dizer a cem por cento, repito, a cem por cento, tal e qual como elas seriam antes de serem expelidas pela boca, mas José Saramago pareceu entender as palavras do meu pensamento que eu, em nome da cortesia e boa educação não tive coragem de expelir pela boca tal e qual como elas vinham do pensamento, e com a serenidade e sabedoria que sempre o caracterizou, disse, O homem inventou a crueldade, e o pecado, não pertence a outro diabo se não o que habita dentro do homem, aquele mesmo meio-irmão de um Deus a que se associa ao bem e, que tanto um como outro vive na nossa alma, na verdadeira essência do nosso ser. Logo, somos nós a escolher qual deles deixaremos que se manifeste, através das nossas ações, Deus, como o diabo, existe enquanto existir a raça humana, e o caminho que seguirás depois de concluída a tua passagem no mundo dos vivos, vai depender do discernimento com que descobres essa grande verdade e, na escolha que fazes quando finalmente percebes que nem o bem nem o mal se atribui a forças externas, como se quisesses ilibar as tuas responsabilidades pondo a culpa em algo que não dominas. A humanidade é um rio, a morte é a imensidão do mar. Inevitavelmente o rio corre para o mar, nele desagua, nele se funde, nele, se dilui e passa a fazer parte de uma imensidão de infindável conhecimento do desconhecido. O caudal que o trouxe por entre montes e vales, planícies, socalcos e obstáculos, apesar de difícil percurso, nada impede esse rio de correr o seu destino, e o caminho que ficou para trás, penoso por vezes, afinal não passou de uma brincadeira de crianças, para tudo o que há ainda por descobrir, Continua a ser um pessimista em relação à nossa espécie senhor Saramago, Não tive outros motivos enquanto palmilhei o mundo dos vivos e quando dele saí não vi indicações de melhoras em relação ao futuro, não sou eu que sou pessimista mas sim o mundo que é péssimo, as pessoas continuam cegas não por defeito físico dos olhos, mas porque elas mesmas escolheram não ver, e como sabe, certo está o ditado que diz, não há maior cego do que aquele que não quer ver, Qual o conselho que nos pode dar, agora que desaguou no tal mar do conhecimento do desconhecido, Não dou outro conselho senão o de que abram os olhos e comecem a ver.

Sempre vi o mestre como um homem não só de grande sabedoria, mas também de grande conhecimento e sempre me deslumbraram as suas palavras, as escritas, bem como as faladas.

Quis saber mais, mas ele, o mestre, à nossa conversa pouco mais acrescentou, e o que acrescentou foi para me dar um conselho apenas, A maneira única que eu sempre tive de escrever não foi uma invenção estudada, muito menos premeditada, surgiu a partir da página vinte e quatro ou vinte e cinco, do romance Levantado do Chão, como se estivesse ali pacientemente à espera que eu la chegasse, e a partir daí eu peguei nessa maneira única e seguimos o caminho que só a nós estava destinado. Por isso, deixe-se de tentar imitar um estilo que não lhe pertence. Não que agora me importe muito, mas para que não se embarace a si mesmo. E veja se lá o que pode fazer em relação às virgulas…

Corei.

António Magalhães

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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