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Quando um país dá quatro tiros na liberdade

Marielle Franco, homossexual, 38 anos, era deputada no Rio de Janeiro desde 2016. Como constava da sua descrição na rede social Twitter: “Mulher negra, cria da Maré [conjunto de favelas no Rio de Janeiro] e defensora dos Direitos Humanos”. Linhas simples que descrevem um ser humano e os problemas de um país complexo.

Nas causas pelas quais se batia estavam os direitos das mulheres, o apoio à comunidade LGBTI e às mães solteiras e a defesa dos direitos dos residentes das favelas. Nos últimos tempos, esta era mesmo uma das suas bandeiras, sendo que foi uma das vozes que denunciou a violência levada a cabo pela polícia nas favelas do Rio de Janeiro nos últimos tempos. Foi uma activista inconformada contra a discriminação e a violência.

Michel Temer, no dia 16 de Fevereiro deste ano, assinou um decreto que viabilizou a intervenção federal no Rio de Janeiro, contribuindo para uma escalada na taxa de violência. Marielle Franco foi uma das vozes mais críticas da assinatura desse decreto e era uma das relatoras da Comissão criada, há três semanas, para monitorizar as acções de intervenção. Nas redes sociais, no dia 13 de Março, protestou contra a morte de um jovem, provavelmente, à conta da polícia militar. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”, questionou.

Marielle era uma jovem educada, nascida e criada numa favela. Teve o mérito de entrar na universidade e terminar os seus estudos, mesmo depois de engravidar aos 19 anos e ter sido mãe solteira. Tem uma história de vida muito distante daquela dos políticos brasileiros, a maior parte do género masculino, endinheirados, de meia-idade e brancos. Afasta-se do perfil estereotipado do político brasileiro e aproxima-se do perfil da população comum, em que mais de metade é negra ou mestiça.

Cumpria o seu primeiro mandato na vereação quando foi morta a tiro, depois de ter estado a participar no evento “Jovens Negras Movendo as Estruturas”. Ao sair do evento, no dia 14 de Março, um carro terá parado ao lado do seu veículo e disparado nove tiros. Na cabeça de Marielle foram quatro; quatro tiros na liberdade. Além dela, morreu também o seu condutor, Anderson Gomes. Uma das suas assessoras, que a acompanhava na viatura, ficou ferida.

Noutra localidade do Brasil, em Magé, outro vereador foi morto a tiro no passado dia 20 de Março. No estado do Rio, apenas no primeiro mês do ano, 154 pessoas foram mortas “em oposição à intervenção policial”. Trata-se de um aumento de 57% em relação ao valor do ano anterior. Nos últimos dois anos, 37 políticos municipais foram mortos. Por ano, mais de 60 mil cidadãos são assassinados no Brasil. Sete em cada dez são negros. A razão da morte de Franco e do seu motorista pode ser compreendida por aqui.

O Parlamento Europeu condenou o assassinato. A sua morte é vista como um ataque à democracia. O Brasil é um país que subscreve os direitos fundamentais, mas que sofre de uma desigualdade entranhada e da qual não se consegue libertar. Uma desigualdade que é um terreno fértil para o aumento da violência, mais ainda quando um poder cada vez mais autoritário parece recusar tudo aquilo que Marielle defendia. A ironia de tudo isto, também com o seu toque mais trágico, é que Franco representa exatamente tudo o que o Brasil mais precisa: pessoas que entendam a situação em que se encontra a maioria da população brasileira. Pessoas que permitam que o Brasil vislumbre um futuro melhor.

Não sabemos responder à última pergunta deixada por Marielle Franco. O povo brasileiro tem agora o desafio de garantir que a sua morte não foi em vão e que a sua imagem seja um exemplo de libertação e de luta por uma sociedade mais igualitária. Tem agora o desafio de mostrar que os tiros não são suficientes para matar a democracia. O desafio de mostrar que a morte de Marielle tornou-nos ainda mais fortes, na defesa daqueles que mais precisam. Deste lado do Atlântico, temos o desafio e o dever de estar com o povo brasileiro. Num Mundo globalizado, os problemas deixaram de ser locais. O problema do Brasil também é nosso. A defesa da democracia é um problema de todos.

 

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