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Provavelmente ele, sim

No momento em que escrevo, faltam sete dias para a segunda volta das eleições presidenciais no Brasil, e as sondagens mostram uma vantagem clara (e crescente) de Jair Bolsonaro sobre o adversário, Fernando Haddad, sendo bem provável que se torne aquele o próximo presidente da República Federativa do Brasil. O duelo passou para a rua e para as redes sociais, com o movimento «Ele sim!» a contrapor-se ao original «Ele não!».

Desde o mais inócuo dos epítetos, que seria o de conservador, já se chamaram muitos outros a Bolsonaro: Trump dos trópicos, restaurador da ditadura, machista, racista, xenófobo, homofóbico, neofascista, neonazi…

A verdade é que tudo aponta para que ele os mereça. Vejamos algumas declarações suas, que, com a devida vénia, reproduzo do artigo de Ana Luísa Bernardino «As 15 frases mais chocantes (e idiotas) de Jair Bolsonaro», publicado no Observador de 5 de outubro:

  • «A Polícia Militar devia ter matado 1000 e não 111 presos» — 1997, referindo-se a uma intervenção das forças policiais contra um motim na casa de detenção do Carandiru, em São Paulo, cinco anos antes.
  • «Pinochet devia ter matado mais gente» — 1998, sobre a ditadura militar de Augusto Pinochet no Chile (1973-1990).
  • «Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada. Só vai mudar, infelizmente, no dia em que partir para uma guerra civil e fazendo o trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando pelo FHC [Fernando Henrique Cardoso, presidente da República do Brasil entre 1995 e 2003], não deixar ele p’ra fora, não. Matando! Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente» — 1999, em entrevista ao programa Câmara Aberta.
  • «Não vou combater nem discriminar, mas se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater» — 2002, a propósito de o presidente Fernando Henrique Cardoso ter empunhado a bandeira do arco-íris, em apoio à aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
  • «O erro da ditadura [que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985] foi torturar e não matar» — agosto de 2008, dirigindo-se a manifestantes que se opunham à revisão da Lei da Amnistia: apesar de esta lei se ter destinado a beneficiar os perseguidos pela ditadura, a sua revisão ilibou também os próprios responsáveis por crimes dessa ditadura, como tortura e homicídio. Aos gritos de «Punição Já!», Bolsonaro respondeu aos manifestantes: «Fodam-se!, fodam-se!».
  • «Se o filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro e muda o comportamento dele» — 2010, numa alusão à lei que proibia castigos físicos.
  • «Preta, eu não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco. Meus filhos foram muito bem educados e não viveram em ambiente como lamentavelmente é o teu» — 2011, em resposta a Preta Gil (filha do cantor negro Gilberto Gil), que o questionara acerca da hipótese de os seus filhos se relacionarem com homossexuais ou com mulheres pretas.
  • «Seria incapaz de amar um filho homossexual; prefiro que um filho meu morra num acidente do que aparecer com um bigodudo por aí» — 2011, em entrevista à revista Playboy.
  • «Ninguém gosta de homossexual, a gente suporta» — 2011, na sequência da entrada do Partido Socialismo e Liberdade (conotado com a esquerda) para o Conselho de Ética da câmara baixa do parlamento brasileiro.
  • «90% desses meninos adotados [por um casal gay] vão ser homossexuais e vão ser garotos de programa [prostitutos], com toda certeza, desse casal» — 2013, num programa do comediante Danilo Gentili.
  • «Não te estupro porque você não merece» — 2014, interpelando Maria do Rosário Nunes, deputada da câmara baixa do parlamento brasileiro.
  • «Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff» — declaração no âmbito do processo de impugnação de Dilma Roussef (presidente da República do Brasil entre 2011 e 2015), em homenagem ao militar que a torturara pessoalmente durante a ditadura militar.
  • «Fui com os meus três filhos, o outro foi também, foram quatro. Eu tenho o quinto também, o quinto eu dei uma fraquejada. Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio mulher» — 2017, numa palestra.
  • «Fui num quilombo [comunidade originalmente criada por escravos fugidos e habitada pelos seus descendentes]. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Nem para procriador ele serve mais» — 2017, numa palestra.

Confesso-me atónito. Desde logo, pela boçalidade obscena da generalidade das frases. Conseguiríamos nós, em Portugal, imaginar um candidato a presidente da República que, em público e de forma tão vexante, ultrajasse uma deputada do parlamento nacional? E o que pensaríamos de um deputado e candidato a presidente da República que gritasse a manifestantes fodam-se, fodam-se? De comparável, à escala mundial, só me ocorrem exemplos como o russo Jirinóvsky ou o filipino Duterte.

Ainda assim, não é isto o que me deixa mais atónito.

Há também a hostilidade obsessiva deste homem contra as pessoas homossexuais. É óbvio que ninguém o pode obrigar a gostar dessa orientação. E igualmente óbvio é o seu direito a orgulhar-se da heterossexualidade dos filhos. Um orgulho algo glacial e lúgubre (prefiro que um filho meu morra num acidente), porquanto um bom pai, que saiba cultivar valores de decência e humanidade, quer aos seus filhos independentemente de caraterísticas que não estava ao alcance deles escolherem. Mas choca o discurso de ódio, o incitamento à violência: se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater. Qualquer energúmeno poderá agora agredir conforme lhe apetecer, escudando-se num simples «o cara se bamboleava como bicha; aí, eu achei que ele tava me provocando e parti a cara dele; até o presidente aprova isso». Já houve, aliás, casos de agressão homofóbica: uma partidária de Haddad, exibindo um qualquer símbolo da comunidade LGBT, foi brutalmente violentada por três partidários de Bolsonaro, que concluíram a façanha gravando-lhe nas costas, a canivete, uma cruz suástica. É certo que Bolsonaro se apressou a demarcar-se destas ações, mas não menos certo é que o seu discurso tudo faz para as estimular. Uma vez mais, porém, não é isto o que me deixa sobremaneira atónito.

Não é adepto de um grosseiro machismo quem classifica como fraquejada o facto de, depois de quatro varões, ter gerado uma filha? Um bom pai, que saiba cultivar valores de inteligência e humanidade, ama e orgulha-se quer de filhos quer de filhas. Não revela tendências fascizantes quem lamenta que a repressão de presos amotinados, por muito urgente, se tivesse ficado por pouco mais de uma centena de mortos, sem atingir pelo menos o milhar? Não revela simpatias nazis quem apela a uma guerra civil tendente a matar dezenas de milhares, incluindo um antigo presidente da República democraticamente eleito? E quem elogia a ditadura chilena, uma das mais cruéis e sangrentas do século XX (mesmo tendo em conta o triste historial da América Latina em matéria de ditaduras)?

Que tranquilidade pode trazer a quem preza o ideal da democracia um presidente da República que, afrontosamente, elogia o torcionário de Dilma Rousseff durante a ditadura? Que credibilidade terá ao emitir opiniões gratuitas como a de que 90% das crianças adotadas por casais do mesmo sexo se tornarão homossexuais ou serão utilizadas para prostituição? Baseou-se em algum estudo estatístico, científico e sério? Mas ainda não é isto o que mais atónito me deixa.

Têm sido avançadas várias razões para o apoio popular a Bolsonaro. A mais comum é de que o Partido dos Trabalhadores (PT), do ex-presidente Luís Inácio (Lula) da Silva, condenado por corrupção, se revelou por tal forma fraudulento e demagógico que gerou anticorpos entre o eleitorado — com a agravante de a sucessora de Lula, Dilma Rousseff, ter sido destituída também com base em acusações de burla. O voto em Bolsonaro seria, pois, um voto útil: antes ele do que voltar ao PT. E isto explicaria que Haddad, principal adversário de Bolsonaro, igualmente afeto ao PT e assumidamente adepto de Lula, só logre convencer uma minoria. Como, no entanto, Haddad não parece particularmente maculado por episódios de corrupção, esta «explicação» também fraqueja.

Uma outra teoria aponta para que o eleitorado, cansado da insegurança geral que sempre caraterizou o Brasil e que não para de se agravar, deposite as suas esperanças em quem lhe promete ordem pública. A verdade, porém, é que a insegurança e a violência se devem, muito provavelmente, ao tremendo fosso social, em que a pobreza mais confrangedora ombreia com a opulência mais ostensiva. Há muitos países socialmente desequilibrados (Portugal incluído), mas em parte nenhuma da Europa o contraste é tão escandaloso como na instabilíssima América Latina (excetuando dois honrosos casos: o Uruguai e, talvez, o Chile). Nas sociedades menos desigualitárias, a criminalidade atenua-se. As classes privilegiadas do Brasil não querem nem ouvir tal argumento, receosas, ao que tudo indica, de que a promoção dos mais pobres se faça à custa do seu adquirido. A História tem desmentido este receio, porquanto o progresso social não costuma concretizar-se através da aritmética simplista dos vasos comunicantes: «para vestir os nus, há que despojar os mais vestidos». Pelo contrário, o progresso social pode beneficiar o todo, mesmo quando mais a uns do que a outros.

Na minha legítima opinião, o responsável pela popularidade de Bolsonaro é a sua própria truculência. Quem o apoia vai, primordialmente, atrás do seu discurso, pontuado pelo desrespeito da mulher, pelo ódio aos homossexuais, pelo desprezo dos pobres, pelo apelo à morte de quem discorda, pelo incitamento à bota nazi. Por muito que o PT tenha dececionado a sociedade brasileira, como pode alguém considerar «útil» o voto em quem professa e preconiza semelhantes enormidades? E é esta aparente atração de dezenas de milhões de brasileiros que mais me inquieta e mais atónito me deixa.

Jorge Madeira Mendes

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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