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Cláudio Giordano: o livro como paixão visceral

Escritor, tradutor e editor, Cláudio Giordano tem dedicado sua vida à difusão do livro. Criou e dirigiu a editora Giordano e a Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes. Editor da Revista Bibliográfica & Cultural e do boletim O Nanico, entre as importantes traduções que fez para o português está a de Tirant lo Blanc, do catalão Joanot Martorell (Giordano, 1998), que lhe rendeu o Prêmio Jabuti.

É autor de Monteiro Lobato editor (Giordano, 1996),  Leitura recreativa –  A carne de J. Ribeiro (Imesp, 2002), Histórias das mil e uma noites (Unicamp, 2009), O tempo e o vinho (Senai, 2012), Apontamentos de leituras (Sesi, 2016), Uma biblioteca vinária (Dialeto, 2017) e Antonio Candido mestre da cortesia (Imesp, 2020).

Em que altura da vida a descoberta do fascinante universo do livro?

A lembrança que guardo de livros e leitura na minha infância é minguada. Havia em casa os Contos da Carochinha, de Figueiredo Pimentel (editora Quaresma, provavelmente edição de 1948), presente de minha madrinha; Coração, de Edmundo d’Amicis (edição cartonada da Francisco Alves), algumas brochuras de romance de Madame Delly, autora que minha mãe lia com o mesmo agrado com que acompanhava as novelas pela rádio. Da eventual leitura desses livros, ficou-me apenas gravada na memória a história assustadora (para mim) de João Felpudo.Em 1951, entre os onze e doze anos, fui para o seminário: a partir daí o livro e a leitura entraram em minha vida e só cresceram com o passar do tempo. Frequentei o seminário até o primeiro ano de filosofia (1958). Voltei a estudar, nos primeiros anos de 1970, frequentando a Faculdade Ibero-Americana, no curso de Inglês e Alemão, que não concluí. Mais tarde, nessa mesma década, cursei e diplomei-me no curso de Administração de Empresas. Desde que deixei o seminário, em 1959, trabalhei como assalariado em várias empresas, até 1988, quando, prestes a aposentar-me pelo INSS, passei a trabalhar na Livraria Antiquária Corrêa do Lago, onde fiquei dois anos. Só então mergulhei no universo da palavra escrita. Aliás, faço uma correção: em curto período de trabalho na editora Abril (todavia, na área de computação), editei, em impressão de linotipia dez números (março/85 a julho/86)  um boletim, de dez páginas, a que rotulei de Nanico – homeopatia cultural. Mais tarde (janeiro de 1996) dei continuidade a essa publicação (em formato diferente e número variável de páginas), levada avante até o número 22, em maio de 2011.

Como surgiu a ideia de fundar sua própria editora, no início dos anos 1990 e qual era sua linha editorial?

O acervo da Livraria Corrêa do Lago era simplesmente fantástico e a par de abrir-me um horizonte imenso, despertou-me incontida vontade de contribuir, de alguma forma, para trazer à tona autores e/ou obras nacionais esquecidas ou alijadas do mercado editorial. Conhecia de longa data a notável “Colección Austral”, em língua espanhola, inaugurada pela editora Espasa-Calpe, em 1937, e viva até hoje: brochuras de 11 x 17cm, agrupadas em  oito vertentes (poesia, contos, política, filosofia etc.) indicadas apenas pela cor da capa padronizada e sem orelhas. Pensei então fazer algo parecido, abrindo três vertentes — Memória Brasileira, Memória Portuguesa e Memória Universal — que acolhessem obras e autores fora dos catálogos de nossas editoras. Assim, os três primeiros volumes seriam dedicados aos Autos do padre José de Anchieta, Camilo Castelo Branco e Garcilazo de la Vega. Imaginava fazer algo em parceria com a Livraria Correa do Lago, mas os interesses não combinaram. Enfrentando minha timidez para assumir uma atividade empresarial própria, ainda que de pequena monta, decidi abrir a editora Giordano.

Dentre várias obras de suma importância na literatura universal traduzidas por você, está a primeira tradução em língua portuguesa de Tirant lo Blanc, de Joanot Martorell, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti. Pode nos contar um pouco sobre essa experiência?

Minha aventura editorial se deve ao inesperado encontro do Tirant lo Blanc, cujo exemplar pertenceu à biblioteca de Mestre Jou e foi-me vendido, através da livraria dele, existente à época na Rua Martins Fontes, em São Paulo. Isso na década de 1970. Quando estava preparando os primeiros volumes da Coleção Memória, fui è editora Loyola para comprar obra do padre Anchieta que ela vinha publicando. Nas estantes em que se expunham suas edições, deparei-me com o título: O Livro do Amigo e do Amado, de Raimundo Lúlio, traduzido do catalão. Comprei-o e entrei em contato com o tradutor Esteve Jaulent. Disse-lhe de meu projeto editorial e da vontade de aprender o suficiente do catalão para poder ler e eventualmente traduzir o Tirant. Esteve, que estava empenhado em divulgar a obra de Raimundo Lúlio por aqui, propôs-me começar pela tradução de O Livro das Bestas, de Lúlio. Ele conseguiria apoio da Generalitat de Barcelona e, muito provavelmente, a Loyola coeditaria essa edição. Nessa linha eu mataria dois coelhos numa só cajadada: familiar-me com o catalão e iniciar a Coleção Memória. E assim foi. Em alguma noite de 1990,  em concorrido lançamento na Livraria Corrêa do Lago era lançado o Livro das Bestas, volume 3 da Coleção Memória  – coedição da Loyola e editora Giordano. Os números 1 (Lembranças de José Antônio, de José Antônio Frederico da Silva) e 2 (Maria, não me mates, que sou tua mãe! / O Cego de Landim, de Camilo Castelo Branco), sairiam em 1991. A ideia de editar o Tirant veio mais tarde. O Dr. Mindlin, um dos co-fundadores da Oficina do LivroRBdeMoraes, a quem eu levava sempre exemplar das brochurazinhas que editava, perguntou-me por que eu não preparava uma edição de maior vulto, a ser apresentada através dele a certa editora de renome. Comentei-lhe a respeito do Tirant (que a essa altura vinha eu traduzindo) e ele achou excelente ideia. Essa grande editora, porém, não se motivou pela proposta. Decidi, então, encarar sozinho o empreitada. Através do amigo Jaulent, encaminhei proposta à Generalitat de Barcelona, a qual patrocinou a tradução, que fiz questão de editar sozinho, saindo ela do prelo em julho de 1998. A tradução foi árdua, ao longo de dois anos. Apesar de premiada com o Jabuti, encaro-a como um material primário para um futuro estudioso da língua catalã que se aventure a retraduzir esse monumento da cultura catalã, ao qual Cervantes enalteceu no imortal D. Quixote como “o melhor livro do mundo”.

O que foi e como surgiu a Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes?

A Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, entidade cultural sem fins lucrativos, foi fundada no final de 1999 e, como se lê em seus estatutos, teve por finalidade trabalhar em prol da recuperação e preservação de nossa memória cultural, manifestada através da palavra escrita. Posso dizer que, dentro de suas possibilidades, cumpriu satisfatoriamente seu objetivo, formando um acervo de aproximadamente quarenta mil itens (entre livros, revistas, jornais, documentos), em boa parte composto de obras e ou autores esquecidos e fora do comércio; esse acervo acha-se hoje disponível na Biblioteca Central César Lattes, da Unicamp. Atuou também a Oficina publicando diversas obras, a Revista Bibliográfica & Cultural e o boletim Nanico.A ideia da Oficina foi um desdobramento da iniciativa da criação da editora Giordano. Na verdade, a editora tinha o mesmo propósito básico da Oficina: contribuir na recuperação de nossa memória histórico-cultural. Com o passar do tempo e as dificuldades imensas para manter a editora, sobretudo distribuir as tiragens que se acumulavam, ocorreu-me que era menos oneroso e muito mais produtivo trabalhar no sentido de formar uma biblioteca contendo autores esquecidos e obras fora do comércio, do que editar sofridamente uns e outros e ficar com a maior parte dos exemplares estocados. Para isso existem os sebos e eu os frequentei desde a juventude, até a chegada triste da pandemia que nos assola.  A ideia amadureceu no convívio de amigos e com a adesão da figura ímpar do Dr. José Mindlin. Tinha eu já não razoável acervo de livros, de sorte que, fundada a Oficina, alugou-se o imóvel que fora casa-ateliê de Samson Flexor e abriu-se o espaço ao público, que durou de janeiro de 2001 a dezembro de 2006.

O que o levou a doar à Unicamp o acervo, com cerca de 40 mil itens, da Oficina Rubens Borba de Moraes?

Um acidente de percurso. A Oficina sobrevivia de apoio financeiro de duas ou três empresas que garantiam a manutenção do espaço (aluguel, contas etc.). Esse apoio cessou, em meados de 2005. A Oficina tinha estreito relacionamento com o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), o que me levou a, em maio de 2006, oferecer-lhe em doação o acervo da biblioteca. O IEB interessou-se, mas estava então com dificuldade de espaço para acolhê-lo. Em outubro desse mesmo ano, encontrei-me (por coincidência em evento no IEB) com uma amiga, professora da Unicamp, que me pediu notícias da Oficina. Dei-lhe rápido histórico e disse-lhe que aguardava, com não pequena ansiedade, a decisão do IEB. Dizendo-me que o IEB já possuía significativos acervos, perguntou-me a amiga, se eu não poderia fazer a doação para a Unicamp. Respondi-lhe que sim. Na semana seguinte, um diretor da Unicamp ligou-me em nome do reitor, dizendo que a Unicamp tinha interesse em receber o acervo da Oficina, cuidando do transporte, pagando um mês de aluguel (a Oficina a essa altura já estava sem saldo bancário). Assim foi feito e, passados dois anos, a 18 de dezembro de 2008, devidamente higienizado e instalado, em evento presidido pelo reitor da Unicamp, inaugurava-se e abria-se ao público a “Coleção Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes” na Biblioteca Central César Lattes daquela universidade.

Dos livros que publicou, tanto pela editora Giordano quanto pela Oficina Rubens Borba de Moraes, há aqueles que lhe sejam mais caros?

A coedição, com a Imprensa Oficial de São Paulo, de Batalha de Amor em Sonho de Polifilo, atribuído a Francisco Colonna, deve ser lembrada. Trata-se de marco do Renascimento e é uma pena que não tenha merecido até hoje nenhuma apreciação da mídia.  Com a Edusp lançamos Anais da Inquisição de Lima, praticamente a primeira divulgação de Ricardo Palma no Brasil (afora um opúsculo com uma das “tradições”, divulgada por Josué Montello, em 1954). Posteriormente, em coedição com a editora Círculo de Brasília, saiu, na Coleção Memória, Sete Tradições de Ricardo Palma. Fica como marco de nossas publicações a tradução e edição de Tirant lo Blanc, de Joanot Martorell, livro de cabeceira de Vargas Llosa, que assina o prefácio. Diz Martorell, ao redigir a sua obra no final do século XV, a pedido de D. Fernando, príncipe expectante de Portugal, estar traduzindo as aventuras de Tirant do inglês para o português e deste para o valenciano ou catalão. Na verdade ele produziu apenas a versão catalã, de sorte que a promessa do texto em português esperou mais de quinhentos anos para aparecer sob o selo da editora Giordano.

 Quais são as maiores dificuldades de um editor com seu perfil para sobreviver no mercado editorial brasileiro?

Para todos os editores e em especial para os pequenos, as dificuldades maiores e às vezes insuperáveis, são: visibilidade de suas edições e distribuição.

No livro Apontamentos de leitura temos diversos ensaios de sua autoria sobre autores e livros que o marcaram. Gostaria que comentasse sobre alguns deles.

O texto de abertura “Mediocridade” é meu depoimento de vida. Dos demais, creio sejam reveladores, por mostrar aspectos pouco divulgados de seus autores, “Joana d’Arc segundo Mark Twain”,  e “Robert Louis Stevenson e os livros”. O texto de Henri Gaubert, “A morte da rainha Maria Antonieta”, parece-me de comoção e realismo sinceros.

No recém-lançado Antonio Candido, mestre da Cortesia, temos sua correspondência de mais de 20 anos com o professor Antonio Candido. O que essa amizade e outras tantas que conquistou como editor significam?

Como refiro na explicação inicial do opúsculo, não se trata de efetiva correspondência entre mim e o saudoso professor. Minha intenção ao prepará-lo, que mereceu o endosso da Imprensa Oficial de São Paulo, foi mostrar a atenção cordial que Antonio Candido dedicou a um editor (mero aprendiz de feiticeiro) que lhe enviava algumas de suas publicações ou lhe fazia eventuais consultas. Homenagem ao mestre, portanto, e ao mesmo tempo divulgação de duas ou três curiosidades a ele afetas. Aproveitei também para registrar ou relembrar algumas ações da Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes. Por fim, é-me da maior satisfação a apreciação de Antonio Candido ao meu depoimento em “Mediocridade”.

Novos projetos em andamento?

Não tenho mais energia para novos projetos. Com acertos ou desacertos, dei minha contribuição na área cultural, através das edições perpetradas e formação do acervo da Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, conservado e disponibilizado na Biblioteca Central César Lattes da Unicamp.

Sobre o autor da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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