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A “des-simbolização” da sociedade em tempo de Trevas e do Sol Invicto

Apesar de, atualmente, quando nos apercebemos do estado do tempo, o fazemos apenas no sentido meteorológico, que no fundo nos leva a decidir se vamos com roupa mais quente, menos quente, mais agasalhados, menos agasalhados…. o tempo é também uma dimensão psicológica, mental, que nos afeta muito para além de sabermos se amanhã vai chover, ou não.

1 – Para uma pedagogia do símbolo

O tempo, seja o atmosférico, seja o cronológico, prega-nos muitas partidas e leva-nos a sentimentos verdadeiramente opostos, consoante os sinais que nos dá. Há pouco tempo, em dois dias mediatamente sequenciais, tive sensações completamente diferentes ao subir Monsanto para vir para Lisboa. No primeiro dia, ao começar a descer na direcção da grande cidade, esta estava coberta por um manto imenso de nuvens negras que pareciam estar prestes a desabar por cima dela – e de nós; parecia que alguma coisa de catastrófico poderia acontecer a qualquer momento, a tempestade estava pronta para assolar com bátegas de água, assim como com sentimentos nefastos, diríamos perante aquela camada de escuridão. No dia seguinte, ao contrário, subi Monsanto e, ao vislumbrar a cidade, deparei-me com um magnífico céu azul, com um sol brilhante, radioso. As sensações são completamente diferentes. Apesar de, atualmente, quando nos apercebemos do estado do tempo, o fazemos apenas no sentido metereológico, que no fundo nos leva a decidir se vamos com roupa mais quente, menos quente, mais agasalhados, menos agasalhados…. o tempo é também uma dimensão psicológica, mental, que nos afeta muito para além de sabermos se amanhã vai chover, ou não.

Hoje, a forma como lidamos com os ritmos atmosféricos, com as intempéries, com os ciclos, está quase arredada da nossa forma de vivenciar o mundo. A nossa cosmovisão não implica, por exemplo, que saibamos em que altura do ano é que há laranjas. Não! Para nós, hoje há laranjas em qualquer altura do ano, basta que o carregamento tenha chegado ao supermercado da nossa zona, onde nos abastecemos. Hoje não sabemos qual é a época em que se colhem morangos ou abóboras, melancias ou as tais laranjas. Para nós, se as não houver em Portugal, não há problema: talvez o preço aumente um pouco, mas virão de qualquer outra zona do globo. O nosso ritmo de colher o alimento já não está de acordo com o ritmo das estações do ano e da produtividade agrária.

Estamos numa sociedade que já se retirou dos ecossistemas, estamos numa sociedade que já se sente ao lado dessa angústia premente que os nossos antepassados até há tão pouco tempo tinham, que era saber se, com as chuvas imensas das últimas duas semanas, a terra ia escoar a água, se o sol a ia secar para que, daqui a um mês, quando se lançassem as sementes à terra, elas  germinassem ou, se a água fosse muita ainda, elas apodrecessem. Se elas apodrecessem, seria sinónimo que no próximo verão não teríamos trigo, não teríamos pão no inverno seguinte. Seria sinónimo de fome.

Não, nós hoje não estamos conscientes deste drama que nos acompanhou durante milénios: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”, diz a oração, que tantos de nós declamam sem sentir o peso agrário deste pedido. Estas questões já não são as nossas questões, não são prementes. Esta alteração radical de vivênciar o mundo leva-nos a uma questão fundamental: perdemos os referenciais criados ao longo de milhares de anos e que nos davam chaves de leitura das ciclicidades. Hoje, seguindo Byung-Chul Han[1], estamos numa sociedade que se “des-ritualizou” e se “des-simbolizou”, perdendo o que essas dimensões implicam de capacidade de comunicar e de criar comunidade.

Atualmente, a forma de vivenciar o mundo, a forma de viver com o que está à nossa volta, encontra-se muito pouco relacionada com uma hermenêutica dos símbolos, muito pouco relacionada com um sentido superior que possa ser dado a determinadas realidades, transformando-as em continentes de valor fora do normal e do quotidiano, transformando-as, na prática e funcionalmente, em intermediadores, em ligadores da realidade terrena com algo transcendente – para mim, isto é um símbolo.

Estamos num tempo em que nos afastámos dos rituais, nos afastámos das ritualidades – pelos menos, afastámo-nos das ritualidades tradicionais: não quer dizer que hoje não estejamos, em certos movimentos e grupos, a dar como que uma volta completa ao círculo e a regressar ao uso intensivo da simbologia: vemos, por exemplo, muitos dos nossos jovens, ou até não jovens, a usar tatuagens repletas de simbologia. Contudo a hermenêutica que cada um deles faz é uma hermenêutica que está desligada das instituições que materializaram, no fundo, essa passagem ao longo do tempo dessa simbologia. É uma hermenêutica afastada das tradições: quantos dos nossos jovens têm tatuagens com triangulos, com olhos, com olhos solarizados, com triângulos solarizados… é claro que para eles -e não o fariam no corpo para o resto da vida, se não tivesse significado- este uso da simbologia “colada” ao corpo tem um significado profundo e intenso, mas tem um significado que não está em directa ligação às escolas iniciáticas que fizeram com que ao longo dos séculos estes símbolos se mantivessem válidos.

No que respeita às tradições de interpretação simbólica, às tradições de hermenêutica do símbolo, estamos numa sociedade que, apesar de manter o fascínio imenso pelo símbolo, se “dessimbolizou” ou, pelos menos, está a recriar a sua relação com o símbolo e, conjugadamente, se “des-ritualizou”.

2 – Um regresso ao peso mental do solstício

O símbolo sempre foi para a nossa sociedade algo de extremamente importante, com uma construção numa longuíssima duração.  No que ao solstício diz respeito, vamos inevitavelmente ao início do Neolítico. Foi há, pelos menos, 10 / 12 mil anos, que se deram as revoluções comportamentais que criam toda uma nova forma de ler o mundo, toda uma outra hermenêutica de olhar para a realidade e, portanto, um novo caminho no campo do simbólico, dos significantes e dos significados que nos ligam ao transcendente.

Nós somos herdeiros –o que hoje nos pode parecer estranho- de sociedades agrárias, de sociedades que se permitiam e tinham a possibilidade de à noite olhar para as estrelas, medir os astros e criar conhecimento em cima disso. Conhecimento que sistematizava ideias, que sistematizava princípios, que sistematizava signos e os transformava em formas de ligação, em símbolos. Isto é, que os transformava em algo de significativo, que faziam a ligação com um transcendente que acreditavam existir.

Hoje, o solstício de inverno, para a maioria dos nossos concidadãos, não tem grande significado, e as festividades em torno desse solstício são festividades que se laicizaram, que se mantêm no calendário porque são cómodas, porque são festivas, porque são agradáveis, porque são familiares, mas perderam a sua dimensão simbólica: não se faz uma hermenêutica dessa festividade, vivencia-se com a leveza de uma festa qualquer. Perdemos o desejo existencial de entrar naquela noite, que é a noite mais longa do ano -que se sobrepôs ao dia mais curto- e de saber que imediatamente a seguir, o Sol, que afinal de contas é invicto, apesar de até aí estar a perder terreno, não ter sido derrotado. A partir do dia seguinte, o Sol começa o seu trajeto de forma cada vez mais longa. Será pouco tempo, dia após dia, mas garantidamente irá voltar a crescer o dia em relação à noite, até termos uma vitória completa da Luz sobre as Trevas.

Hoje, em pleno século XXI, somos em muito herdeiros duma sociedade da certeza, construída com base numa leitura boçal do paradigma científico, tendo-se transformado a ciência quase numa ideologia, para não dizer mesmo numa religião.

A simples verificação estatística de que todos os dias o sol volta a nascer é para nós algo de desresponsabilizador, que nos fez cortar todos os liames que tínhamos com uma leitura simbólica do solstício, com uma leitura simbólica da alternância entre o dia e a noite. Não é que nos devamos remeter para um horizonte de incerteza, de não saber positivamente se amanhã o Sol vai nascer ou não.  Mas, essa verdade estatística conduz-nos para uma segurança que, no fundo, nos libertou do peso do símbolo -e digo libertou, não necessariamente no sentido positivo, mas porque nos “libertou” da necessidade de recorrer ao símbolo para fazer uma hermenêutica do cosmos-, da profundidade existencial da dúvida sistemática que nos mostra que talvez haja realidade para além do nosso olhar.

Recordo sempre o célebre diálogo entre Heródoto e o sumo sacerdote de Amón, em que o historiador grego lhe terá perguntado o que mais importante se tinha passado no Egipto nos últimos 3 milhares de anos, isto é, desde que as pirâmides foram construídas. Depois de pensar, o sumo sacerdote responde que o mais importante aconteceu foi que todos os dias, depois do sol se pôr, todos os dias o sol nasceu. Isto é, a verificação estatística de que, ao longo de 3.000 mil anos, o sol tinha sempre nascido, não lhes retirava, no fundo, o peso simbólico da necessidade de potenciar que todos os dias o sol nascesse. Todos os dias eram realizados rituais, eram proferidas orações para que no dia seguinte o sol voltasse a nascer. Esta verdade estatística, que para nós hoje é inquestionável, não retirava, há 2.500 anos, o valor simbólico do astro Rei enquanto o grande opositor das trevas.

As trevas encontramo-las nas mitologias mais antigas. As trevas não eram necessariamente uma realidade conotada em termos morais. As trevas, o caos, o oposto à ordem, à vida, eram uma realidade que fazia parte do mundo, do cosmos, como tudo aquilo de que se gostava. A morte fazia parte do ciclo em que estava a vida, assim como o caos fazia parte do ciclo em que estava a ordem. É claro que os nossos antepassados preferiam viver na ordem, preferiam viver na “vida”, mas o caos e a morte eram parte natural; era parte de digna existência aquilo que era considerado negativo, ou menos bom, aquilo que era, no fundo, também visto como a potencialidade.

O caos é aquilo a partir do qual se cria. Os mitos de criação, começando pelo Génesis bíblico, mostra-nos isso de forma claríssima. José Saramago afirmava: “O caos é uma ordem por decifrar”[2]. E, de facto, o caos não é necessariamente o “caos” naquele sentido metafórico, naquele sentido destruidor, naquele sentido de fim do tempo. Não! Num tempo que não seja linear, num tempo que seja cíclico, o caos não é um ponto final, o caos é um ponto de novo recomeço. E nas mitologias antigas encontramos isso de forma claríssima -na mitologia grega, por exemplo, o caos é a possibilidade de uma nova criação. Espartilhados numa cronologia, numa visão da história, numa visão do tempo que é linear, para nós hoje, o caos representa um ponto final, representa um momento último. Mas nos mitos antigos não encontramos uma conotação moralizante da ideia de caos, nem da ideia de morte.

3 – A Luz e a salvação

Eu arrisco-me a dizer, pelo menos na minha interpretação, que uma leitura moralizante do caos e da morte começa a ser construída fundamentalmente já na Idade do Ferro, no I milénio a.C., com as religiões iniciáticas, com as religiões que vão olhar para o mundo, vão olhar para o material e vão conotá-lo como negativo. Vão, no fundo, desejar para os seus iniciados, para os seus membros, toda uma ligação a um mundo divino, a uma metafísica que está para além do corpo, que está para além de tudo o que é resultado da criação.

Este resvalar moral vai trazer um folgo imenso, um espaço cultural e popular novo a entidades mitológicas que já existiam antes, que já vêm da Idade do Bronze, mas que na Idade do Ferro vão ganhar a natureza dos génios do mal. Falo do diabo, falo dos demónios. Todos eles passarão a ser cada vez mais concorrentes de deus, como concorrentes da ordem, como desestabilizadores que tentam levar o ser humano a uma perdição, que tentam levar o ser humano a uma negação da existência de uma centelha que tenderia a ligar o humano ao divino.

No Mundo Clássico vamos encontrar um número muito significativo de religiões que se vão centrar no vivenciar deste ciclo do escuro e do claro, deste ciclo do sol, da luz, da noite e das trevas. Este ciclo, materializado neste momento máximo que é o momento do solstício, corresponde a uma estação que se verifica materialmente à nossa volta: a natureza morre, a vegetação desaparece, a morte está cada vez mais presente, o risco de não ter alimento está cada vez mais forte.

Nestes cultos, que encontramos, por exemplo, na época de Jesus, podemos destacar as Saturnálias e o culto a Mitra. As saturnálias tinham lugar exatamente na semana do solstício de Inverno, e chegavam a estender-se por 5 ou 7 dias, uma semana em que se desejava e se recriava uma época mítica de fraternidade, de igualdade.  Uma época mítica de prosperidade, nesse momento de morte, nesse momento de carestia, nesse momento em que era necessário ficar em casa fechado, porque não se poderia cultivar, porque a natureza estava morta, e porque, quanto mais não seja, está frio, está a intempérie na rua. Nesse momento, procurava-se recriar uma ideia de abundância, davam-se prendas aos mais jovens, mas também se subvertia a ordem social: os escravos podiam ser servidos pelos senhores e os senhores teriam de servir os escravos.

No culto a Mitra, na mitologia que vai circular em Roma, Mitra nasce exatamente a 25 de dezembro filho de uma mãe virgem. Mitra é o príncipe do Bem. É o deus que aparece, no fundo, como o grande arauto do sol, da iluminação, da ordem cósmica. Mitra é o deus que se vai sacrificar pela Humanidade. Mitra é também a imagem da Luz que finalmente vence as trevas, do bem que vence o mal. Numa leitura muito maniqueísta, o mitraísmo remete-nos para toda uma visão do mundo altamente polarizada, uma visão do mundo em que está latente uma guerra, está latente uma disputa cósmica entre o bem e o mal.

No séc. II/III d.C., veremos surgir ainda um outro culto: o culto ao Sol Invicto. No fundo será um culto de natureza imperial que remete para o Imperador toda esta simbologia solarizada que, aliás, já encontramos desde a Suméria. O sol, além de ser este oponente simbólico às trevas, é também a forma corrente da divindade ligada à sabedoria. A sabedoria que não é o conhecer coisas, não é o somar algebricamente o conhecimento de coisas. A sabedoria é ter acesso a um conhecimento que é divino. É o sol, por exemplo, que no código de Hammurabi dá as Leis aos monarcas, para que possam de forma benfazeja governar o seu povo. E é esta imagem que os imperadores romanos vão tentar também cumular em si: serem eles os intermediários com esse astro rei, serem eles os intermediários com esse horizonte de sabedoria e de luz.

A Luz não é apenas o oposto das Trevas, a Luz é a Sabedoria. O ter a Luz, o atingir a Luz, não é apenas ter rejeitado as Trevas, tal como aparece no prólogo do Evangelho de João. Não! É acima de tudo conseguir obter a Sabedoria.

Entramos efetivamente na dimensão, na compreensão antropológica desta oposição entre a Luz e as Trevas.  Aqui, temos de chegar ao ponto, à questão que, não sendo central, é inevitavelmente a questão em que se teria de desaguar: o Natal. Apesar de nada indicar o nascimento de Jesus para esta época do ano, simbolicamente Jesus é apresentado como aquele que traz a Luz, aquele que traz a salvação, aquele que inaugura o novo reino. O seu nascimento só poderia ter lugar dentro deste quadro simbólico solsticial. É claro que podemos sempre remeter também alguma da explicação, para esse lado, digamos que de herança cultural que todas as religiões e todas as culturas têm, assumindo a vencedora os locais, as datas e os ritos das vencidas, mas a essencial de s éter colocado o Natal nesta data reside na obviedade da simbologia de Jesus. Das Trevas à Luz, Jesus mais não faz que assumir e aprofundar uma simbologia antiga e altamente incorporada nas culturas populares.

Paulo Mendes Pinto
Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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