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Um Nobel de supermercado

Há muitos muitos anos, um senhor de seu nome Andrej Varhola, mais conhecido talvez por Andy Warhol, fez a ridícula afirmação de que a arte deveria poder ser comprada no supermercado. Esta afirmação não foi de toda inocente. Aliás, sabendo que uma imagem vale mais que mil palavras, o filme Branca de Neve de João César Monteiro veio dizer a mesma coisa.

A mensagem comum a estas duas afirmações é a de que aquilo a que é permitido chamar arte deve ser inacessível e incompreensível. Ou seja, elitista e inacessível ao grande público.

Há muitos mais anos, em 1895, um senhor de seu nome Alfredo deixou escrito no seu testamento que haveria um prémio literário para “uma pessoa que tenha produzido no campo da literatura o mais destacado trabalho na direção de um ideal”.

Ora… eu, Labrego Cosmopolita confesso, fui à net ver o que é isso de literatura. Não sou de ter muitas considerações intelectuais e o Priberam chega-me bem, ora: “Literatura, substantivo feminismo – forma de expressão escrita que se considera ter mérito estético ou estilístico”.

Socorrendo-me outra vez dessa maravilha primeira do mundo moderno, a net, pesquisei por “Bob Dylan letras”. Abri logo o primeiro site e li (desculpa Dylan pela tradução atamancada, mas a arte de supermercado sujeita-se a isto):

«Quantas estradas deve um homem percorrer, antes que lhe possamos chamar um homem?

«Quantos mares deve uma pomba branca atravessar, antes de dormir na areia?

«Sim e quantas balas de canhão têm ainda que voar antes de serem para sempre proibidas?

«A resposta, meu amigo, sopra-a o vento, a resposta sopra-a o vento»

Uma vez mais, do meu ponto de vista de Labrego, ainda que, permitam-me a veleidade, Cosmopolita, isto parece-me ter alguma estética e algum estilo. Se é discutível a qualidade da coisa? Claro que é. Ainda bem. Quando não ouvíamos todos o Griechischer Wein e o Paulo Alexandre nunca teria gravado o seu mais conhecido opus.

Se caminhou na direcção do ideal? Só tenho uma palavra a dizer aqui: guerra do Vietname.

O Prémio Nobel da Literatura ser atribuído ao Bob Dylan é algo muito mais violento que um pontapé nos alicerces do elitismo da cultura. É um virar de costas e ignorar completo dos doutos e cultos deste mundo.

Não preciso de ter um conhecimento avançado da Bíblia, como preciso para ler e perceber a latitude do Caim do Saramago. Não preciso de saber o que foi a União Soviética, como preciso para que me digam algo as vozes polifónicas de Svetlana Alexievitch.

Preciso tão só de fumar uns charutos e pegar numa guitarra para perceber que “deve alguma forma de sair daqui”, como disse o bobo para o ladrão.

Aliás… se tiver que escolher o melhor prémio Nobel da Literatura de sempre, é o Bob Dylan que escolho. Enquanto os outros se limitam a dar-me as palavras escritas num papel, abertas à adulteração sentimental a que as vou vetar aquando da minha récita, o Dylan ensina-me como hei de ler as suas palavras. Os respiros, os suspensos, as subidas de tom, as intensidades.

Talvez o que doa aos cultos seja isso – que esta forma de arte lhes reduza drasticamente a capacidade de se fazerem passar por entendidos e identificar em cada frase e em cada parágrafo sentidos que o autor nunca lá viu.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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