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Razões para um rendimento de cidadania como pilar de uma política social europeia

A instituição de um rendimento universal combate a desigualdade, mas, além disso, combate-a no horizonte certo, de uma igualdade democraticamente assumida, e confirmada na prática de que todos somos igualmente cidadãos. Por isso, diz-se um rendimento de cidadania. O ponto político geral é justamente esse: em democracia, melhor do que combater a desigualdade confrontacionalmente, por uma lógica de exclusão que obriga uma classe social a vencer ou ver-se vencida por outra, trata-se de combater a desigualdade inclusivamente, através da prática de políticas sociais “para todos”.

Se o rendimento básico incondicional é uma destas estratégias “para todos”, e se esta é a melhor estratégia que a democracia proporciona para vencer a desigualdade na sua raiz, há, contudo, que compreender e dar resposta às dificuldades com que o seu financiamento nos confrontam. Logo à partida, não é razoável precipitar objectivos de longo prazo no imediato. Como também não é razoável deitar fora aqueles precisamente porque estão fora do horizonte mais imediato das possibilidades de realização. Uma terceira ideia é que podemos identificar e conciliar objectivos de curto prazo com objectivos de longo prazo. Seria, por exemplo, um objectivo de curto prazo um rendimento de cidadania, definido como uma fracção do ordenado mínimo, atribuído universalmente a todos os menores, revitalizando uma política de “abono de família”. Num quadro social assolado por pobreza infantil, com todas as consequências decorrentes em termos de igualdade de oportunidades, qualquer rendimento socialmente reorientado para os menores teria impacto imediato sobre as condições de reprodução, ou não reprodução, da desigualdade no nosso país.

Dito isto, é preciso reconhecer que as condições materiais que este debate encontra em certos países são muito mais difíceis do que noutros. Pelo menos por uma razão muito séria, este debate é especialmente difícil em Portugal. Com efeito, quanto mais desigual for a estrutura de rendimentos de uma sociedade, seja em termos de espectro de rendimentos, seja em termos da sua distribuição numa população, mais exigente é o esforço de implementação de uma rendimento de cidadania. Esse é o caso de Portugal. Se tivéssemos uma estrutura de rendimentos pouco piramidal, em que o número de baixos rendimento não fosse muito superior ao número de altos rendimentos não seria impossível financiar um rendimento de cidadania satisfazendo requisitos como os rendimentos médios da sociedade não serem significativamente prejudicados feita as contas entre aquilo que é a contribuição líquida para a provisão do rendimento e aquele que será o valor desse rendimento. Ou ainda, ser conservada a progressividade fiscal dentro de limites de razoabilidade. Mas como a estrutura de rendimentos na nossa sociedade é, pelo contrário, muito piramidal, com um número de baixos rendimentos muitíssimo, mesmo desproporcionadamente, superior ao número de altos rendimentos, há então que assumir que um rendimento de cidadania tem de exigir um esforço suplementar aos rendimentos acima do rendimento médio. E que este esforço suplementar, para não ferir o requisito da razoabilidade da progressividade, determina que o rendimento de cidadania tenha de ser forçosamente baixo.

Esta disparidade entre países, em que os mais desiguais necessariamente encontram mais dificuldades para implementar um rendimento de cidadania expressivo não deve, contudo, perder de vista um segundo facto. Há uma circularidade virtuosa entre valor de um rendimento de cidadania e universal e sociedade com estrutura de rendimentos menos desigual. Por baixo que seja aquele, se a sua implementação produz uma modificação na estrutura de rendimentos da sociedade no sentido de uma menor desigualdade, acaba, então, por proporcionar melhores condições para a sua implementação e, consequentemente, para o seu reforço. Significa isto que o objectivo a longo prazo começa a ser ganho por haver objetivos de curto prazo que são levados a cabo.

A desmistificação que há que fazer com clareza é que as questões de sustentabilidade do rendimento de cidadania estão mal colocadas se pensadas apenas em termos de montantes e não, sobretudo, em termos de organização da distribuição dos rendimentos. A questão é menos a de que necessariamente é preciso uma avultada e incomportável soma de dinheiro inexistente para assegurar a exequibilidade de uma rendimento básico universal do que uma redistribuição diferente dos rendimentos disponíveis.

Por fim, a disparidade dentro da União Europeia (UE) no que respeita aos indicadores de desigualdade não apenas explica as maiores dificuldades que à partida alguns países forçosamente enfrentam caso tivessem a pretensão de avançar para um rendimento de cidadania como nos põe diante do desafio de defender que o rendimento de cidadania deve ser o pilar de uma política social europeia. E para isso importam várias razões de ordem económica.

— Em primeiro lugar, os países da UE com estruturas de rendimentos menos desiguais são, grosso modo, também os países com rendimentos médios mais elevados. Isto significa que estes mesmos países dispõem de melhores condições para internamente promoverem um rendimento de cidadania, já que são menos desiguais, mas, além disso, também dispõem das melhores condições, no quadro da União, para promoverem um rendimento de cidadania europeu.

— Em segundo lugar, os países da UE com estruturas de rendimentos mais desiguais e que, grosso modo, também são os países com rendimentos médios mais baixos poderiam assim, em vez de ficarem incapacitados, arrancar para uma correcção estrutural das suas desigualdades de rendimentos. As possibilidades de uns são aqui a chave para vencer as impossibilidades de outros.

— Em terceiro lugar, dado este arranque e assumindo que o valor do rendimento de cidadania fosse fixado de país para país a partir de indicadores de custo de vida próprios, é de esperar que o esforço da União Europeia se aproximasse de um resultado global em que, apesar das diferenças de rendimento médio de país para país, pelo menos as respetivas desigualdades de rendimentos fossem menos diferentes.

Estas razões que promovem a própria racionalidade de uma política europeia de correcção de desigualdades devem ser levadas ao cerne da questão europeia hoje. Sabemos que a maior ameaça que impende sobre o projeto da União Europeia é falhar o desígnio de uma Europa de estados e cidadãos europeus mais iguais. Sobretudo a última década, agudizando sinais que já vinham dos anos 90 do século passado, revelaram que a Europa da coesão foi cedendo posições a uma Europa de países mais desiguais e de cidadãos mais desiguais.

Uma Europa que fizesse do rendimento cidadão o pilar de uma política social genuinamente europeia seria uma Europa à altura do projeto de União que criou: uma Europa de cidadãos e nações mais iguais. Excluídos factores identitários inexistentes que unificassem uma Europa de povos, culturas e línguas, o que mais pode ligar uma comunidade de europeus do que um profundo compromisso social?

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