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Raquel Naveira: a fecunda voz poética do Brasil central

Por sua vasta produção literária, Raquel Naveira despertou elogios de nomes da envergadura de Antonio Houaiss, Cleonice Berardinelli, Afonso Romano de Sant’Anna, Lygia Bojunga Nunes e Eclea Bosi, dentre tantos outros que têm sabido reconhecer o seu extraordinário talento poético e crítico, permitindo-nos afirmar, sem o menor favor, tratar-se de um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea. Professora universitária há mais de três décadas, é doutora em Língua e Literatura Francesas pela Universidade de Nancy, na França, e mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo. Nesta entrevista, a escritora sul-matogrossense, que publicou seu primeiro livro, Via Sacra, em 1981, e os mais recente, O avião invisível, em 2017, discorre com a sensibilidade que lhe é peculiar sobre o fazer poético e a construção de sua obra.

Conte-nos um pouco sobre sua infância e adolescência e seu envolvimento com Mato Grosso do Sul.

Sempre fui fascinada pela palavra. Ela é minha forma de ser e estar no mundo. Quando criança, amava as cantigas de rodas, ouvir histórias e o objeto livro. Meu avô era um autodidata, possuía uma rica biblioteca e eu gostava de manusear os livros, de observar figuras à luz de velas. Logo que comecei a ler, encontrei Monteiro Lobato e foi um abrir das portas da imaginação. Meu avô me levou a Taubaté para conhecer o Sítio do Picapau Amarelo e lá participei de um concurso da Petrobrás sobre a vida e a obra de Monteiro Lobato. Eu devia ter uns oito anos, foi quando resolvi ser escritora. Escrevia histórias de fadas e bruxas em cadernos. Era meio bruxa e meio fada.Quando voltamos para Campo Grande, estudei na Aliança Francesa, dando continuidade ao francês. Aos quinze, passei a dar aulas na Aliança Francesa. Nasci professora. O amor pelos livros transformou-se em amor pelo Magistério. Gostava de dar aulas para minhas bonecas, de fazer chamada, de passar lições na lousa. A poesia veio na adolescência. Como bálsamo e remédio. Creio que mágoas curam grandes mágoas, como disse Camões. Penso, como Rilke, que o poeta vê poesia em seu cotidiano e, se não o consegue, a culpa é dele mesmo. Gosto de revelações, de epifanias, de momentos que explodem no cotidiano e que fazem tudo mudar.

Em que momento manifestou-se a inclinação para as letras?

Como disse, a minha vocação para as letras é uma vocação de infância. Conto um pouco de minha história: nasci em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957, filha de um oficial do exército, Adahil Pereira da Silva e de Marlene Carvalho. Meus pais se separaram depois de dois anos de casamento e duas filhas e fomos criadas com imenso carinho pelos nossos avós, José Dias de Carvalho, o português Carvalhinho e Emília. Passei a infância, até os doze anos de idade, em São Paulo, num casarão antigo da Vila Mariana. Estudei no Madre Cabrini e no Liceu Pasteur. As lembranças de cantarmos a Marselhesa e hastearmos lado a lado as bandeiras do Brasil e da França fizeram da França minha segunda pátria. A pátria da alma, da poesia, do amor perdido em redemoinhos de folhas à beira do Sena.Voltamos a Campo Grande. Meu avô possuía um sítio chamado Primavera e era necessário cuidá-lo. Esse sítio marcou-me profundamente. As flores nas cercas, a casa simples com fogão a lenha, as melancias pelo caminho que levava ao córrego, as árvores: laranjeiras, mangueiras, frondosos ingazeiros. Estudávamos no Colégio Auxiliadora, que eu amava. Sempre gostei do ambiente de estudo, dos colegas e professores, das festas, das peças de teatro. A vida sempre me pareceu útil e boa dentro da escola e tudo o que eu queria era sempre estar ali. Aos quinze anos, passei a dar aulas na Aliança Francesa, dirigida pela professora Glorinha, minha mestra, musa e modelo. E aos dezoito no Auxiliadora, onde fiquei por onze anos, dando início à minha saga no magistério.Paralelamente, fiz o curso de Direito, na antiga FUCMT. Mas a verdadeira vocação eram as letras, a literatura. Pensava, como dizia Rilke, que não poderia viver sem escrever. E sonhava e chorava lendo Castro Alves, Drummond, Augusto Frederico Schimidt: “ Eles me entendem, são meus irmãos”, eu pensava. Casei-me, aos vinte anos, com meu colega Adhemar Portocarrero Naveira, companheiro da juventude e de todos os momentos. E tivemos três filhos: Augusto, Otávio e Letícia. Hoje somos avós de Maria Augusta e de Maria Eduarda e nos sentimos cada vez mais próximos, unidos e testados pelas provas difíceis que vencemos com a ajuda de Deus até aqui.Formei-me, depois, em Letras, ainda na FUCMT, e comecei a dar aulas no Departamento de Letras, onde permaneci por dezenove anos. Além de dar aulas de várias disciplinas, trabalhei na editora UCDB (Univeridade Católica Dom Bosco), apresentei e produzi, por seis anos, o programa Prosa e Verso, na TV Universitária, entrevistando vários escritores como Adélia Prado, Zuenir Ventura e Ignácio Loyola Brandão, entre outros.Durante trinta anos, escrevi no jornal Correio do Estado: crônicas, ensaios, poemas. É sempre uma alegria e uma emoção quando alguém me diz que colecionou poemas meus, que os colocou em cadernos e diários, que algum poema o ajudou a viver e a ter esperança. Pois creio em poesia como ato fraterno. Aos quarenta e oito anos, logo após a minha aposentadoria, recebi um convite para dar aulas no Rio de Janeiro, na Universidade Santa Úrsula. Meu desejo de ampliar horizontes, de conhecer novas pessoas, principalmente aquelas do meio literário a que eu pertencia de forma espiritual, era muito grande e aceitei. Minha visão de mundo mudou completamente. Viver no Rio é conhecer a realidade brasileira com toda sua dor e delícia. Após dois anos, tivemos que mudar para São Paulo. Era preciso unir toda a família: nossos filhos, minha mãe doente e o gato. Ficamos,então, alguns anos em ares bandeirantes. Continuo dando aulas e cursos em universidades e aparelhos culturais, procurando dar nossa contribuição de experiência e amor.O sonho permanece: viver da literatura, para a literatura, pela literatura.

Que influências foram mais significativas em sua formação?

Sempre fui uma leitora apaixonada. Desde criança: Monteiro Lobato, Andersen, os irmãos Grimm, as Mil e uma noites, Malba Tahan. Na adolescência, a poesia: os românticos, o revolucionário Castro Alves, o genial Álvares de Azevedo, o clássico Gonçalves Dias; os modernistas: Mário de Andrade, Drummond, Bandeira. E houve Clarice. Lygia, amiga querida que passou a enviar-me seus livros com lindas dedicatórias. E Nélida, que narra tudo como Homero. A literatura francesa caminhou lado a lado com cada escola literária estudada: Rimbaud, Baudelaire, Verlaine. A literatura latina, sou fascinada pela Roma antiga, pela mitologia greco-romana, pela filosofia. A literatura latino-americana com o realismo fantástico de um Borges. E hoje, a literatura africana com Mia Couto à frente.Nunca esquecendo que minha leitura de todos os dias é a bíblia. Tudo está lá: oráculos, ensinamentos, poesia pura como ouro de Ofir. Com destaque para os salmos, o Eclesiastes, os Cantares de Salomão e as cartas de Paulo.

Acha que ser poeta ainda traz para muitos a conotação de romântico, de alguém um tanto alheio à realidade do dia a dia?

Há sim ainda um estereótipo de poeta nefelibata, que anda nas nuvens. Mesmo depois de Drummond ter dito que queria cantar “a vida presente, o tempo presente”. Todo poeta é muito concentrado e atento em coisas mínimas, naquilo que aos outros passa despercebido. Daí a sensação de que o poeta vive distante. Certa vez, estava andando pela Rua 14, rua principal de minha cidade e vi uma antiga loja de turcos, onde se vendia uma mala, daquelas duras, marrons, meio canastra. Perguntei-me: quem compraria essa mala? Pronto: era o primeiro verso de um poema que ficou assim:

MALA

Na loja do turco

Vende-se mala,

Daquela marrom,

Dura,

Com dobradiças de metal;

Uma mala meio baú,

Meio canastra

Que cheira a passado.

Quem compraria essa mala?

Um mágico

Para guardar lenços e pombas?

Um passageiro

Com destino à cordilheira dos Andes?

Um assassino

Para colocar os pedaços do corpo da vítima?

Uma viúva

Para esconder cartas e rosas murchas?

Uma criança

Para colecionar bolitas e tesourinhas de unha?

Qualquer pessoa que carregasse essa mala

Seria suspeita.

Acredita que o poeta tem alguma função no mundo?

O poeta é porta-voz de uma sociedade, de um tempo, é antena do inconsciente coletivo. Fala o que muitos gostariam de falar, leva uma palavra fraterna ao coração de muitos. Mitiga a fome de beleza que todos temos dentro de nós.

Correto afirmar que sua poesia se funda na religiosidade, na memória e no épico?

Correto. Vivo em busca de Deus e de mim mesma. Sondo-me. Meu maior interlocutor é o Outro, com quem estou sempre em comunhão.A memória jorra em golfos: ela é a matriz da fraternidade.O épico é meu desejo de ser sujeito da história, de conhecer e compreender a história: os fatos, os sentimentos, as consequências de cada decisão. Escrevi sobre a Guerra do Paraguai, sobre a Guerra do Contestado, sobre a imigração árabe e armênia em Mato Grosso do Sul. Publico semanalmente crônicas na revista eletrônica Top Vitrine, que têm muitas vezes temáticas históricas. Amo os romanceiros, os romances históricos e as biografias de personagens históricas.

De que forma lida com a ideia de transcendência?

Assim como Manuel Bandeira, creio que a vida é uma preparação para a morte. O fim de todos os milagres. Creio na vida eterna, no juízo, no arrebatamento. Ambiciono a salvação.

Qual o seu processo para dar um livro como concluído?

Os livros muitas vezes são escritos em poucos dias, mas todos se desenvolveram durante séculos, durante toda a vida, dentro de nós.Os livros de poemas devem possuir um número razoável de poemas, a produção de alguns anos.Outros livros obedecem a um esquema que precede a escrita. Escrever livros é uma tarefa que não tem fim.

Ainda é um desafio escrever e publicar fora do eixo Rio-S.Paulo?

Cada livro é um novo desafio: na criação e na publicação. É preciso bater às portas. Às vezes a resposta é sim, outras é não. A tudo, em toda circunstância, sempre agradecer. Agradeço tudo que consegui realizar até aqui e também o que não consegui. Minha confiança em Deus é total e sei que tudo contribui para o meu bem. O importante é resistir sempre, perseverar, procurar caminhos, exercer o ofício com disciplina.

Como tem sido sua experiência no magistério? Há meios de despertar em nossos jovens o gosto poético?

É muito importante o incentivo à produção literária por parte do poder público: projetos, prêmios, patrocínios, publicações, tudo o que dê recursos e visibilidade à obra e ao artista. Quanto às universidades, os cursos de Letras, de Pedagogia, de Comunicação, de Jornalismo, de Cinema, de Artes em geral, têm o papel de apresentar aos acadêmicos os autores, os livros, os textos, incentivar a literatura comparada. A leitura e a literatura são a base de tudo.Professores bem formados, vocacionados, apaixonados por livros, preparados para a sala de aula, estimulam os seus alunos através de modelos, os modelos de leitura e os modelos de vida.Conhecemos, claro, as dificuldades do magistério nos dias de hoje, mas sempre haverá o mestre que ama o seu ofício e se dedica a ele.

Poderia fazer um balanço de sua obra até agora publicada?

Comecei a escrever muito cedo, ainda criança. Na escola, gostava de criar jornaizinhos, de escrever em diários e cadernos. Na adolescência, escrevi peças teatrais, participei de festivais de teatro. Aos vinte anos, comecei a publicar meus poemas, quase diariamente, no jornal Correio do Estado. Eu levava os poemas em mãos e os lia para o professor Barbosa, diretor do jornal, que ouvia tudo atentamente, com muita paciência, oferecendo-me sempre um cafezinho do bule de prata, naquelas xícaras brancas fumegantes. Em 1981, publiquei,de forma independente, numa gráfica de Campo Grande, o meu primeiro livro de poemas, o Via Sacra. Ali já estavam minhas principais temáticas: a terra, o autoconhecimento, o fazer poético, a natureza, o amor e a morte, o cristianismo, a mitologia greco-romana. O livro recebeu crítica favorável no jornal Verve, do Rio de Janeiro, dirigido na época por Ricardo Oiticica. Em 1990, publiquei Fonte luminosa, em São Paulo, com Massao Ohno, editor de poesia e arte. Fonte luminosa é uma referência à fonte da praça da 14 e ao próprio Deus, pois o poeta é astro iluminado. Em 1991, veio Nunca-te-vi, poesia, pela editora Estação Liberdade, de São Paulo. Nunca-te-vi é o nome de um bairro de Bela Vista, cidade que faz fronteira com o Paraguai, outro tema de minha poesia: a alma na fronteira. Em 1992, pela mesma editora, o primeiro livro de ensaios, Fiandeira, que fala sobre a gênese da poesia, um livro generoso, inspirado na Filosofia da composição de Edgar Alan Poe, quando explica a composição do poema “O corvo”. Em 1993, o primeiro romanceiro épico, Guerra entre irmãos, poemas inspirados na Guerra do Paraguai, livro que teve uma enorme repercussão, sendo citado por Gilberto Cotrim em livro sobre a história do Brasil. Em 1994, pela editora paulista Scortecci, o segundo romanceiro: Sob os cedros do Senhor, poemas inspirados na imigração árabe e armênia em Mato Grosso do Sul. Esse livro foi citado por Ana Miranda, nas referências de seu livro Amrik, virou espetáculo de dança do grupo folclórico Litani e rendeu-me homenagem, em forma de troféu, oferecido pelo Clube Libanês. Em 1995, o livro de poemas Abadia, editado no Rio de Janeiro, pela Imago, ganhou a primeira indicação ao prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. Em 1996, a primeira novela lírico-bíblica, Mulher samaritana, publicada pela editora Santuário e seguida por Maria Madalena e Rute e a sogra Noemi. Em 1996, Caraguatá, poemas inspirados na Guerra do Contestado, publicado pela Fundação Cultural R. Sovierzoski, de Dourados, ilustrações de Poty Lazarotto, livro que se transformou num curta-metragem, Cobrindo o Céu de Sombra, do cineasta Célio Grandes. O infanto-juvenil Pele de Jambo, foi publicado em 1996, pela RHJ de Belo Horizonte e conta a história de Rutinha, uma menina que vive entre dois mundos opostos: São Paulo e Mato Grosso. O livro de ensaios O arado e a estrela foi publicado em 1997, pela editora UCDB. Em 1997, participei do livro Intimidades transvistas, publicado pela editora Escrituras, de São Paulo, com poemas meus ilustrando os quadros do artista plástico Valdir Rocha, ao lado de outros poetas, como Renata Pallottini, Eunice Arruda, Jorge Mautner e Ives Gandra Martins. Em 1998, Casa de Tecla, poemas ilustrados por Ana Zahran e finalista do prêmio Jabuti. Em 1999, o livro de poemas Senhora ganhou o prêmio Henriqueta Lisboa, da Academia Mineira de Letras. Em 2001, no livro Stella Maia e outros poemas, da editora UCDB, conto em versos a conquista do México pelos espanhóis. Também em 2001, Xilogravuras, de Valdir Rocha, ao lado de Eunice Arruda, Álvaro Alves de Faria, Celso de Alencar, com prefácio de Nelly Novaes Coelho. Casa e castelo, em 2002, reuniu os poemas de Casa de Tecla e Senhora. Em 2004, Tecelã de tramas, ensaios sobre interdisciplinaridade, editora UCDB, revela a união entre a poeta e a professora. Em 2006, Portão de ferro, poemas, pela Escrituras. Em 2007, Literatura e Drogas e outros ensaios, pela Nova Razão Cultural, do Rio de Janeiro. O livro, que faz um corajoso relato sobre a confluência das drogas e da literatura nas vidas e nas obras de vários autores e sugere o posicionamento pedagógico do estudo da filosofia nas escolas, como prevenção ao uso de drogas, foi adquirido por várias escolas municipais do Rio de Janeiro. Em 2012, Crônicas de bicicleta foi publicado pela editora Miró. Em 2013, Quarto de artista, pela editora Íbis Libris, e a coleção de poemas infantis Guto e os bichinhos (volumes I e II), com ilustrações de meu filho, Guto Naveira, pela editora Alvorada. Em 2014, surgiu o Dora, a menina escritora e outros contos de infância, ilustrações de Sandra Lavandeira, também pela Alvorada, nesse mundo de magia que é a literatura infantil. Em 2016, veio Jardim fechado: uma antologia poética e ano passado, pela editora Vidráguas, de Porto Alegre, e em 2017, O avião invisível, pela Íbris Libris.

Sobre o autor da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo(USP), professor e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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