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Terra(s) de Sefarad. Bragança 2017 e a herança judaica

Podíamos remeter o nosso pensamento para o ano de 1536, ano da instalação da Inquisição em Portugal. Mas poderia ser 1532, ano em que Portugal fora sacudido por mais um sismo, o acontecimento lido como sobrenatural e que dera o último fôlego, a última força ao desejo de instalar em Portugal esse tribunal religioso. Parafraseando Rui Zink, esse cataclismo viera “Instalar o Medo”, num quadro onde ele já grassava há mais de dois séculos. Agora estava montado como forma de gerir o quotidiano.

De facto, não sei como fazer nem como pontear uma genealogia do medo em Portugal. Mas ela foge a todas as racionalidades, tal como hoje. Temos excepcionais condições de segurança, de sociedade, mas vivemos enclausurados num qualquer jornal sensacionalista que nos cria um mundo pleno de violações, de homicídios, de pais que molestam filhas, entre tantas outras barbáries, fazendo com que os nossos mais idosos ou mais sugestionáveis percepcionem um mundo onde essa narrativa se torna mesmo verdade, apesar de a realidade afirmar o oposto.

Tanto é assim agora, como o era em 1532. Os judeus eram o bode-expiatório normal, comum numa cultura onde o popular, no seu sentido mais negativo, era a tónica comum. Já em 1506 uma pregação inflamada de um frade fizera com que morressem umas 4000 pessoas em Lisboa. Nesse ano de 1532 morrerão mais, em várias cidades onde as hordas, inflamadas por pregações radicais, saíram pelas ruas matando quem fosse visto como cristão-novo ou cripto-judeu. A lógica era a mais pré-cartesiana que possamos conceber, sem justificação lógica ou simples sentido humanista, sem qualquer patamar de crítica.

E foi neste quadro mental que se passaram os 300 anos seguintes, uma forma de estar que se afirmou como forma de ser, onde a calúnia se tornou inteligência social, onde a denúncia maldosa se afirmou como instrumento de sobrevivência, onde a acusação que levava à morte foi banal como ferramenta de acerto de contas.

Os cristãos-novos, os cripto-judeus, foram o grande alvo desta forma doentia de ser comunidade que os vários pedidos de perdão não destroem. Sim, Mário Soares fez esse gesto nobre e digno de pedir perdão pela perseguição aos judeus. O Patriarca de Lisboa seguiu os seus passos. Mas a cultura popular, o quadro das mentalidades, essa ficou, e prospera neste cadinho de medos e verdades feitas de que é montada toda uma realidade de fake news onde parte da nossa população vive alheada dos verdadeiros problemas do seu mundo.

Nestes dias, entre 15 e 18 de Junho, em Bragança, o Terra(s) de Sefarad procura fazer este trabalho de reencontro com a memória, que é um trabalho de busca e de redescoberta de uma identidade que, enquanto colectivo, nos foi roubada; um direito a uma herança que foi escondida, obliterada, escamoteada e que, hoje, percebemos ser uma imensa realidade a que não podemos, nem devemos, fugir.

Em pleno Renascimento, com o impulso formidável dos Descobrimentos, conseguimos nagar o direito à liberdade religiosa aos judeus portugueses, primeiro, e depois convertê-los à fora ao cristianismo e, por fim, perseguir os que, não querendo ser cristãos, eram acusados de ser ainda “judaizantes”. Destes, muitos morreram, outros esconderam-se, e grande parte deles fugiu.

Eram portugueses que apenas tinham como marca distintiva o facto de terem outra religião. E “apenas” porque eram os mais cultos, os mais alfabetizados, os mais conhecedores nos campos das várias ciências da época. Foram estes, os nossos melhores, que perseguimos, definindo uma mediania, que é uma mediocridade, que ainda hoje nos persegue nas taxas de sucesso escolar e nos níveis culturais.

Conseguir, após estes séculos, regressar à temática sefardita, numa das cidades mais emblemáticas para este tema, é imagem de uma imensa coragem e de uma ainda maior visão da autarquia de Bragança.

Hoje, praticamente não há judeus em Bragança. No início do século XX, durante a I República, ainda se organiza uma comunidade de cidadãos brigantinos que, em liberdade, regressa à fé dos seus antepassados que tinham de manter escondida entre as paredes da privacidade.

Mas, seja pelo que o estudo do ADN já nos mostrou, seja pela cultura, seja pelo cosmopolitismo que marca a cultura judaica sefardita, hoje somos todos Terra(s) de Sefarad. Somos todos essa herança ligada à inovação, ao crescimento, à luta pela cultura e pela qualidade que marcou as comunidades de portugueses judeus.

Vivemos tempos marcantes em que a Liberdade Religiosa nos permite, em consciência, olhar para o passado e ver como ele nos pode ajudar na cidadania do futuro. Não só o diálogo e o respeito deve ser cada vez mais a norma, como a diferença precisa de ser valorizada como um património e uma riqueza que é de todos; dos judeus, mas também dos cristãos, dos ateus, entre tantos outros que hoje, como pessoas de boa vontade, procuram as ferramentas para uma cidadania consciente.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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