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Observando a “Adoração dos Pastores”

Estavam pastores na mesma região pernoitando nos campos e guardando os seus rebanhos durante a noite. E um anjo do Senhor postou-se diante deles e a glória do Senhor brilhou diante à sua volta e temeram um grande temor. E disse-lhes o anjo: «Não temais, eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo, porque foi dado à luz para vós hoje um salvador, que é Cristo Senhor na cidade de David. E isto será para vós o sinal: encontrareis um bebé envolto em panos e deitado numa manjedoura.» E de súbito surgiu, juntamente com o anojo, uma multidão do exército celeste, louvando a Deus dizendo:

«Glória nas alturas a Deus!
E, sobre a terra, paz
entre as pessoas de boa vontade.»

E aconteceu que, quando os anjos se retiraram de junto deles para o céu, os pastores disseram uns aos outros: «Vamos até Belém e vejamos esta palavra que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer.» E foram depressa e encontraram Maria e José e o menino deitado na manjedoura.

Bíblia, Lucas 2, 8-16
(tradução de Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. I, Novo Testamento, Lisboa, 2016, pp. 229-230.)

 

A chamada Adoração dos Pastores é um marco na construção da imagem do Cristo enquanto menino. Se Mateus coloca uns magos de inspiração babilónia a adorar Jesus, Lucas prefere, numa lógica mais pueril, centrar-se na figura dos pastores.

No imaginário colectivo, esta cena ganhou destaque e um lugar de carinho que poucas outras adquiriram no quadro largo da vida de Jesus. Se há peças obrigatórias na tradição do presépio, elas são os pastorinhos que tanto cativam a atenção das crianças na época natalícia.

Quem são estes pastores, que em tantas representações surgem a ofertar ao menino “Cristo Senhor” o que de melhor têm: os produtos da terra, do seu gado, e do seu trabalho? Nada há de acaso nesta descrição bíblica. Em primeiro lugar, nunca nada há de acaso nos textos de Lucas. De facto, este possível discípulo de Paulo, médico de profissão, era um inquiridor nato que declara nos primeiros versículos deste Evangelho tudo ter indagado para produzir um texto, diríamos hoje, sustentado e rigoroso.

Os pastores são induzidos para a acção. Os anjos aparecem-lhes, informam, e prescrevem a visita. Porquê, então, os pastores, com tantos outros grupos possíveis para colocar a adorar Jesus? É que os pastores são plenos de significados importantes para o nascente cristianismo. Se pensarmos que o texto descreve uma cena em ambiente judaico, então os pastores são os que se afastam da cidade, que trabalham com gado impuro, são a imagem dos mais pequenos e frágeis a quem Jesus se vem apresentar.

Mas o sentido do texto é mais rico: tendo em conta que o público-alvo deste texto de Lucas era, assumidamente, o grupo dos recém-cristãos gregos, então ser pastor tem outros ecos, não tão negativos mas muito mais fortes em termos religiosos. A imagem do pastor remete para a espiritualidade, para a purificação. Por exemplo, Hesíodo, o pai da poesia grega, era pastor. Estamos, claramente, no caminho da imagem do Bom Pastor, uma das imagens mais ricas em termos teológicos e espirituais.

Perante público-alvo tão específico neste texto de Lucas, já com algum conhecimento do cristianismo e culturalmente helenizados, é de notar que é neste texto que é usada a caracterização de Jesus como o «Cristo Senhor», uma forma de afirmar, inquestionavelmente, a realeza de Jesus como messiânica. Se no episódio dos chamados Reis Magos se coloca a imagem da realeza a adorar o menino Jesus, aqui são colocados os mais simples na mesma função. De ambos Jesus recebe tributo.

E é também de tributo que temos de falar quando olhamos para este episódio, profusamente pintado na arte portuguesa. De facto, e apesar de nada o texto bíblico dizer sobre as oferendas dadas à Sagrada Família, nenhum dos pintores optou por seguir esse desprendimento do texto. Efectivamente, e como que reproduzindo a atitude que se esperava perante as instituições da Igreja, os pastores, quais camponeses dos séculos XVI ou XVII, oferecem ovos e animais da sua produção.

A cesta de ovos, que nos faz lembrar tão bem a riqueza dos doces conventuais, surge em grande plano no grupo azulejar que apresentamos. Trata-se de uma obra-prima da produção nacional de quinhentos, e estava integrado numa figuração de retábulo de marcenaria lavrada, na capela de N. Senhora da Vida. Significativamente, ladeando esta representação central, estavam S. João Batista e, com toda a naturalidade, o próprio evangelista que retrata esta cena, Lucas.

No quadro de Josefa de Óbidos, um século mais tardio, os cestos são já em número de dois, sendo ainda oferecido um cabrito. Estas oferendas ganham, nesta obra, um grande cuidado por parte de uma pintora que teve nas naturezas mortas um dos seus campos mais profícuos de produção.

Regressando ao século XVI, no quadro do Mestre de 1515, temos novamente uma figuração que se afasta do actual estereótipo da gruta, preferindo-se a ruína, ao mesmo tempo que temos um significativo e pormenorizado vislumbre sobre os instrumentos musicais de início de quinhentos. Também neste caso, as ofertas da lavoura, mais propriamente, os ovos, estão presentes, como que lembrando aos crentes, quase todos eles agricultores, que deveriam repetir esse gesto supostamente iniciado mal nascera o Salvador.

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