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A noite não é para velhos

Estava velho.

Sentia-se tão velho, como velho era o quarto, o colchão surrado, o candeeiro torto, o rádio gasto, o tapete desfalcado de cor e a janela que contrariava o sol com cortinados desmaiados, tudo fora de época  sinistramente agudizado pelo tempo. E até velho estava aquele espreitar para além dos vidros, das águas furtadas dos prédios, dos telhados, das chaminés, das antenas e do risco do rio que se avistava ao longe como eterno e soturno companheiro.
E o seu próprio envelhecer estava no tempo da ida.

Cansaço… Tempo nu de orgulho fustigado. Era altura. Queria sempre morrer, quando sentia a urina descer as suas pernas, ou quando as forças o impediam de levantar, destruídas por elos invisíveis dentro de si. Naquele dia subira as escadas, feito boneco, arrastando-se contra as paredes, degrau a degrau como ébrio. Sentara-se junto ao patamar da casa da vizinha, mulher estúpida e bisbilhoteira que elenão gostava, esperando que ela não o visse naquela prostração, detectando nele o labirinto da respiração difícil e o azul dos lábios.

Mas até esse orgulho envelhecia. Na mercearia do Vicente tinha caído, deitado  abaixo umas latas, despejado o saco do pão, levado atrás a dor e a confusão. Sentira a náusea subir-lhe até ao suor da nuca que lhe molhou o colarinho. Vira turvo e opaca a loja, opacos os passos e as vozes. As entranhas revoltaram-se, sujaram-no, encheram de mau cheiro o estabelecimento. Deixara-se ficar deitado no chão até vir a ambulância e sentira ao seu lado, o corpo pesado de Vicente, alma boa que lhe ditava palavras de conforto. Mas a vergonha impedira-o de lá voltar e agora sentia a agrura da sua própria ingratidão.

A noite alojava-se na rua, enchia-lhe a casa. Sentou-se na cama. Olhou o relógio. O silêncio tinha peso.

Sentiu sede. Sobre a mesinha de cabeceira a única coisa nova que destoava: o telemóvel que o filho comprara de propósito para ele .Tinha havido discussão. Ele não queria aquela porcaria para nada. Tinha o telefone fixo. Mas o filho teimara, deixara logo o seu número pronto a ser chamado a uma simples tecla. Nunca o usara, apenas o filho lhe ligava diariamente. Agora nem isso.

Sabia-se mesquinho. Discutia com o filho por coisas estúpidas, por aconteceres que só diziam respeito ao filho. Como se aquele orgulho atravessado o impedisse de ser carinhoso com ele. Até compreendia porque o filho cansara. Desculpava-o intimamente, mas sempre que o ouvia, perdia-se em ralhos absurdos e acusações.

Mantinha o telemóvel sempre carregado e esperava a chamada do filho, que não vinha. Na última conversa ele fora rude com o pai. Dissera-lhe mesmo que quem precisa tem de ser humilde. E desligara com uma boa tarde brusca, feita de desalento e saturação.

Quem precisa tem de ser humilde.

Voltou a deitar-se de luz acesa. Estava velho em tempo de ida. Manteve-se acordado até o dia levantar seu véu e começar a ouvir os ruídos da vida no prédio e na rua. Os passos, as vozes, os pássaros da vizinha do 3º andar, os gritinhos das netas da Antónia, o cão do velho amigo Afonso do prédio em frente, os carros, o eléctrico, os saltos altos da Rita. Esperou até saber que o filho chegara ao banco, olhos fixos no relógio. Pegou no telemóvel ,mão suada. A saudade aguçando-lhe.

Assim que lhe ouviu a voz, a vaga veio de turbilhão, uma ternura imensa que lhe escaldou os olhos e o fez recordar o tempo em que o filho se aninhava no seu colo, febre alta, dor de barriga e lhe pedia para adormecer. E ele segurava -o, sentindo os braços ganhar dormência, contra o peito, até ele se perder no sono. Desejando que aquela dor infantil passasse para si , libertando-lhe o filho.
” -Pai…?”
“-Quando quiseres filho, se ainda quiseres, vou para a tua casa.”

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