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Tânia Camargo Guarnieri: a música como alimento vital

Em quatro décadas de carreira, iniciada quando mal havia chegado aos 15 anos, Tânia Camargo Guarnieri construiu uma carreira sólida e vitoriosa como violinista, dentro e fora do Brasil, provando desde logo que não era apenas a filha de Camargo Guarnieri, um dos maiores compositores eruditos brasileiros de todos os tempos, de quem herdou, sobretudo, um raro rigor profissional aliado à ética, à coragem e à transparência em tudo que faz. Há duas décadas vivendo na Itália, nunca se afastou por completo do Brasil, para onde vem com freqüência para cumprir uma agenda intensa de concertos.

Em que momento descobriu que a música seria seu caminho profissional?

Meus pais costumavam dizer que aos dois anos eu falei que gostaria de ser violinista para poder colocar um vestido comprido, subir num palco e tocar. Não me lembro, ao longo de minha vida, de ter desejado ter outra profissão que não fosse violinista, embora a medicina, a psicologia (cheguei a colaborar com um médico italiano na escritura de um livro sobre psicanálise e música) e a eletrônica, que, inclusive, cursei no ensino médio, também me despertassem interesse.

Que influências recebeu de seu pai, Camargo Guarnieri, uma das maiores legendas da música erudita brasileira?

Nenhuma influência na opção que fiz de me tornar violinista. Mas todas as melhores influências que carrego na vida, como ética, sinceridade, coragem, transparência, liberdade e postura profissional. Foi ele quem me ensinou a ser sempre mais dura comigo mesma do que com os outros, a admitir as fraquezas. Ele sempre me dizia “é melhor você se arrepender por ter feito algo, a se arrepender por deixado de fazer.”

Ser elogiada, aos 15 anos, por Caldeira Filho, um dos mais importantes críticos musicais de seu tempo, como uma notável revelação e aos 16 ter sido premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA)  significaram impulso decisivo em sua carreira?

Meu pai sempre dizia: “não é você quem escolhe a música, é a música quem escolhe você”. Os prêmios e as críticas não deram propriamente impulso em minha carreira. Por várias vezes, inclusive, pensei em abandonar a profissão, mas me dei conta de que não conseguiria fazer outra coisa.

E as lembranças mais significativas dos anos passados na Universidade de Wisconsin para estudar música?

A simples experiência de morar fora me trouxe grande amadurecimento, foi extremamente enriquecedora. Embora seja por natureza anti-acadêmica e considere a formação que tive nos Estados Unidos muito direcional, tenho que reconhecer que muitas vezes a academia forma músicos capacitados, que o sistema de ensino norte-americano é competente.

A opção de sair do Brasil, nos anos 1990, deveu-se a quê?

À época eu estava casada com um maestro italiano, que veio ao Brasil para ser assistente do Neschling.  Tinha dois filhos pequenos e estava muito cansada do desrespeito profissional a que comumente era submetida. Sentia que precisava buscar novos caminhos e fui com a família para Itália, opção da qual nunca me arrependi. Até hoje não penso em voltar, embora venha pelo menos duas vezes ao ano ao Brasil para realizar concertos e visitar minha família, que ainda vive aqui.

Entre compositores e músicos eruditos e populares ainda persiste larga desconfiança. Como explicar isso?

Muitos músicos eruditos são pretensiosos demais, se consideram superiores. Embora me dedique à música erudita, gosto de ouvir boa música popular e não tenho o menor preconceito em relação a ela.

A música não deveria retornar aos currículos escolares?

Claro que sim! Toda criança tem direito de saber música. Considero a música fundamental a todo ser humano, pois ela alimenta a alma. E o trabalho do músico é justamente trazer esse alimento às pessoas.

Como vê os projetos sociais que resultam em descobertas de grandes talentos musicais, a exemplo da Orquestra Sinfônica de Heliópolis, na capital paulista? Eles não jogam por terra o preconceito de que música erudita é para a elite?

Esses projetos são a prova de que a música é para todos, que a música não tem preconceitos nem limites. Não toco para quem entende de música. Toco para quem quer me ouvir , para quem quer receber a minha música.

Apesar de nosso reduzido número de conjuntos orquestrais, forçoso reconhecer que nos últimos anos tem havido uma crescente profissionalização de músicos eruditos entre nós, bem como ponderável aumento de público nas salas. Algo a fazer para difundir a música erudita com maior velocidade e em âmbito nacional, uma vez que no interior do país ela ainda não chega?

O que ainda precisamos é acabar com o mito de que a música erudita é para poucos e para iniciados, daí também a importância do retorno da música ao currículo escolar. Tenho me apresentado no interior do país e ficado impressionada com a receptividade do público. Ainda agora, passei por Uberlândia, São José do Rio Preto e Itu e encontrei públicos extremamente receptivos. Muitas vezes, ao final dos concertos, algumas pessoas me procuram e dizem que nunca tinham visto um violino de perto. Numa delas, um rapaz entrou no palco e cheirou meu violino que estava fora da caixa. Muitas vezes, inclusive na Itália, as pessoas chegam ater mim e me pedem para ver o violino mais de perto, porque até então nunca tinham visto um. Acho isso maravilhoso, pois sempre acreditei que é preciso eliminar a distância entre a música e o público, que é preciso leveza. Que o público precisa se aproximar do artista, conversar com ele, perguntar e pedir o que quiser.

Em  quatro décadas de carreira, que momentos lhe foram mais marcantes?

Foram muitos, mas certa vez, logo após um concerto na região da Sardenha, um senhor veio me cumprimentar e ao violonista que havia tocado comigo, oferecendo um lanche em sua casa. Eu senti que ele tentava retribuir pela apresentação que havíamos feito.  Após o lanche, ele disse a mim e a meu colega violonista se gostaríamos de ver uma coisa maravilhosa, que era o ninho de um falcão. Fomos, então, com seu  veleiro até um fissura na costa aonde só se consegue chegar de barco e vimos o ninho. O modo puro como nos ofereceu a visão de um verdadeiro tesouro me fez lembrar o filme Festa de Babbet.

Outra história refere-se a um menino que encontrei num transatlântico me apresentei como concertista. Eram dois concertos por noite, para grupos diferentes. Enquanto um jantava, o outro ouvia o concerto e vice-versa. Mas esse menino, de tão fascinado que ficava com a música que eu tocava, impedia a família de jantar, para assistir às duas apresentações. Anos mais tarde, encontro a mãe dele num novo cruzeiro que em que eu estava me apresentando e ela, após se identificar, me disse que o filho, que não estava no navio, havia começado a estudar violino. Fiquei muito feliz com a notícia, pois certamente algo de bom eu consegui dar para aquele garoto.

Como analisa o mercado fonográfico na era da internet?

Está cada vez mais fácil de gravar um disco, mas ao mesmo tempo cada vez mais difícil de vendê-lo. Torço, porém, para que não seja um mercado em extinção, embora deteste a ideia de colocar o dinheiro em primeiro plano, de se colocar preço no trabalho do artista. Isso suja tudo. Até hoje não consigo entender os parâmetros para se colocar preço no trabalho de um artista. Não aceito que a simples locação de um piano para um concerto seja muitas vezes mais cara do que o cachê do artista que irá tocar nele.

Sobre os autores da entrevista: Ângelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo(USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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