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Paulo Duarte, biógrafo de Mazzaropi

Autor de Mazzaropi uma Antologia de Risos, alentada biografia de Mazzaropi, um dos artistas mais populares do cinema nacional na segunda metade do século XX, Paulo Duarte, diretor, roteirista e produtor de cinema, revela nesta entrevista facetas curiosas da vida do controvertido ator e empresário, cujos filmes costumavam levar aos cinemas cifras extraordinárias de espectadores.

De onde o interesse pela vida e obra de Mazzaropi?

Eu costumo dizer que fui o cara certo, na hora e nos lugares certos, pois além do interesse normal pela história do Mazzaropi, tive o privilégio de ter contato com as pessoas que detinham os direitos sobre seus filmes e fui o centralizador do interesse dessas pessoas sobre a exploração das obras dele, de maneira que posso dizer que aproveitei isso a favor da preservação de sua obra. No início desta década, eu fui contratado para realizar a negociação (produção executiva)e a direção do projeto para o lançamento em DVD dos filmes do Mazzaropi. Na ocasião, não tínhamos nenhuma foto do Mazzaropi e nem havíamos mapeado os verdadeiros detentores de seus filmes, uma vez que havia muitas pessoas que se diziam donas de filmes e não tinham direito algum sobre eles. Outros se diziam filhos dele e ele não deixou filhos legítimos. Após muito tempo, chegamos aos verdadeiros detentores e a negociação foi muito complicada, porque muitas pessoas tinham papéis que provavam a detenção dos filmes, mas não tinham os próprios filmes, o que nos levou ao próximo estágio, que era o de encontrar as melhores matrizes possíveis para realizar uma masterização, pois era inviável o restauro de três dezenas de filmes. Nessa epopéia, tive o prazer de conhecer pessoas muito importantes para a preservação da memória de Mazzaropi, como o Cláudio, o Arthur e o Neto, do Instituto Mazzaropi, que tem um trabalho muito bonito e honestíssimo em Taubaté. E também alguns pesquisadores dedicados, como a professora Olga Rodrigues, na época docente da UNITAU, bem como várias pessoas que haviam trabalhado com ele. Nesse árduo caminho e nas mais diversas e inimagináveis fontes e acervos, encontrei um material fotográfico maravilhoso, que, após alguns anos, deu origem à biografia que escrevi de Mazzaropi.

Pode nos traçar, em rápidas pinceladas, um esboço da trajetória artística de Mazzaropi?

Ainda criança, Mazzaropi começou observando seu avô tocar viola em público e ficou fascinado a respeito do poder que uma pessoa pode ter em cima de um palco. Dali, não demorou muito para que ensaiasse às escondidas e depois com o consentimento dos pais. Começou sua carreira nos chamados pavilhões, que eram teatros precários que percorriam todo o interior de São Paulo. Mazzaropi passou pelo circo, foi parar no teatro profissional, de lá chegou ao rádio, onde fez o programa Rancho Alegre, programa que depois teve sua versão na TV. Aliás, no dia da estréia da televisão em nosso país, foi o primeiro cômico a se apresentar, portanto, é o patrono dos cômicos da TV. De lá, chegou ao cinema, pela Vera Cruz, a maior companhia de cinema da época. Após quatro filmes na Vera Cruz, foi convidado pela Cinedistri a realizar mais quatro, no Rio de Janeiro. Após observar atentamente as filas que os seus filmes faziam e o peso de seu nome para a bilheteria, ele não chega a fazer o quarto filme na Cinedistri e resolve vender tudo o que tinha e com o dinheiro produz o filme Chofer de Praça, um sucesso estrondoso. Nascia ali a PAM Filmes (Produções Amácio Mazzaropi), onde faria 24 filmes, todos enormes sucessos e dominaria as bilheterias por três décadas, até sua morte, em 13 de junho de 1981.

Que paralelo é possível fazer entre o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, e o caipira construído por Mazzaropi?

O Jeca de Lobato era mais bicho do mato, sem instrução, doente, meio burrinho, chegou, inclusive, a ser considerado como uma manifestação de preconceito do autor por parte da crítica da época. O de Mazzaropi era um caipira em fase de transição para os tempos modernos, não em conflito, mas em adaptação a um novo mundo e às transformações da sociedade, o que, além do superficial, abria uma discussão para assuntos polêmicos como divórcio (A Banda das Velhas Virgens), preconceito racial (Jeca e Seu Filho Preto), sincretismo religioso (O Jeca Macumbeiro), entre outros assuntos.

Quais as maiores influências recebidas por Mazzaropi?

Mazzaropi era fã de Genésio e Sebastião Arruda, pioneiros na formação popular da figura artística do caipira. Essa é a base para o caipira que ele criaria. O teatro ítalo-brasileiro, na mistura da comédia e do dramalhão, foi outro fator essencial na formação da dramaturgia mazzaropiana. No cinema, ele não era fã declarado de ninguém, mas observava tudo o que acontecia e em muitas ocasiões aproveitava certos fenômenos de bilheteria para realizar suas próprias comédias, como foi o caso de Jeca Contra o Capeta, abertamente influenciado pelo sucesso do filme O Exorcista, um exemplo, mas não um caso isolado, pois ele tinha o faro para o que o público gostava de ver. Ao contrário do que se imagina, ele era fã incondicional do teatro paulista, gostava demais de Gianfrancesco Guarnieri. Não perdia os shows de Elis Regina e além de MPB, era fã de rock e música clássica. Aliás, talvez a única frustração de Mazzaropi era não ser um instrumentista muito bom, embora arranhasse alguns instrumentos de sopro e cordas.

Como explicar o desdém da crítica em relação a Mazzaropi?

Em um país que até hoje se esmera em criar uma utópica indústria do cinema e não consegue, Mazzaropi foi o único que conseguiu criar isso na prática. Ele fazia com que um filme bancasse a produção do outro, ou seja, tinha um modelo de negócio sustentável, não dependia do governo, era amado pelo povo e me parece normal que fosse desprezado tanto pela crítica, que não conseguia enxergar além das camadas superficiais em seus filmes, e por uma parte dos cineastas brasileiros que não conseguiam falar a língua do povo como ele. Existe, sim, uma separação do cinema como indústria de entretenimento (o que no Brasil, fora casos raríssimos e únicos, como o de Mazzaropi, não existe) e de cinema como arte e estudo de linguagem, o que, na maioria das vezes, pelos simbolismos e excesso de signos, não chega às massas. Tudo isso, somado ao ego enorme da classe artística, nos permite entender a razão dele ser amado pelo público e desprezado pela crítica.

Ao criar a PAM Filmes, Mazzaropi mostrou que era possível fazer cinema em nosso país sem subsídios governamentais, batendo de frente com as constantes reivindicações de nossos cineastas mais influentes sobre a falta de apoio estatal para suas produções. Como ele conseguiu isso?

Mazzaropi era um midas, tudo o que tocava virava ouro e antes do cinema, foi assim no teatro, no circo, na rádio e na televisão. Quando chegou ao cinema, seus primeiros filmes foram um aprendizado para ele, mas, logo em seguida, ele dominou o ofício. Basta dizer que ele começou como funcionário da Vera Cruz, a Vera Cruz fechou e tudo o que ela sonhava em conseguir, do ponto de vista industrial, Mazzaropi, que seguiu em frente, foi quem conseguiu. Aliás, uma parte enorme dos equipamentos e do pessoal da Vera Cruz foi contratada por ele. Já a questão do cinema ser bancado pelo governo, é um tema delicado, que sempre levará ao entendimento de que o cinema nacional não se sustenta por si só. Enquanto depender de investimentos do governo,será sempre mais arte do que negócio. Basta ver que um percentual mínimo de filmes produzidos hoje consegue, sequer, empatar o custo com a bilheteria. Mazzaropi colocava fiscais nas portas dos cinemas para não ser enganado e só negociava o filme novo, se o exibidor garantisse que passaria o filme anterior. Vendia o colorido mais caro que o preto e branco, fazia pré-estreias, sempre na mesma época do ano e não se expunha na televisão. As pessoas, para vê-lo, tinham que ir ao cinema. Escolhia os temas em voga nas conversas populares, falava a língua do povo e o povo se via refletido na tela. O artista e o homem de negócios caminhavam, portanto, juntos.

Ao afirmar que “a Vera Cruz foi minha escola para o bem e para o mal” o que terá pretendido dizer Mazzaropi?

Há uma história em que um grupo de investidores estrangeiros, em visita à Vera Cruz, não se interessou por nenhuma produção, mas, quando viu trechos de filmes do Mazzaropi, resolveu optar por investir em um filme dele. Isso exemplifica de uma maneira interessante que a Vera Cruz tinha as melhores e maiores intenções artísticas, entretanto, não sabia nada do negócio de distribuição. Tanto que, além de Mazzaropi, o maior êxito de bilheteria da Vera Cruz foi o filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, que, para fazê-lo, teve de lutar contra toda a diretoria da empresa em busca de apoio, pois achavam a produção brasileira e popular demais. Foi observando os erros fatais da Vera Cruz que Mazzaropi, com seu tino comercial extremamente aguçado, conduziu a PAM Filmes.

O que terá levado um intelectual da estatura de Paulo Emílio Salles Gomes a afirmar, em relação a Mazzaropi, que “o melhor de seus filmes é simplesmente ele próprio”?

Creio que pela simples ida ao cinema e observação da reação do público ficava claro que não importava o nome, o tema e a cor do filme, uma vez que as pessoas queriam ver o Mazzaropi. O nome dele virou uma grife do cinema nacional e ele soube, como ninguém, explorar isso. Tanto é verdade que depois de sua morte, o nicho do cinema rural, o cinema dos Jecas, não teve mais continuidade. Ele era único e não teve seguidores. Ele era o melhor de seus filmes. Como alguns atores não cansavam de dizer, eram todos coadjuvantes do Mazzaropi.

Considera acertado dizer que até hoje ainda há resistência nos meios acadêmicos em compreender a figura do nosso caipira, daí o fato de muitos ainda torcerem o nariz quando se fala em Mazzaropi?

Sim, acho que isso acontece no meio acadêmico e cinematográfico. Se eu tivesse que resumir em uma única palavra, diria: burrice. Porque o grau de amplitude e profundidade da obra de Mazzaropi junto ao grande público, como um dos elementos formadores de nossa cultura, de nosso folclore e de nossas manifestações populares, é imensurável. Isso não pode ser subestimado. Deve ser estudado, pensado, debatido, entendido. Aos meus colegas de profissão, o que eu posso dizer é que alguns podem não sentir simpatia pelo personagem Jeca, pela precariedade ou limitação de linguagem de seus filmes, mas, ainda assim, Mazzaropi deve ser respeitado, reverenciado e analisado como o maior homem de cinema que o Brasil já teve. Um cara que ficou bilionário fazendo cinema no Brasil. O único que conseguiu isso. Por que conseguiu? O que ele fazia? Como administrava o negócio audiovisual que tinha? Enfim, se o Brasil sonha em um dia ter uma indústria de cinema, não pode ignorar a história desse homem.

Qual terá sido o maior legado de Mazzaropi para o cinema nacional?

Dei o nome de Antologia de Risos a meu livro, porque acredito que o legado que Mazzaropi deixou com seus filmes é o legado da alegria. O riso, a satisfação popular. Assisti, tempos atrás, ao filme This is It, sobre os ensaios da última turnê de Michael Jackson e, em certo momento, ele diz a seus músicos: “O público quer fuga! Quer uma experiência de escapismo. Vamos dar a ele o que ele quer! ” . Aí eu pergunto: Por que será que Michael Jackson foi o artista mais popular de sua época? Maior vendedor de discos de seu tempo? Porque me parece que os grandes artistas, aqueles que chegam até o inconsciente coletivo de sua geração, são exatamente aqueles que têm noção bem clara do que o grande público quer, o que o grande público precisa. E com sua marca imprimem em sua arte formas de suprir tal necessidade, indo de encontro à ansiedade da plateia. Isso explica a razão de serem tão bem sucedidos. Mesmo após a morte de artistas assim, suas obras permanecem e causam o mesmo efeito, o mesmo impacto e a mesma satisfação. Que possamos aprender com eles e agradecer pelo legado que nos deixam, um legado que transcende suas próprias obras e o seu próprio tempo. E nada melhor que o tempo para nos ensinar o valor que as coisas realmente têm.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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