Acontecia, outrora, aos médicos da província, cada uma, que nem ao mais levado mafarrico lembrava.
Fernando Namora, narra, com a graça que lhe era peculiar, as suas aventuras, em “Retalhos da Vida de um Médico”.
E muitas pitorescas e engraçadas historietas se contam desses humildes “João Semanas” – verdadeiros heróis, que alcançavam “milagres” com os escassos recursos de que dispunham.
Ora, havia nesse tempo, jovem médico, com consultório montado no centro da cidade de Bragança, considerado e respeitado por todos os brigantinos.
Suas curas, espampanantes, espalharam-se por todo o distrito, desde Bragança até a terras de Miranda, porque não havia maleita, que não sarasse, nem mal que não passasse.
Tinha o jovem doutor, tia, velha, teimosa e rabugenta, que sofria de graves males, que seriamente a atormentavam. Mas – apesar dos rogos – recusava, peremptoriamente, ir ao médico.
Os familiares andavam deveras preocupadíssimos. Como demovê-la da contumácia?
À Vila não queria ir. Também o médico, que ai clinicava, estava tão anquilosado, que mal conseguia diagnosticar a mais leve enfermidade.
Os desconfiados aldeões, preferiam as antigas mezinhas das avós, ou a arte mágica de bruxas da região. Por sinal, poucas e ignorantes, e tão néscias como os rústicos campesino.
O que fazer então já que a velhinha piorava a olhos vistos?
Após muito matutarem e altercarem entre si, os parentes da velha casmurra, assentaram encetar a árdua e perigosa viagem, por vales e montes e caminhos escabrosos, até Bragança. Terra grande, onde havia hospital e vivia o sobrinho (?) da enferma, que granjeara reputação de “sapiente”.
Mas como, se a velha não queria?!
Nessa recuado tempo, não havia quem tivesse automóvel – nem na aldeia, nem talvez no concelho. O remédio era transportá-la de burro – animal pachorrento e amigo de fazer vontades.
Mas como convencer a velha; se ela não queria sair de casa?
Acordaram, por unanimidade, chamar dois valentões que agarraram e amarraram a mulher, com grossas cordas à albarda coberta por velha e surrada liteira.
Bem segura e bem atada, lá foi a nossa velha, bracejando e chorando, até à Praça da Sé, e da Praça até à porta do consultório do famoso médico, onde arreataram o jerico.
Estava o clínico, de estetoscópio na mão, a auscultar conscientemente o peito de respeitosa idosa, quando escuta grande alarido que subia da rua. Algazarra infernal, chinfrinado endiabrado, à mistura de muitos guinchos, berros e vozearia.
“O que seria?”, pensou, atónito, o jovem médico.
Esclareceu-lhe a curiosidade a solícita empregada, que entrou afogueada no consultório, explodindo num misto de surpresa e indignação:
– “Senhor doutor: está uma mulher, a gritar e a estrebuchar, amarrada a um burrico! E muita gente à volta… Dizem que é tia do senhor doutor!!!”
– “Pois vá dizer: que não sei quem é. E mande-os embora… Não atendo ninguém que venha amarrado a um burro!”
Não houve outro remédio, apesar dos rogos e altercações, senão regressarem à terra, com a velha amarrada, e mais séquito de festiva garotada até ao Loreto, que em risos e chalaças, galhofavam com a grotesca e hilariante cena.
Mais tarde, parentes do jovem médico, diziam entre si e para quem os queria ouvir, com olhos de indignação cravados no céu:
– “Parece impossível! Ter vergonha da tia!… Sangue do seu sangue!”
E os aldeões, que os ouviam, repetiam, com cibinho de ira, sacudindo negativamente a cabeça:
– “Vão estudar para a cidade. Ficam ricos, e não querem saber dos pobres!… É para isso que uma mãe cria o filho!”