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Thiago Claro França: o teatro como ferramenta ancestral de autoencontro

Fluminense de Petrópolis, Thiago Claro França teve sua formação teatral na Escola Livre de Teatro (ELT), de Santo André, SP, e musical na Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP Tom Jobim) e no Centro Universitário Sant’Anna, na capital paulista. Integrante de importantes grupos teatrais da cena paulistana, como a Cia do Tijolo, com a qual percorreu sete estados brasileiros, mostrando a poesia de Patativa de Assaré, no premiado Concerto de Ispinho e Fulô, e da Cia do Latão, em que participou da bem-sucedida montagem de O Pão e a Pedra, oportuna leitura da ascensão dos sindicatos do ABC paulista, nos anos 70. Em janeiro deste ano, estreou seu Pequeno Cântico, da Francisca Cia de Teatro, no qual interpreta São Francisco de Assis, trabalho que desenvolveu ao longo de quatro anos e é o maior desafio de sua carreira.

Quando a descoberta do teatro?

Gosto de crer que o teatro é que nos descobre. Como ferramenta ancestral de autoencontro, reflexão do sentido da existência, o teatro convoca aqueles que se abrem ao sacerdócio dionisíaco. Uma característica interessante que me apontava esse direcionamento de caminhos era que sempre me encantei pelos mais diversos assuntos e abordagens. Desde criança, gostava de criar instalações e convidar minha mãe e familiares a entrar na brincadeira imaginativa, propondo um mergulho conjunto. Um grande mestre do teatro brasileiro, Ilo Krugli, fundador do grupo teatral Ventoforte, em 1974, costuma dizer que a criança é quem inaugura a linguagem, ela decide que um tecido é um pássaro ou um barco, metaforiza sentimentos e acredita fortemente que aquele papel colorido é uma flor que, então, pode tornar-se um foguete. Qual a função do artista senão a de fomentar a ampliação das perspectivas, alargar os beirais da compreensão humana? Sinto que o teatro me descobriu quando eu quis compartilhar maneiras de experienciar a vida que não as comuns ou usuais. Quando fiz questão de manter viva essa escolha, que nada tem de ingênua, e é ferramenta de resistência num sistema falido que nos condiciona a empobrecer a poesia. O primeiro curso livre que fiz de teatro foi quando tinha 12 anos, em Atibaia, interior de São Paulo. Foi lá que lembrei que tinha direito de ser tudo aquilo que transbordava de mim. E não parei.

E a vocação para a música?

Talvez, exista teatro sem música ou música sem teatro para as outras pessoas. Para mim, não. Há algo de inexplicável que se inicia quando uma sonoridade escolhida dispõe notas em sequência e/ou sobrepostas, daí uma narrativa, uma história que vem de algum lugar. Evidente que, em termos conceituais, existem parâmetros para definir o que é o quê. Mas, com a licença que me é dada nesse meu espaço de expressão: como separar gesto, pausa e respiração da atriz do percutir ou do melisma de uma voz? Os brincantes da vastíssima cultura popular brasileira compreendem, na prática, que dança, gestual, expressão, musicalidade e visualidade são uma única manifestação. No caso do teatro, isso é muito latente e verificável. Minha relação com a música vem da mesma fonte do desejo de redesenhar os canais de compreensão, brincar e resistir propondo belezas e aprofundamentos nos mais diversos momentos da sinuosa caminhada da vida. Primeiro um violãozinho antigo, depois o desejo de cantar e me descobrir, através dos sons de minha voz e, então, a paixão pela sanfona, também chamada acordeon, que me acompanha atualmente.

Como foram os anos de formação na Escola Livre de Teatro, em Santo André? Considera que os cursos de formação de atores têm cumprido sua missão entre nós?

A ELT (Escola Livre de Teatro), de Santo André, é uma joia rara e delicada. Guarda consigo uma história muitíssimo admirável no decorrer de suas quase três décadas. Foi uma escola fundada com o propósito de aproximar do teatro trabalhadoras e trabalhadores dos mais diversos ramos e profissões, numa região periférica da Grande São Paulo. Nunca foi pensada como meio de formação tecnicista ou estritamente formal de atrizes e atores, mas sim um mergulho crítico e reflexivo sobre a ação da pessoa de teatro na sociedade. Minha vivência nessa escola foi de profunda transformação. Descobertas que tocaram meu olhar político e espiritual sobre o ofício/sacerdócio de ator. Lá pude compreender que a pessoa de teatro deve ampliar o olhar e não alienar-se numa única função. Foi o que me deu estofo para ser, futuramente, além de ator, diretor, dramaturgo, produtor, iluminador e estar aberto a novos aprendizados (que não se esgotam jamais) no terreiro de Dioniso. Qual seria a missão de um curso de formação de atrizes e atores? É um assunto vasto. Há quem defenda que seja dar material técnico para a/o aspirante ao ofício realizar de maneira adequada seu trabalho em cena. Eu penso que estar em cena e ter elementos técnicos para a manifestação do teatro é a superfície de um processo bastante mais profundo que envolve ação estético-política cotidiana. Tive o estopim disso em minha formação. Desejo firmemente que haja muitas e muitas escolas propiciando tal provocação a seus aprendizes. Se as escolas o estão fazendo atualmente? Não tenho conhecimento o bastante para  o afirmar, mas quero crer que sim.

O que significou a experiência de passar pela Universidade Livre de Música e ter como professores destacados nomes do universo musical contemporâneo?

Tive uma passagem intensa e curta pela ULM (Universidade Livre de Música) que, então, já tinha o nome atual de EMESP Tom Jobim (Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim), de cerca de dois anos. Trata-se de um projeto interessantíssimo de escola pública de música, não com a mesma sofisticação pedagógica que a ELT (Escola Livre de Teatro de Santo André), mas igualmente importante. Vale ressaltar que ambos os projetos, a despeito da enorme importância que têm na formação de muitos novos artistas brasileiros, estão continuamente correndo risco de extinção pela incompetência dos órgãos públicos responsáveis por sua manutenção. No caso da ELT, a prefeitura de Santo André. E no caso da EMESP Tom Jobim, o governo do Estado de São Paulo. Temos importantíssimos arte-educadores que têm abandonado a função pela indignidade como são tratados. Muitos deles me foram essenciais para acreditar que era possível perseguir o meu auto-desenvolvimento. No caso da EMESP, apliquei-me ao acordeon e tive ali a abertura da possibilidade de aprender a tocar um instrumento considerado por muitos tão difícil e que, entre outras coisas, por seu preço de mercado, é elitizado. Reverencio os mestres que me deram suporte para vencer as barreiras erigidas pelo atual sistema social alienatório e me fizeram acreditar que sou merecedor da alegria de fazer música.

Pode nos contar um pouco sobre ter percorrido o país com a Cia do Tijolo e seu repertório que aprofunda radicalmente nossas raízes?

Posso dizer que sou aquele jovem que sonhou muito estar dentro da experiência com seus ídolos e pôde realizar o desejo. A Cia do Tijolo, em meu período de formação como ator na ELT, foi um farol que alumiou minha caminhada e me apontou uma busca que encontrou em cheio as minhas aspirações mais profundas. Ali vi artistas brincantes que manifestavam poéticas absurdamente lindas, com musicalidade maravilhosa e, mais do que tudo, um desejo latente de olhar para o outro, relacionar-se com quem está ali no presente, de forma alguma, desconsiderando a presença de quem compartilha do mesmo espaço-tempo. Assisti ao espetáculo Concerto de Ispinho e Fulô, que celebra o grande poeta cearense Patativa do Assaré e pensei: é isso que quero viver. Dali cinco anos, tive a dádiva de estar neste espetáculo como músico, percorrendo sete estados do Brasil, encontrando gente verdadeira, artistas maravilhosos e vivendo experiências que só as viagens abençoadas podem proporcionar. A escolha por homenagear grandes referenciais de nossa cultura, como Patativa do Assaré, Dom Hélder Câmara e Paulo Freire, traz à Cia do Tijolo o caráter de defensora da força que guarda nossa ancestralidade. E isso, sem dúvida, é elemento determinante para que os fatores sociais e políticos apareçam na cena.

E o teatro de cunho político da Cia do Latão, o que lhe trouxe?

A Cia do Latão é uma companhia muitíssimo importante no teatro brasileiro, tendo percorrido largos caminhos, inclusive no exterior, pela expressividade de sua pesquisa e ação continuada. Tive a oportunidade de integrar o elenco do espetáculo O Pão e a Pedra, que trata das históricas greves do ABC, cenário em que aparece a luta dos milhares de trabalhadores em pleno regime militar e que, inclusive, dá suporte para a aparição do, então, futuro presidente do país, Luís Inácio Lula da Silva. A dialética é elemento bastante presente na construção dos espetáculos da Cia do Latão. Há uma dramaturgia de fina competência na composição dos elementos contraditórios das personagens, agregando poder de reflexão e estimulando uma compreensão mais aprofundada das questões sociais expostas. Muito embasada no teatro de Bertolt Brecht, a Cia do Latão empregou em O Pão e a Pedra uma interpretação majoritariamente realista, com elementos clássicos do teatro brechtiano: atores/atrizes que transitam entre narradores(as) e assunção do jogo dramático e cenários que se constroem e desconstroem sob o olhar da plateia. Eu já havia estudado bastante tais perspectivas de linguagem dentro do teatro, mas foi a primeira vez em que pude vivenciar tal prática profissionalmente. Tive de buscar exercitar o ator que compreende as chaves do texto como elementos de transformação da narrativa e aplicar na interpretação a ação interna (compreensão de dentro para fora na expressividade cênica). E vivi todo esse processo mergulhado nas implicações históricas e políticas do discurso a ser defendido.

Em que momento a ideia de montar Pequeno Cântico e trazer para o palco a trajetória ímpar de São Francisco de Assis?

Sou espiritualista e creio que haja elementos muito além de nossa restrita compreensão humana a balizar nossa existência. Estive num retiro, certa vez, na floresta amazônica, acompanhado de um amigo que, naquela altura, era firme devoto de São Francisco de Assis. Esse amigo carregava consigo alguns livros com biografias e escritos concernentes a Francisco. Pelo pouco que sabia de sua história, já muito o admirava. Resolvi ler uma das biografias. Algo muito transformador ali aconteceu. Minha vida sofreu uma ruptura. Eu não poderia seguir sendo a mesma pessoa tendo sabido alguns detalhes a mais da passagem desse ser humano único pela vida. Fiquei atordoado sem saber que rumo tomar. Lembrei que sou artista e que minha entrega e sacerdócio encontravam manifestação na cena. Passei a sonhar diariamente com o projeto. Via cenas inteiras no período de sono. Acordava pela madrugada e escrevia trechos de textos. Passei a ler muita poesia e todos os que convidavam ao universo que se tinha inaugurado em mim passavam a integrar a dramaturgia. Assim se seguiram quatro anos, com muitos amigos artistas sendo cúmplices e parceiros dessas descobertas, que nunca cessaram. Após uma breve trajetória solitária, meus companheiros da Francisca Cia de Teatro foram se apresentando e pudemos trazer à cena essa celebração poética à vida-poesia de Francisco de Assis, cujo nome é O Mais Pequeno Cântico Sob o Silêncio dos Pássaros.O projeto Pequeno Cântico envolve o espetáculo teatral e uma oficina chamada Teatro de Artesania ou Narrativa Prenhe das Mãos Vazias. Em ambas as partes, as mãos de quem está presente na experiência são os elementos mais importantes.

Que ensinamentos de São Francisco de Assis merecem destaque na construção de um novo homem?

Sinto a trajetória de Francisco de Assis como um fortíssimo resgate ao sentido primordial das coisas. A biografia desse homem nos traz provocações como: por que abandonar as posses materiais e cuidar de quem sofre? Por que sentir-se parte de toda a natureza, sendo consciente parte minúscula de algo de magnitude insondável? Por que submeter-se deliberadamente às dores e desditas humanas, tendo nascido um privilegiado que, por sua condição de classe, estaria confortavelmente protegido? Entre tantas reflexões mais do que pertinentes, num momento histórico de tantos colapsos e falta de sensibilidade à alteridade, o legado daquele homem – que teve seus ímpetos de transgressão minimizados pelo olhar restrito da Igreja Católica – é um grito de humanidade extremamente necessário. Francisco, tendo sido chamado de altercristus (o outro Cristo), atualizou em seu corpo o mito de amor mais reconhecido entre nós: do Deus que se fez homem para ser sacrificado em favor daqueles próprios que o assassinavam. Entregou seu frágil corpo ao serviço incansável do doar-se, indo até os mais miseráveis, lavando as feridas das pessoas com lepra, comendo apenas a sobra da mendicância, após todos já terem se alimentado. E sempre lembrando da pobreza de Cristo. Saiu da condição de um dos homens mais ricos de sua cidade ao pobre mais pobre que poderia ser. Dizem os biógrafos que contraiu doenças no baço, rim, fígado, estômago, tracoma nos olhos (que o deixou completamente cego) e diz-se também que foi acometido pela lepra (isso explicaria cientificamente o que, na perspectiva religiosa, seriam as chagas ou estigmas de Cristo em seu corpo). Criou o costume do presépio para que as pessoas lembrassem que o grande homenageado pela religião cristã nasceu na pobreza, em meio aos animais. É reconhecida a passagem na qual, diante do papa, questionou a pompa, o poder e a exacerbada riqueza da Igreja Católica, que deveria, por mínima coerência, servir aos pobres. Tinha surtos irados, quando da incompreensão de seus discípulos ao quererem algum conforto na árdua caminhada por ele escolhida. São muitos os exemplos de atitudes nas quais o Poverello de Assis manifesta uma busca incansável de ser profundamente, antes de manifestar um discurso. Um ser humano que expunha suas contradições sem mudar o foco: servir sendo sempre o menor. Diante de tal universo, o ser interior é convidado a se colocar em atitude política, social e afetiva de maneira mais consciente e deliberada para que alguma parte do todo, ainda que pequena, seja movida a um estágio de compreensão mais expandido e se manifeste trazendo possíveis caminhos de evolução numa fase tão desigual e violenta da humanidade. Com a convicção dessa pequenina missão, partimos em busca do encontro com as pessoas dos lugares onde as portas estivessem abertas.

Considera Pequeno Cântico seu maior desafio como ator?

Sou ainda bastante novo, não tendo chegado à casa dos 30 anos de idade, portanto, posso considerar que o projeto Pequeno Cântico seja o primeiro de intensos desafios que promoverão o contínuo exercício de autoconhecimento que empreenderei na arte. No caso das funções assumidas em tal projeto, sou idealizador, dramaturgo, diretor, produtor e ator. Então, mais do que no caso das questões de quem realiza a cena, há um olhar para o todo que me instiga e inquieta, no sentido de tudo caminhar para o mesmo ponto: o dentro do ser que desperta e se manifesta de pequeno e verdadeiro em cada pessoa. Trabalhamos, neste projeto, com os cinco sentidos: oferecemos comes e bebes, fazemos uso de fragrâncias escolhidas, exercitamos o toque sensível no público, construímos o ambiente sonoro-musical com delicadeza e propósito e compomos imagens poéticas com simplicidade e beleza.

Por que a escolha de estrear Pequeno Cântico no Nordeste? Que vínculos o levam à região?

Desde o início das descobertas relativas ao projeto, a imagem dos romeiros, poetas, cantadores, repentistas do sertão nordestino povoavam meu imaginário, em especial da região do Cariri cearense, lugar único em inspiração e beleza. Temos, em nossa dramaturgia, poetas advindos desse cenário e, inclusive, um cordel escrito especialmente para o espetáculo, pelo poeta Geraldo Gonçalves Alencar, da cidade de Assaré, sobrinho de Patativa do Assaré. São Francisco de Assis é desses ícones reconhecidos no mundo todo, inclusive para além da Igreja Católica, por servir de inspiração em diferentes religiões, perspectivas filosóficas, movimentos sociais. Mas é impressionante a penetrabilidade de sua figura no Nordeste brasileiro. Basta circular por qualquer região do Nordeste (em especial os trajetos de romarias) que será possível ver homenagens ao santo em inúmeras casas, infindáveis estabelecimentos comerciais e, claro, em igrejas. Creio que haja algum nível de identificação pela trajetória sofrida de entrega e compaixão. Quem, sendo de outras regiões, tem a oportunidade de conhecer o Nordeste brasileiro, tende a se surpreender com a característica de solidariedade, abertura afetiva e acolhimento das pessoas que lá vivem. A despeito de se estar numa fase de escassos recursos ou não, o outro é sempre bem-vindo e convidado ao compartilhamento do que se tem. Essa realidade fez-me entender que Francisco só poderia ser nordestino. E que estando junto de minhas irmãs e irmãos que já exercitam essa atitude franciscana, eu estaria mais perto do que o celebrado pequenino propunha, de dentro para fora.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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